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Da revolução industrial à revolução dos dados

As transformações tecnológicas e culturais impulsionadas pela IA estão exigindo novos modelos de gestão, propósito e liderança na advocacia moderna.

3/12/2025

A história da humanidade é, em grande medida, a história das transformações do trabalho. Cada revolução produtiva reorganizou não apenas a economia, mas também a forma como os indivíduos se relacionam, constroem sentido e definem o que é valor. O Direito, enquanto expressão institucional dessa organização social, sempre acompanhou, ainda que com certo atraso, os movimentos de mutação do trabalho. 

O que se observa agora, com a ascensão da IA generativa, é uma nova reconfiguração estrutural, comparável àquelas que marcaram o surgimento do assalariamento industrial e, posteriormente, a transição para a economia de serviços e conhecimento.

Da mecanização à inteligência de dados

O mundo jurídico, tradicionalmente vinculado à produção intelectual e à interpretação de normas, sempre acreditou estar imune às grandes substituições tecnológicas e a mecanização parecia um risco distante, destinado às fábricas e linhas de montagem. No entanto, a automação atual não substitui apenas a força física: ela adentra o campo cognitivo, invadindo áreas antes consideradas exclusivamente humanas, como a análise de documentos, a redação técnica e até a formulação de argumentos. O que muda, portanto, não é apenas o modo de executar o trabalho, mas a própria natureza do que se entende por trabalho jurídico.

A compreensão desse fenômeno exige um olhar histórico. Durante a revolução industrial, o motor a vapor transformou o artesão em operário, substituindo a habilidade manual pela repetição padronizada. Surgiu o tempo medido, o salário e a alienação que Karl Marx descreveu como a separação entre o trabalhador e o produto de seu trabalho. 

A lógica de produção em série, que mais tarde seria refinada pelo taylorismo e pelo fordismo, definiu o paradigma da eficiência mecânica: produzir mais em menos tempo, reduzir custos, eliminar desperdícios. O Direito respondeu a esse modelo criando normas trabalhistas, contratos coletivos e uma estrutura de proteção social baseada na figura do empregado subordinado.

Com o avanço do século XX, as ideias de Peter Drucker introduziram uma ruptura nesse modelo e o conceito de “trabalhador do conhecimento” deslocou o foco da produção física para a produção intelectual. A eficiência deixou de ser apenas a relação entre insumo e produto e passou a depender da capacidade de pensar estrategicamente, resolver problemas e gerar valor a partir de informação. 

Drucker já antecipava que a gestão do futuro dependeria menos de hierarquia e mais de propósito, menos de comando e mais de autonomia. Era o início de uma nova lógica produtiva, que hoje atinge seu ápice com a automação cognitiva e a gestão orientada por dados.

A crise do modelo tradicional de escritório

A advocacia se encontra exatamente nesse ponto de inflexão. O modelo tradicional de escritório, baseado na troca direta de horas por honorários, começa a demonstrar sinais de esgotamento. As demandas de clientes, cada vez mais informados e pressionados por eficiência, exigem previsibilidade, transparência e resultados mensuráveis. 

O tempo isoladamente deixa de ser o principal indicador de produtividade e a noção de valor jurídico passa a estar associada ao impacto gerado, à capacidade de antecipar riscos e de transformar informações complexas em decisões estratégicas.

Nesse contexto, as plataformas digitais de gestão, passam a representar expressões concretas de um novo modelo de trabalho. Elas incorporam princípios da revolução dos dados: descentralização da informação, automação de tarefas repetitivas e valorização do julgamento humano em etapas de maior complexidade e responsabilidade. 

Então, o que está em jogo é uma redefinição da natureza da advocacia, que deixa de ser essencialmente artesanal para se tornar científica e mensurável, sem perder o caráter ético e humano que lhe dá sentido.

O advogado diante da automação cognitiva

A comparação histórica permite compreender o alcance dessa transformação. Assim como o tear mecânico multiplicou a capacidade produtiva de um artesão no século XIX, a IA multiplica hoje a capacidade analítica do advogado contemporâneo, mas o impacto social, contudo, é ambíguo. 

De um lado há o risco da precarização e da substituição de profissionais, de outro abre-se um espaço inédito para o florescimento de novas competências, baseadas em criatividade, empatia, interpretação crítica e ética aplicada. A diferença entre o profissional substituível e o indispensável passa a residir na qualidade do julgamento, não na velocidade de execução.

O Fórum Econômico Mundial projeta que, até 2030, mais de 40% das tarefas jurídicas poderão ser automatizadas. A McKinsey confirma que o setor jurídico é um dos mais suscetíveis à substituição parcial de funções cognitivas, mas também um dos que mais podem se beneficiar da requalificação e da redefinição de papéis. 

