Não é preciso levantar a mão para ferir alguém. O assédio moral é uma violência que se infiltra nas palavras, nos silêncios, nos olhares de desprezo.
É o tipo de agressão que não deixa marcas visíveis, mas dilacera por dentro.
Um “soco na alma” - é o sentimento de quem é humilhado, isolado, desvalorizado dia após dia.
Em ambientes onde o respeito deveria ser regra, o assédio moral se disfarça de cobrança, brincadeira ou autoridade.
E enquanto isso, vidas são silenciadas, talentos são sufocados, e a saúde emocional se esvai.
A humilhação contínua no serviço público brasileiro, infelizmente, é comum e prejudica a saúde física e emocional dos servidores; essa prática deve ser combatida por todos.
O assédio moral viola a dignidade humana e a Constituição brasileira proíbe que a Administração Pública atue de maneira ilegal, imoral ou arbitrária.
Os agentes públicos, portanto, devem atuar com ética e em conformidade com a Constituição, sob pena de incorrer em improbidade administrativa.
Etimologia e sentido profundo do assédio
A palavra assédio vem do latim ad sedere, que significa “sentar-se em frente de”. Essa origem sugere uma presença constante, invasiva, insistente - como alguém que se coloca diante do outro para pressionar, vigiar ou dominar.
Com o tempo, o termo passou a carregar o sentido de perseguir com insistência, o que equivale a molestar, perturbar, aborrecer, incomodar, importunar.
No contexto das relações humanas, o assédio moral provoca sentimentos profundos de: ofensa, menosprezo, rebaixamento, constrangimento e humilhação.
Não se trata apenas de um conflito interpessoal, mas de uma agressão sistemática que fere a dignidade e compromete a integridade emocional da vítima.
Trabalho, dor e dominação: uma origem inquietante
A primeira forma de trabalho na história foi a escravidão - uma relação marcada pela violência e submissão. Não por acaso, a etimologia da palavra “trabalho” carrega o peso da dor.
No latim clássico, tripalium era um instrumento de tortura. No latim vulgar, tripaliare significava literalmente “torturar”.
Essa origem inquietante ajuda a entender por que, ainda hoje, ambientes laborais tóxicos podem reproduzir lógicas de dominação e humilhação.
O assédio moral, nesse sentido, é uma forma moderna de tortura simbólica : silenciosa, persistente, institucionalizada
Raízes históricas e o nascimento do conceito
O assédio moral é tão antigo quanto as relações humanas. Como dizia Hobbes, “o homem é o lobo do próprio homem”.
Durante séculos, práticas de humilhação foram naturalizadas. Foi só nos anos 1980 que o médico alemão Heinz Leymann começou a estudar o fenômeno no ambiente de trabalho e, posteriormente, pela psiquiatra francesa Marie-France Hirigoyen1, que conceituou o assédio moral.
“Qualquer conduta abusiva (gesto, palavra, comportamento, atitude…) que atente, por sua repetição ou sistematização, contra à dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa.”
O que é assédio moral?
Assédio moral é uma violência psicológica repetitiva que humilha, desvaloriza ou isola. Pode ocorrer em qualquer ambiente - trabalho, escola, família - e se disfarça de brincadeira, cobrança ou autoridade.
Características principais:
- Repetição sistemática;
- Intenção (dolo) de ferir à dignidade humana ou controlar.
Exemplo prático: Pense-se em um servidor público que, diariamente, é ignorado nas reuniões, recebe tarefas inúteis, é desvio de funções, sendo alvo de piadas sobre sua competência.
Isso não é má gestão - tem nome: é assédio moral.
O olhar jurídico: assédio moral no serviço público
Toda conduta reiterada dos agentes públicos, no âmbito da Administração, que deteriorando o ambiente do trabalho e qualidade do serviço, viola a dignidade humana ou/e a integridade física e emocional dos servidores públicos.
Essa lição reforça que o assédio moral não é apenas uma questão de comportamento inadequado - é uma violação institucional que compromete os fundamentos da República.
