Nos últimos anos, o trabalho por aplicativos se tornou parte do cotidiano de milhões de brasileiros. Motoristas, entregadores e prestadores de serviços de logística passaram a depender dessas plataformas para garantir sua renda. O modelo trouxe flexibilidade e novas oportunidades, mas também expôs um desafio que a Justiça ainda tenta resolver: afinal, existe vínculo de emprego entre o trabalhador e a plataforma?
Essa é a pergunta que o STF começou a responder em outubro, ao analisar dois casos emblemáticos - um envolvendo a Uber e outro a Rappi. A decisão que for tomada servirá de referência para milhares de processos em andamento e poderá definir o futuro do trabalho mediado por tecnologia no país.
O que está em jogo
As duas ações julgadas tratam, em resumo, do mesmo ponto: se os motoristas e entregadores de aplicativos devem ser enquadrados como empregados celetistas ou se atuam como prestadores autônomos.
De um lado, as plataformas sustentam que são apenas intermediadoras tecnológicas, que conectam consumidores e prestadores de serviço, sem exercer poder de mando. Argumentam que o trabalhador escolhe o horário, define quanto tempo quer ficar conectado e pode até usar outros aplicativos ao mesmo tempo. Para as empresas, o reconhecimento do vínculo colocaria em risco o modelo de negócio e limitaria a livre iniciativa.
Do outro lado, sindicatos e representantes dos trabalhadores afirmam que, na prática, há controle constante do aplicativo sobre o prestador. O sistema define preços, trajetos, tempo de entrega e até penaliza quem recusa muitas chamadas. Esse controle digital - muitas vezes invisível - é o que os especialistas chamam de subordinação algorítmica. Segundo essa visão, o algoritmo cumpre o papel do “chefe”: orienta, fiscaliza e, se o desempenho não agrada, desativa o trabalhador.
Os critérios que definem o vínculo
A discussão gira em torno dos quatro elementos que a CLT exige para reconhecer o vínculo de emprego: pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e subordinação.
Nos aplicativos, os três primeiros estão quase sempre presentes: o trabalho é prestado por uma pessoa física, há remuneração e a atividade é contínua. A dúvida recai sobre a subordinação, que é o ponto que diferencia o empregado do autônomo.
O problema é que o conceito clássico - de um patrão que dá ordens diretas - não se encaixa bem na realidade das plataformas. Hoje, quem comanda é o sistema, e o controle se dá por meio de códigos, metas, prêmios e punições. Essa é a principal dificuldade que o STF precisa enfrentar: como aplicar uma legislação criada em 1943 a um modelo de trabalho baseado em algoritmos e dados.
As diferentes visões sobre a solução
Há três caminhos possíveis para o Supremo:
Reconhecer o vínculo de emprego, aplicando integralmente a CLT.
Nesse caso, as plataformas precisariam registrar os trabalhadores e pagar todos os encargos - férias, 13º, FGTS, INSS, entre outros. Isso ampliaria a proteção social, mas aumentaria os custos das empresas e poderia reduzir o número de postos disponíveis.
Negar o vínculo e manter o modelo atual, reconhecendo a autonomia do trabalhador.
Essa é a posição defendida pelas empresas e por parte da Procuradoria-Geral da República. O argumento é que o modelo de negócio é inovador e que não cabe aplicar automaticamente as regras tradicionais de emprego. Críticos alertam que isso deixaria milhões de pessoas sem garantias básicas e sem cobertura previdenciária.
Adotar uma solução intermediária, reconhecendo que existe uma nova forma de relação de trabalho, diferente tanto da CLT quanto da prestação autônoma pura.
Essa seria uma espécie de “autonomia com direitos”, que prevê garantias mínimas, como contribuição previdenciária, seguro contra acidentes, remuneração mínima por hora e transparência no funcionamento dos algoritmos.
Essa terceira via é defendida por diversos juristas, inclusive pela Advocacia-Geral da União, e se aproxima do que já vem sendo adotado em países europeus. A ideia é equilibrar a inovação tecnológica com a proteção social, sem eliminar a flexibilidade que caracteriza o setor.
O papel do STF e os impactos da decisão
Ao Supremo caberá definir os limites constitucionais dessa nova relação. A Corte precisará conciliar princípios que convivem em tensão: o valor social do trabalho (art. 1º, IV, e art. 7º da Constituição) e a livre iniciativa (art. 170). Nenhum desses valores é absoluto; ambos devem coexistir dentro de um modelo justo e sustentável.
A decisão terá efeitos diretos sobre milhares de ações trabalhistas suspensas em todo o país. Também afetará o mercado, os custos operacionais das plataformas e a arrecadação da Previdência Social.
Hoje, estima-se que mais de 1,5 milhão de pessoas no Brasil obtenham renda por meio de aplicativos, em modalidades variadas: transporte de passageiros, entrega de refeições, fretes urbanos e serviços logísticos para grandes varejistas, área em que atuamos com frequência no escritório.
Essas plataformas de logística têm uma particularidade: os entregadores são cadastrados em aplicativos que interligam grandes empresas e consumidores finais, com rotas e horários previamente definidos. Em muitos casos, há um nível de organização e fiscalização ainda maior do que nos apps de transporte. Por isso, o impacto da decisão do STF sobre esse tipo de contrato pode ser significativo, e o mercado aguarda com atenção o entendimento majoritário.
O que se pode esperar
Independentemente do resultado, há um consenso crescente: o trabalho por aplicativo precisa de regras próprias. A ausência de uma lei específica deixa trabalhadores e empresas em um limbo jurídico que gera insegurança para ambos.
É provável que, após o julgamento, o Congresso Nacional avance na criação de um marco regulatório que estabeleça padrões mínimos de remuneração, contribuição previdenciária e transparência nos critérios usados pelos aplicativos. Isso traria previsibilidade, reduziria litígios e permitiria que o setor continue inovando sem violar direitos fundamentais.
Um olhar prático
Na advocacia trabalhista, o que vemos é que o sucesso de cada ação depende menos da teoria geral e mais da prova dos fatos concretos. Não basta o contrato ou o cadastro no aplicativo: o que importa é como o trabalho é realmente executado.
Nos processos que tramitam no escritório envolvendo aplicativos de logística, por exemplo, é comum encontrar provas de controle direto, como registros automáticos de rota, metas diárias e bloqueios sem aviso prévio. Em outros casos, o trabalhador tem ampla liberdade e o vínculo não se confirma. Isso mostra que, mesmo com uma decisão do STF, cada situação continuará dependendo da realidade específica de cada contrato.
Conclusão
O julgamento do STF sobre o vínculo de emprego nos aplicativos será um divisor de águas para o Direito do Trabalho brasileiro. Ele testará a capacidade das nossas instituições de adaptar uma legislação antiga às novas formas de organização produtiva.
Mais do que decidir se motoristas e entregadores são empregados ou autônomos, o que está em jogo é como o país vai equilibrar a liberdade econômica com a proteção social, garantindo que o avanço tecnológico não signifique retrocesso de direitos.
Enquanto aguardamos a decisão final, seguimos acompanhando o tema de perto, inclusive nas causas que envolvem aplicativos de logística para grandes varejistas, que hoje representam uma parcela importante das discussões sobre plataformas digitais.
O futuro do trabalho está sendo desenhado agora - e o que o STF decidir servirá de base para uma nova etapa das relações entre tecnologia, empresas e trabalhadores no Brasil.