Além disso, o relatório da Harvard Business Review sobre o futuro do trabalho jurídico destaca que a automação não elimina a advocacia, mas exige sua reinvenção, tornando indispensável o domínio de tecnologias e indicadores de desempenho.

Gestão, propósito e cultura organizacional

Essa transformação não é apenas tecnológica: é cultural. O modelo de gestão tradicional, centrado na hierarquia e no controle, perde eficácia em um ambiente de alta complexidade e velocidade de mudança. As ideias de Frederic Laloux sobre as organizações “teal”, autogeridas, baseadas em propósito e confiança, ganham aderência entre escritórios que buscam sustentabilidade e engajamento e a liderança, nesse novo contexto, não se define pela autoridade formal, mas pela capacidade de inspirar sentido e promover autonomia. 

Ou seja, o advogado-líder deixa de ser o detentor exclusivo do conhecimento jurídico para se tornar o articulador de uma cultura orientada por resultados e aprendizado contínuo.

Pesquisas mais recentes da Forbes e da MIT Sloan Management Review, revista do MIT, convergem para um ponto: as empresas que adotam práticas baseadas em dados e propósito superam em até 30% o desempenho daquelas que operam em estruturas tradicionais. No campo jurídico, isso significa que a combinação de tecnologia, transparência e propósito não é mais diferencial competitivo, mas condição de sobrevivência. Escritórios que insistirem em modelos baseados apenas em horas faturadas e controle rígido de jornada tendem a perder talentos e clientes para organizações mais ágeis, colaborativas e alinhadas a valores contemporâneos.

A racionalidade instrumental e o risco da alienação tecnológica

A teoria crítica, especialmente em autores como Habermas e Adorno, ajuda a compreender a dimensão social dessa mudança. A racionalidade instrumental, aquela que reduz o trabalho humano à mera eficiência técnica, tende a produzir alienação e perda de sentido. 

Já a tecnologia, quando não mediada por um propósito ético e coletivo, pode transformar o advogado em executor de algoritmos, em vez de intérprete da realidade social. É nesse ponto que a gestão por propósito, defendida por Laloux e aprofundada por Daniel Pink, assume papel central. A motivação intrínseca, baseada na autonomia, maestria e propósito, substitui o controle externo como força motriz da produtividade moderna.

No Brasil, o cenário jurídico reforça a urgência desse debate. Dados da OAB e do Censo Jurídico indicam um crescimento contínuo no número de advogados, ao mesmo tempo em que muitas áreas tradicionais se aproximam da saturação. O excesso de profissionais e a competição por preço corroem as margens e dificultam a sustentabilidade financeira dos escritórios. 

A automação, nesse contexto, surge como oportunidade de reposicionar a advocacia, permitindo que o tempo humano seja dedicado àquilo que as máquinas ainda não conseguem fazer: compreender o contexto, negociar, mediar, decidir com base em valores e não apenas em probabilidades.

Controladoria Jurídica e gestão por dados

O conceito de Controladoria Jurídica, que se consolidou nas últimas duas décadas, já apontava nessa direção. A introdução de indicadores, dashboards e metas de desempenho trouxe para o Direito a racionalidade de gestão que Drucker e Kotler aplicaram ao mundo empresarial. 

No entanto, a simples medição não basta, é preciso interpretar os números, compreender o comportamento dos dados e transformá-los em inteligência estratégica. A gestão orientada por dados exige cultura, não apenas software, exige que cada membro do escritório entenda que o dado não é um instrumento de vigilância, mas de aprendizado coletivo.

Essa mudança cultural exige novas lideranças. Jim Collins, em sua análise sobre empresas que fazem a transição do “bom ao excelente”, descreve a figura do líder de nível 5: aquele que combina humildade pessoal com determinação profissional. 

No universo jurídico, essa liderança se manifesta na capacidade de equilibrar técnica e empatia, autoridade e escuta, resultado e propósito. Escritórios que cultivam essa cultura tendem a reter talentos e desenvolver uma identidade forte, o que, por sua vez, se reflete em maior confiança dos clientes e na solidez do negócio.

O trabalho híbrido e o escritório digital

O trabalho híbrido e assíncrono, acelerado pela pandemia, consolidou de vez a descentralização das equipes jurídicas. A gestão à distância, antes vista como inviável, mostrou-se não apenas possível, mas produtiva, desde que sustentada por processos digitais e indicadores claros. 

O foco deixa de estar no controle de presença e passa a residir na entrega de valor. É a tradução prática daquilo que Drucker antecipou como a maior revolução do século XXI: a transformação do conhecimento em produtividade.

O dado como novo ativo da advocacia

A economia de dados redefine a própria noção de propriedade intelectual. Em um ambiente no qual modelos de IA são treinados com volumes massivos de informações jurídicas, a vantagem competitiva não está apenas no acesso ao conhecimento, mas na capacidade de contextualizá-lo. 

