Migalhas de Peso

O advogado no interrogatório policial

Em face da cena da novela Vale Tudo, da TV Globo o texto analisa a atuação da advocacia e a legalidade do interrogatório policial no Estado Democrático de Direito.

3/12/2025

Introdução - Da gênese da discussão

O final da célebre novela Vale Tudo, exibida pela Rede Globo, reacendeu um debate jurídico de grande relevância nacional. Em resposta a uma cena exibida na trama, a OAB manifestou-se publicamente afirmando que “depoimento sem advogado não vale”, conforme noticiado pelo Informativo Migalhas em 10 de outubro de 2025.

Na referida cena, cinco personagens prestavam depoimento sobre o assassinato da empresária fictícia Odete Roitman, interpretada pela atriz Débora Bloch, sem a presença de um advogado. A OAB, ao reagir, ressaltou que, na vida real, isso seria juridicamente inadmissível, tendo em vista o art. 133 da Constituição Federal de 1988, que consagra o advogado como indispensável à administração da Justiça.

A manifestação da entidade representativa da advocacia nacional não foi apenas uma resposta artística, mas um chamado à reflexão: até onde a ficção pode distorcer as garantias fundamentais? E, sobretudo, qual é o papel do advogado e da autoridade policial na preservação da legalidade durante a investigação criminal?

Dos aspectos legais da temática

Cometido um fato típico e ilícito, nasce para o Estado o dever de apurar a verdade real, restabelecendo a paz social violada. A persecução penal estatal inicia-se com a atividade investigativa, conduzida, via de regra, pela Polícia Civil (nos crimes de competência estadual) ou pela Polícia Federal (nos de competência da União), conforme o art. 144, §4º, da Constituição Federal.

Nos crimes de homicídio, previstos no art. 121 do CP, a competência investigativa cabe, ordinariamente, à Polícia Civil do local dos fatos. O inquérito policial, formalizado por portaria ou auto de prisão em flagrante, é o instrumento inaugural da persecução penal, com a finalidade de colher indícios de autoria e prova da materialidade do delito.

O art. 6º do CPP estabelece as providências imediatas a serem adotadas pela autoridade policial, dentre as quais “ouvir o indiciado”. Tecnicamente, o termo mais adequado seria “ouvir o suspeito”, uma vez que o indiciamento é ato discricionário do delegado de polícia, cabível apenas ao final da investigação, quando houver elementos de autoria e materialidade.

O interrogatório policial, embora não possua natureza processual, segue parâmetros semelhantes ao interrogatório judicial, naquilo que for aplicável. É dividido em duas partes distintas:

O direito constitucional ao silêncio aplica-se apenas à segunda parte, não sendo lícito ao investigado mentir sobre sua identidade. A falsidade nesse contexto configura o crime de falsa identidade (art. 307 do CP), conforme pacificado pela súmula 522 do STJ, segundo a qual “é típica a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa.”

O art. 306 do CPP reforça a importância da comunicação imediata da prisão ao Juiz competente, ao Ministério Público e à família do preso ou à pessoa por ele indicada, além do encaminhamento, em até 24 horas, do auto de prisão em flagrante. Se o autuado não informar o nome de seu advogado, deve ser encaminhada cópia integral dos autos à Defensoria Pública, garantindo-se o amplo acesso à defesa técnica.

Assim, a presença do advogado durante o interrogatório policial não é obrigatória, mas é altamente recomendável, pois confere segurança jurídica ao ato e concretiza o princípio da legalidade e da dignidade da pessoa humana.

Análise crítica contextual do tema

A repercussão da cena televisiva revelou um descompasso entre o senso comum e o rigor técnico do Direito. Embora o inquérito policial não seja processo, ele não está imune aos princípios constitucionais. Ainda que não se aplique o contraditório em sua plenitude, há um contraditório mitigado, reconhecido pela doutrina e pela jurisprudência contemporânea, especialmente à luz das súmulas vinculantes 11 e 14 do STF, que asseguram o direito de defesa e o acompanhamento do advogado nos atos investigativos.

A OAB, ao reafirmar sua posição, cumpre o dever institucional previsto na lei 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB), que consagra a advocacia como função essencial à administração da Justiça. Por outro lado, a autoridade policial, legitimada pela Constituição e pelo CPP, detém autonomia técnico-jurídica para conduzir o inquérito, respeitando as garantias individuais, a legalidade e a proporcionalidade.

