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Assédio moral: Um soco na alma

A praga do assédio moral não quebra ossos, mas quebra pessoas. Ele fere à dignidade, adoece servidores e compromete a eficiência da Administração.

16/10/2025

Não é preciso levantar a mão para ferir alguém. O assédio moral é uma violência que se infiltra nas palavras, nos silêncios, nos olhares de desprezo.

É o tipo de agressão que não deixa marcas visíveis, mas dilacera por dentro.

Um “soco na alma” - é o sentimento de quem é humilhado, isolado, desvalorizado dia após dia.

Em ambientes onde o respeito deveria ser regra, o assédio moral se disfarça de cobrança, brincadeira ou autoridade.

E enquanto isso, vidas são silenciadas, talentos são sufocados, e a saúde emocional se esvai.

A humilhação contínua no serviço público brasileiro, infelizmente, é comum e prejudica a saúde física e emocional dos servidores; essa prática deve ser combatida por todos.

O assédio moral viola a dignidade humana e a Constituição brasileira proíbe que a Administração Pública atue de maneira ilegal, imoral ou arbitrária.

Os agentes públicos, portanto, devem atuar com ética e em conformidade com a Constituição, sob pena de incorrer em improbidade administrativa.

Etimologia e sentido profundo do assédio

A palavra assédio vem do latim ad sedere, que significa “sentar-se em frente de”. Essa origem sugere uma presença constante, invasiva, insistente - como alguém que se coloca diante do outro para pressionar, vigiar ou dominar.

Com o tempo, o termo passou a carregar o sentido de perseguir com insistência, o que equivale a molestar, perturbar, aborrecer, incomodar, importunar.

No contexto das relações humanas, o assédio moral provoca sentimentos profundos de: ofensa, menosprezo, rebaixamento, constrangimento e humilhação.

Não se trata apenas de um conflito interpessoal, mas de uma agressão sistemática que fere a dignidade e compromete a integridade emocional da vítima.

Trabalho, dor e dominação: uma origem inquietante

A primeira forma de trabalho na história foi a escravidão - uma relação marcada pela violência e submissão. Não por acaso, a etimologia da palavra “trabalho” carrega o peso da dor.

No latim clássico, tripalium era um instrumento de tortura. No latim vulgar, tripaliare significava literalmente “torturar”.

Essa origem inquietante ajuda a entender por que, ainda hoje, ambientes laborais tóxicos podem reproduzir lógicas de dominação e humilhação.

O assédio moral, nesse sentido, é uma forma moderna de tortura simbólica : silenciosa, persistente, institucionalizada

Raízes históricas e o nascimento do conceito

O assédio moral é tão antigo quanto as relações humanas. Como dizia Hobbes, “o homem é o lobo do próprio homem”.

Durante séculos, práticas de humilhação foram naturalizadas. Foi só nos anos 1980 que o médico alemão Heinz Leymann começou a estudar o fenômeno no ambiente de trabalho e, posteriormente, pela psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen1, que conceituou o assédio moral.

“Qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra à dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa.”

O que é assédio moral?

Assédio moral é uma violência psicológica repetitiva que humilha, desvaloriza ou isola. Pode ocorrer em qualquer ambiente - trabalho, escola, família - e se disfarça de brincadeira, cobrança ou autoridade.

Características principais: 

Exemplo prático: Pense-se em um servidor público que, diariamente, é ignorado nas reuniões, recebe tarefas inúteis, é desvio de funções, sendo alvo de piadas sobre sua competência.

Isso não é má gestão - tem nome: é assédio moral.

O olhar jurídico: assédio moral no serviço público

Toda conduta reiterada dos agentes públicos, no âmbito da Administração, que deteriorando o ambiente do trabalho e qualidade do serviço, viola a dignidade humana ou/e a integridade física e emocional dos servidores públicos.

Essa lição reforça que o assédio moral não é apenas uma questão de comportamento inadequado - é uma violação institucional que compromete os fundamentos da República.

Tais práticas, infelizmente comuns em órgãos públicos, devem ser combatidas com políticas de:

A dignidade humana, nesse contexto, não é um ideal abstrato: é um direito fundamental que deve ser protegido em cada relação de trabalho, especialmente quando o Estado é o empregador.

O impacto invisível

O assédio moral não quebra ossos, mas quebra pessoas. A vítima pode desenvolver:

Esses efeitos comprometem a saúde mental e a vida profissional e familiar. É como viver sob uma nuvem constante de medo e insegurança.

A linguagem silenciosa da violência

O assediador prefere, em regra, a manifestação não verbal - para dificultar a prova e escapar da responsabilização.

Quando acusado, diz que foi mal-entendido ou que o servidor é sensível demais.

Exemplos de condutas não verbais: Suspiros, sorrisos sarcásticos, trocadilhos maliciosos, indiferença, silêncio forçado, olhares de desprezo, ignorar a existência da vítima, “colocar na geladeira”, controlar tempo de banheiro, metas impossíveis

O que diz a legislação brasileira?

Embora o assédio moral ainda não seja tipificado como crime no CP, ele pode ser enquadrado em ações civis por danos morais.

No ambiente de trabalho, na iniciativa privada, a CLT - Consolidação das Leis do Trabalho permite que o empregado peça rescisão indireta do contrato em casos de abuso.

Algumas decisões judiciais já reconheceram o assédio como motivo para indenizações significativas

Segundo a Convenção 190 da OIT (2019), basta uma única conduta perversa para caracterizar o assédio moral. É bem garantista.

Contudo, a interpretação predominante na doutrina e jurisprudência brasileira ainda exige que a conduta seja reiterada, ou seja, que ocorra de forma sistemática e prolongada. O que pode dificultar a responsabilização em casos graves de agressão única.