A advocacia do futuro será aquela capaz de dialogar com a IA, não em submissão, mas em parceria. O advogado deixa de ser o único produtor de conhecimento jurídico para se tornar curador e estrategista, responsável por atribuir sentido, calibrar decisões e garantir a ética do processo.

O impacto social desse movimento ainda está em construção e o risco de concentração de poder nas grandes plataformas tecnológicas é real. Tal como ocorreu nas revoluções industriais anteriores, há um período de assimetria em que poucos detêm os recursos tecnológicos e muitos se adaptam a condições precárias. 

No entanto, a história também ensina que cada revolução produtiva gera, em médio prazo, novas formas de organização e prosperidade. A advocacia que compreender essa lógica poderá liderar a transição, não apenas sobreviver a ela.

A tecnologia como instrumento de libertação

A tecnologia, em si, é neutra, o que define seu impacto é o modelo de gestão que a orienta. Se for usada apenas para aumentar o controle e reduzir custos, reproduzirá a lógica alienante da primeira revolução industrial, mas se for usada para ampliar a autonomia, o aprendizado e o propósito, poderá inaugurar uma nova era de humanização do trabalho. O desafio das lideranças jurídicas contemporâneas é exatamente esse: utilizar a Inteligência Artificial como instrumento de libertação, não de subordinação.

A cultura organizacional é o verdadeiro motor dessa transformação. Escritórios que cultivam confiança e transparência conseguem implementar tecnologia sem resistência, pois a veem como aliada e não ameaça. 

A gestão moderna entende que o dado pertence a todos, e que o conhecimento coletivo supera qualquer genialidade individual. A colaboração, conceito central em autores como Aaron Ross e Reid Hoffmann, deixa de ser uma palavra de moda e se torna estratégia de crescimento sustentável. A inteligência coletiva é a nova vantagem competitiva.

Automação, propósito e dados: a tríade da nova advocacia

O futuro do trabalho jurídico será moldado por três forças complementares: automação, propósito e dados. 

A automação libera tempo humano, o propósito direciona esse tempo para o que tem valor, e os dados fornecem a inteligência necessária para medir e aprimorar continuamente o desempenho. 

Essa tríade redefine a estrutura de poder dentro dos escritórios, substituindo a autoridade hierárquica pela autoridade do conhecimento e pela confiança na equipe. Quando todos compreendem os objetivos e métricas, o controle externo se torna desnecessário.

Dessa forma, em um mundo saturado de informações e mediado por algoritmos, o papel social do advogado ganha contornos ainda mais relevantes. 

A função de interpretar, contextualizar e proteger direitos torna-se essencial em uma sociedade que confunde velocidade com verdade. A ética profissional passa a incluir a responsabilidade sobre o uso da tecnologia, o tratamento de dados e o impacto das decisões automatizadas. 

A gestão jurídica, portanto, não é apenas técnica, mas também política no sentido gramsciano: é instrumento de construção de hegemonia cultural e de defesa do humanismo em meio à lógica algorítmica.

Liderar a mudança, não resistir a ela

As transformações em curso não permitem neutralidade. Assim como as revoluções anteriores, a era da IA impõe escolhas. Pode-se resistir e insistir em modelos ultrapassados, ou pode-se aprender com a história e liderar a mudança. 

A advocacia que se adaptará não será a que tiver mais tecnologia, mas a que compreender melhor o significado humano do trabalho em meio à automação. É nessa interseção entre ética, gestão e tecnologia que se desenha o novo paradigma da profissão jurídica.

A história ensina que toda revolução produtiva redefine o papel do trabalho, mas também cria novos sentidos de comunidade e propósito. A advocacia, ao adotar ferramentas digitais e IA, tem a oportunidade de se reinventar como profissão de impacto social, capaz de unir eficiência e justiça, técnica e humanidade. 

A transformação é inevitável, mas o sentido dessa transformação ainda está em disputa, cabe aos líderes jurídicos escolherem se serão espectadores ou protagonistas da próxima revolução.

O futuro do trabalho jurídico já começou, e ele não será um retorno à fábrica de horas, mas um avanço em direção à advocacia consciente, colaborativa e guiada por propósito. 

Assim como o vapor moveu o século XIX e a eletricidade impulsionou o XX, a IA e os dados conduzirão o XXI. A diferença é que, desta vez, o motor está dentro da mente e do coração humanos. E é exatamente aí que reside a verdadeira inovação.

Eduardo Koetz
Eduardo Koetz é advogado, sócio-fundador da Koetz Advocacia e CEO do software jurídico ADVBOX . Especialista em tecnologia e gestão, ele também se destaca como palestrante em eventos jurídicos.

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