Tais práticas, infelizmente comuns em órgãos públicos, devem ser combatidas com políticas de:
- Políticas de prevenção;
- Responsabilização dos agressores;
- Respeito aos princípios constitucionais da dignidade humana, legalidade, impessoalidade e moralidade.
A dignidade humana, nesse contexto, não é um ideal abstrato: é um direito fundamental que deve ser protegido em cada relação de trabalho, especialmente quando o Estado é o empregador.
O impacto invisível
O assédio moral não quebra ossos, mas quebra pessoas. A vítima pode desenvolver:
- Ansiedade;
- Depressão;
- Insônia;
- Fadiga crônica;
- Baixa autoestima;
- Dificuldade de concentração;
- Síndrome de burnout;
- Perda da libido;
- Pensamentos suicidas.
Esses efeitos comprometem a saúde mental e a vida profissional e familiar. É como viver sob uma nuvem constante de medo e insegurança.
A linguagem silenciosa da violência
O assediador prefere, em regra, a manifestação não verbal - para dificultar a prova e escapar da responsabilização.
Quando acusado, diz que foi mal-entendido ou que o servidor é sensível demais.
Exemplos de condutas não verbais: Suspiros, sorrisos sarcásticos, trocadilhos maliciosos, indiferença, silêncio forçado, olhares de desprezo, ignorar a existência da vítima, “colocar na geladeira”, controlar tempo de banheiro, metas impossíveis
O que diz a legislação brasileira?
Embora o assédio moral ainda não seja tipificado como crime no CP, ele pode ser enquadrado em ações civis por danos morais.
No ambiente de trabalho, na iniciativa privada, a CLT - Consolidação das Leis do Trabalho permite que o empregado peça rescisão indireta do contrato em casos de abuso.
Algumas decisões judiciais já reconheceram o assédio como motivo para indenizações significativas
Segundo a Convenção 190 da OIT (2019), basta uma única conduta perversa para caracterizar o assédio moral. É bem garantista.
Contudo, a interpretação predominante na doutrina e jurisprudência brasileira ainda exige que a conduta seja reiterada, ou seja, que ocorra de forma sistemática e prolongada. O que pode dificultar a responsabilização em casos graves de agressão única.
Essa exigência busca diferenciar o assédio moral de conflitos pontuais ou desentendimentos ocasionais; mas também pode dificultar a responsabilização em casos graves de agressão única.
Lei pioneira: Rio de Janeiro sai na frente
A lei 3.921/02, do Estado do RJ, foi a primeira a enfrentar o assédio moral no serviço público.
O art. 2º define:
“Considera-se assédio moral no trabalho [...] a exposição do funcionário, servidor ou empregado a situação humilhante ou constrangedora, ou qualquer ação, ou palavra, gesto, praticada de modo repetitivo e prolongado [...] por agente [...] que, abusando da autoridade que lhe foi conferida, tenha por objetivo ou efeito atingir a autoestima e a autodeterminação do subordinado, com danos ao ambiente de trabalho, aos serviços prestados ao público e ao próprio usuário, bem como, obstaculizar a evolução da carreira ou a estabilidade funcional do servidor constrangido.”
Essa norma reconhece que o assédio afeta o indivíduo, o ambiente de trabalho e os serviços prestados à sociedade.
Desvio de função: o servidor “faz de tudo”
A mesma lei considera assédio moral o desvio de função. Por exemplo: O servidor técnico judiciário é designado para funções de analista ou para tarefas triviais ou incompatíveis com seu cargo. Surge o servidor “faz de tudo”.
Dizem que os estagiários de Pindorama elaboram despachos, decisões e sentenças. Será verdade?
O desvio de função é assédio moral. É também improbidade administrativa.
Súmula 378 do STJ: o direito à reparação
A súmula 378 do STJ reconhece:
“Reconhecido o desvio de função, o servidor faz jus às diferenças salariais decorrentes.”
Mas o problema não é só financeiro. O desvio de função humilha, desvaloriza e adoece. É uma forma de violência institucional.
O crime que ainda não é crime
Apesar da gravidade do assédio moral, ele ainda não é tipificado como crime no CP brasileiro.