Essa exigência busca diferenciar o assédio moral de conflitos pontuais ou desentendimentos ocasionais; mas também pode dificultar a responsabilização em casos graves de agressão única.

Lei pioneira: Rio de Janeiro sai na frente

A lei 3.921/02, do Estado do RJ, foi a primeira a enfrentar o assédio moral no serviço público.

O art. 2º define:

“Considera-se assédio moral no trabalho [...] a exposição do funcionário, servidor ou empregado a situação humilhante ou constrangedora, ou qualquer ação, ou palavra, gesto, praticada de modo repetitivo e prolongado [...] por agente [...] que, abusando da autoridade que lhe foi conferida, tenha por objetivo ou efeito atingir a autoestima e a autodeterminação do subordinado, com danos ao ambiente de trabalho, aos serviços prestados ao público e ao próprio usuário, bem como, obstaculizar a evolução da carreira ou a estabilidade funcional do servidor constrangido.”

Essa norma reconhece que o assédio afeta o indivíduo, o ambiente de trabalho e os serviços prestados à sociedade.

Desvio de função: o servidor “faz de tudo”

A mesma lei considera assédio moral o desvio de função. Por exemplo: O servidor técnico judiciário é designado para funções de analista ou para tarefas triviais ou incompatíveis com seu cargo. Surge o servidor “faz de tudo”. 

Dizem que os estagiários de Pindorama elaboram despachos, decisões e sentenças. Será verdade?  

O desvio de função é assédio moral. É também improbidade administrativa.

Súmula 378 do STJ: o direito à reparação

A súmula 378 do STJ reconhece:

“Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes.”

Mas o problema não é só financeiro. O desvio de função humilha, desvaloriza e adoece. É uma forma de violência institucional.

O crime que ainda não é crime

Apesar da gravidade do assédio moral, ele ainda não é tipificado como crime no CP brasileiro.

Em 2019, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 4.742/01, que propõe criminalizar o assédio moral no trabalho.

O texto foi enviado ao Senado em 13 de março de 2019 - e desde então, está engavetado. Tudo parado! Por que a má vontade do Senado com um tema importante para à sociedade?

A proposta define o crime como:

“Ofender reiteradamente a dignidade de alguém, por meio de atos que causem humilhação, constrangimento ou degradação no ambiente de trabalho.”

A aprovação desse projeto pelo Senado seria um avanço histórico, pois permitiria responsabilizar penalmente os agressores e proteger as vítimas com mais eficácia.

Enquanto isso, o assédio moral segue livre, leve e solto, sendo tratado como infração administrativa ou causa de indenização civil - o que, muitas vezes, não é suficiente para coibir a prática; sendo o Estado responsabilizado objetivamente.

A ausência de tipificação penal revela uma lacuna institucional: o Estado reconhece o problema, mas não o enfrenta com a força da lei criminal.

E assim, o agressor segue impune. E a vítima, invisível.

Elementos normativos e a prova do assédio moral

Do ponto de vista jurídico, basta:

Não é necessário comprovar dano psíquico ou físico. Isso evita que a punição fique refém de laudos periciais subjetivos.

A conduta abusiva, por si só, já é uma afronta à dignidade humana. Mas, não se esqueça: o ônus da prova é de quem acusa.

O que o assediado pode fazer?

Quem sofre assédio moral não deve se calar. Há caminhos para reagir com segurança e dignidade: Reconhecer o abuso. Entender que humilhações repetidas não são normais. Não, mesmo!

O assédio moral é, também, uma violência institucional. Reagir exige coragem e cidadania.

Uma praga a ser combatida

O assédio moral, como fenômeno social de tempos antigos, porém de reconhecimento recente, configura-se como uma praga a ser combatida - por razões humanísticas, sociais e econômicas.

Ele fere a dignidade, adoece servidores e compromete a eficiência da Administração.

O assediador sabota o ambiente, o serviço e a saúde de quem trabalha. E quando o Estado tolera essa prática, torna-se cúmplice da destruição silenciosa de talentos e vocações.

Combater o assédio moral é mais do que proteger o servidor - é defender à democracia.

Caminhos para a cura

Superar o assédio moral exige tempo, apoio e reconstrução da autoestima. Terapia, redes de apoio e ambientes saudáveis são fundamentais.

Mas também é preciso que a sociedade reconheça essa violência e se comprometa com a prevenção.

Conclusão

Combater o assédio moral no serviço público exige ações concretas e estruturais que envolvem: prevenção, acolhimento e responsabilização.

É necessário fortalecer as ouvidorias, criar protocolos de acolhimento, capacitação de gestores e servidores e seminários sobre o tema.

O assédio moral continua sendo tratado como um capricho de gente sensível. Enquanto isso, servidores adoecem, trabalhadores se calam e chefes abusivos ganham medalhas por “liderança”.

No Brasil, infelizmente, ainda se acredita que humilhar é uma forma de motivar. E quando alguém denuncia, dizem que é mimimi - como se dignidade fosse luxo e respeito, frescura.

Se o soco fosse no corpo, talvez houvesse escândalo. Mas como é na alma, segue o baile.

E o agressor, claro, continua sendo promovido e não punido.

_______

HIRIGOYEN, Marie-France, Mal-Estar no Trabalho- Redefinindo o Assédio Moral, p.17, 9ª ed., 2017, Bertran Brasil.

FERRAZ, Renato, Assédio Moral no Serviço Público-Violação da Dignidade Humana, 2014, p.54.

Renato Otávio da Gama Ferraz
Renato Ferraz é advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), professor da Escola de Administração Judiciária do TJ-RJ, autor do livro Assédio Moral no Serviço Público e outras obras

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