O equilíbrio entre essas funções é o que sustenta o Estado Democrático de Direito. A ausência do advogado não nulifica o ato, mas a sua presença engrandece o sistema de garantias. O Direito não é apenas uma engrenagem burocrática - é a expressão da civilização em sua luta constante contra o arbítrio.

Reflexões finais

Na ficção, “vale tudo”; na vida real, vale o Direito.

A ausência de advogado no interrogatório policial não gera nulidade, mas sua presença é símbolo de civilidade e transparência, elevando o nível ético da persecução penal. O inquérito, outrora visto como instrumento de coerção, hoje é reconhecido como mecanismo de proteção dos direitos humanos, devendo ser conduzido com respeito à dignidade humana e sob o olhar vigilante da legalidade constitucional.

Se na novela a verdade é manipulada pelo roteiro, na realidade jurídica a verdade é tutelada pela Constituição e pela lei. A autoridade policial, o advogado e o Ministério Público são peças de um mesmo mosaico institucional, cuja finalidade maior é a justiça e a preservação da liberdade humana.

Que o caso Odete Roitman, revisitado sob o prisma jurídico, sirva não apenas de entretenimento, mas de reflexão para uma sociedade que ainda precisa compreender que sem Direito não há Justiça, e sem Justiça, o Estado Democrático de Direito se desfaz na penumbra da arbitrariedade.

Por fim, mesmo na ficção, a autoridade policial, ao conduzir o interrogatório dos suspeitos, na novela Vale Tudo, atuou em estrita conformidade com o ordenamento jurídico pátrio, observando os princípios da legalidade e da proporcionalidade que norteiam a persecução penal. Não há que se cogitar de arquitetar ou suscitar irregularidades inexistentes, tampouco de nulidades processuais infundadas, uma vez que, em sede de inquérito policial, não se aplicam, em sua inteireza, os princípios do contraditório e da ampla defesa, mas sim sua forma mitigada, suficiente para resguardar os direitos fundamentais do investigado.

É certo que, para se aproximar da verossimilhança jurídica, os roteiristas da novela Vale Tudo poderiam ter conferido maior formalidade e rigor técnico à condução do interrogatório pelo delegado de polícia. Teriam podido, por exemplo, proceder à devida qualificação dos suspeitos, assegurando-lhes o direito constitucional ao silêncio, conforme previsto no art. 5º, inciso LXIII, da Constituição Federal, e nas diretrizes do CPP.

Tal cuidado não apenas enriqueceria o realismo da cena, como também prestaria um serviço pedagógico à sociedade, reforçando a importância do respeito às garantias individuais mesmo em situações de intensa comoção pública. Ainda assim, a liberdade artística da obra não perde seu esplendor: o enredo continua a cumprir sua nobre função cultural, instigando o imaginário coletivo e expondo, sob o véu da ficção, os dilemas éticos e sociais de um país que ainda busca respostas para seus próprios mistérios de poder, corrupção e verdade.

Assim, se na ficção o enigma reside em saber quem matou Odete Roitman, na vida real o desafio está em descobrir quem ainda ousa matar, todos os dias, a essência da Justiça.

Concretamente, a atuação policial, quando pautada pela técnica, pela prudência e pelo respeito à Constituição, não é expressão de arbítrio, mas instrumento da Justiça em seu estágio inaugural, voz primeira da verdade real que ecoa em nome da sociedade e sob o manto do Estado Democrático de Direito.

_______

Referências bibliográficas

Constituição Federal de 1988, arts. 5º, 133 e 144.

Código de Processo Penal, arts. 4º a 23, 6º e 306.

Código Penal Brasileiro, arts. 121 e 307.

Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), art. 8º.

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), arts. 1º, 10 e 11.

Informativo Migalhas, edição de 10 de outubro de 2025.

Lei nº 8.906/1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB).

Súmula 522 do STJ – É típica a conduta de atribuir-se falsa identidade perante autoridade policial, ainda que em situação de alegada autodefesa.

Súmulas Vinculantes 11 e 14 do STF – Garantias de acompanhamento do advogado e uso de algemas apenas em casos excepcionais.

Jeferson Botelho
Delegado Geral aposentado da PCMG; prof. de Direito Penal e Processo Penal; autor de obras jurídicas; advogado em Minas Gerais. Jurista. Mestre em Ciência das Religiões - Faculdade Unida Vitória/ES;

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