Em 2019, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 4.742/01, que propõe criminalizar o assédio moral no trabalho.
O texto foi enviado ao Senado em 13 de março de 2019 - e desde então, está engavetado. Tudo parado! Por que a má vontade do Senado com um tema importante para à sociedade?
A proposta define o crime como:
“Ofender reiteradamente a dignidade de alguém, por meio de atos que causem humilhação, constrangimento ou degradação no ambiente de trabalho.”
A aprovação desse projeto pelo Senado seria um avanço histórico, pois permitiria responsabilizar penalmente os agressores e proteger as vítimas com mais eficácia.
Enquanto isso, o assédio moral segue livre, leve e solto, sendo tratado como infração administrativa ou causa de indenização civil - o que, muitas vezes, não é suficiente para coibir a prática; sendo o Estado responsabilizado objetivamente.
A ausência de tipificação penal revela uma lacuna institucional: o Estado reconhece o problema, mas não o enfrenta com a força da lei criminal.
E assim, o agressor segue impune. E a vítima, invisível.
Elementos normativos e a prova do assédio moral
Do ponto de vista jurídico, basta:
- Conduta reiterada;
- Violação da dignidade.
Não é necessário comprovar dano psíquico ou físico. Isso evita que a punição fique refém de laudos periciais subjetivos.
A conduta abusiva, por si só, já é uma afronta à dignidade humana. Mas, não se esqueça: o ônus da prova é de quem acusa.
O que o assediado pode fazer?
Quem sofre assédio moral não deve se calar. Há caminhos para reagir com segurança e dignidade: Reconhecer o abuso. Entender que humilhações repetidas não são normais. Não, mesmo!
- Documentar tudo: anotar datas, locais, testemunhas e guardar mensagens. Buscar apoio psicológico e jurídico: cuidar da saúde mental e conhecer seus direitos.
- Denunciar: procurar ouvidorias, sindicatos, Ministério Público (quando o assédio for institucional) ou Defensoria Pública. Evitar o isolamento: conversar com colegas de confiança e fortalecer redes de apoio.
O assédio moral é, também, uma violência institucional. Reagir exige coragem e cidadania.
Uma praga a ser combatida
O assédio moral, como fenômeno social de tempos antigos, porém de reconhecimento recente, configura-se como uma praga a ser combatida - por razões humanísticas, sociais e econômicas.
Ele fere a dignidade, adoece servidores e compromete a eficiência da Administração.
O assediador sabota o ambiente, o serviço e a saúde de quem trabalha. E quando o Estado tolera essa prática, torna-se cúmplice da destruição silenciosa de talentos e vocações.
Combater o assédio moral é mais do que proteger o servidor - é defender à democracia.
Caminhos para a cura
Superar o assédio moral exige tempo, apoio e reconstrução da autoestima. Terapia, redes de apoio e ambientes saudáveis são fundamentais.
Mas também é preciso que a sociedade reconheça essa violência e se comprometa com a prevenção.
Conclusão
Combater o assédio moral no serviço público exige ações concretas e estruturais que envolvem: prevenção, acolhimento e responsabilização.
É necessário fortalecer as ouvidorias, criar protocolos de acolhimento, capacitação de gestores e servidores e seminários sobre o tema.
O assédio moral continua sendo tratado como um capricho de gente sensível. Enquanto isso, servidores adoecem, trabalhadores se calam e chefes abusivos ganham medalhas por “liderança”.
No Brasil, infelizmente, ainda se acredita que humilhar é uma forma de motivar. E quando alguém denuncia, dizem que é mimimi - como se dignidade fosse luxo e respeito, frescura.
Se o soco fosse no corpo, talvez houvesse escândalo. Mas como é na alma, segue o baile.
E o agressor, claro, continua sendo promovido e não punido.
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1 HIRIGOYEN, Marie-France, Mal-Estar no Trabalho- Redefinindo o Assédio Moral, p.17, 9ª ed., 2017, Bertran Brasil.
2 FERRAZ, Renato, Assédio Moral no Serviço Público-Violação da Dignidade Humana, 2014, p.54.