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Responsabilidade civil subjetiva e os deveres da Bolsa de Valores: Uma análise do REsp 2.157.955/PR

STJ decide que a B3 não foi negligente ao fiscalizar corretoras envolvidas em prejuízos milionários sofridos por investidores.

16/10/2025

Em recente julgado, o STJ se deparou com importante questão que circunda o mercado de capitais: o alcance e os limites da responsabilidade civil da B3 - Bolsa de Valores diante de eventuais prejuízos sofridos pelos investidores. 

No caso concreto, dois investidores, que realizavam operações financeiras por meio da corretora Walpires S.A. CCTVM, sofreram prejuízos milionários após a decretação da liquidação extrajudicial da instituição financeira pelo Banco Central do Brasil. 

A 3ª turma do STJ buscou, portanto, identificar se (i) houve negligência da Bolsa de Valores na fiscalização da corretora ao permitir “que ela permanecesse credenciada, mesmo diante do potencial lesivo aos clientes”; bem como se (ii) houve violação ao dever de transparência “ao não divulgar informações adequadas sobre a solidez das corretoras e os riscos de eventual quebra”

Em primeiro grau, os pedidos foram julgados improcedentes. Contudo, o TJ/PR reformou a sentença e julgou os pedidos dos autores parcialmente procedentes, para condenar a B3 ao pagamento da indenização pelos danos materiais sofridos pelos investidores, abatendo-se do total o valor referente ao limite disponibilizado pelo mecanismo de ressarcimento de prejuízos da B3.1

Após a oposição de embargos de declaração pela B3, os quais foram rejeitados pelo TJ/PR, foi interposto o recurso especial recentemente apreciado pelo STJ.

Em sua análise, o STJ entendeu que, no caso concreto, não houve negligência por parte da B3 ao permitir a manutenção do funcionamento da corretora, pelos seguintes movimentos expostos a seguir.

Em primeiro lugar, a 3ª turma destacou que, muito embora o acórdão recorrido tenha entendido corretamente que o CDC não é aplicável ao caso, o fundamento pelo qual o respectivo código deve ser afastado centra-se na “ausência de prestação de serviços para o mercado de consumo no geral” e não na qualidade dos investidores.

Ficou entendido, portanto, que a B3 é apenas uma intermediadora entre os investidores e as corretoras de valores. Isso, contudo, não exclui a possibilidade de responsabilização da Bolsa em casos que seja confirmada eventual conduta culposa no exercício dessa função específica. Afinal, conforme apontado por Sérgio Cavalieri Filho, “assim como não há sombra sem corpo físico, também não há responsabilidade sem a correspondente obrigação”.2 E, no caso em questão, concluiu-se que à B3 incumbe, na forma do art. 17, §1º da lei 6.385/1976,3 que dispõe sobre o mercado de valores mobiliários, o dever de fiscalização dos seus membros e das operações realizadas. 

Nesse cenário, entendeu o STJ que se estaria diante de hipótese de responsabilidade civil subjetiva extracontratual, sujeita à verificação da culpa - além dos demais requisitos de comprovação de dano e nexo de causalidade, em conjunto. Conforme destacado pelo acórdão em análise, o exame da responsabilidade da B3, no caso concreto, estaria adstrito aos arts. 186 e 187 c/c o art. 927, caput, do CC e às normas específicas do setor, sobretudo a lei 6.385/1976. 

Firmadas essas premissas, a 3ª turma apontou, em segundo lugar, que, na forma da lei 6.385/1976 c/c a instrução CVM 461/07, vigente à época dos fatos, “a B3 tem o dever legal de fiscalizar os membros participantes do mercado por ela administrado, incluindo-se, dentre esses participantes, as corretoras”.

Apesar disso, o STJ entendeu que a B3 não violou esse dever fiscalizatório. Isso porque, ao contrário do que fora decidido pelo Tribunal de origem, a 3ª turma destacou a inexistência de normas impondo, expressamente, à B3 o dever de divulgação aos investidores da situação financeira da corretora e dos procedimentos fiscalizatórios movidos em face da instituição, na forma exigida pelo Tribunal de origem. 

Nesse sentido, entendeu-se que “é incontroverso que não houve o descumprimento desses deveres pela B3, destacando-se a publicação dos processos administrativos, com as decisões aplicando sanções à corretora e seus dirigentes, referenciados tanto pelos autores na inicial, quanto pela recorrente.”

Além disso, quanto à manutenção das atividades da corretora mesmo diante do descumprimento dos requisitos financeiros impostos, entendeu-se que não há que se falar em negligência da B3. Nesse particular, ponderou o STJ que se deve sempre rememorar os termos das sanções legais e infralegais constantes das regulações e instruções normativas aplicadas ao setor. 

Com base nisso, a 3ª turma destacou que “em nenhum momento a lei ou as normas regulamentares impõem que o descumprimento dos requisitos financeiros pela corretora deve acarretar, necessariamente, a imposição das sanções como a de suspensão cautelar ou de necessariamente cancelamento de acesso, o que impediria a corretora de operar na bolsa de valores”.

Isto é, haveria uma discricionariedade reconhecida à B3, enquanto entidade autorregulada, quanto à sanção a ser aplicada em cada hipótese analisada, de modo que “somente a demonstração de manifesta desproporcionalidade entre a sanção aplicada e a conduta praticada poderia justificar a configuração de negligência no dever de fiscalização”, o que, contudo, não restou configurado no caso concreto.

O acórdão de relatoria da ministra Nancy Andrighi, em voto acolhido à unanimidade pela 3ª turma do STJ, reafirma a necessidade de estrita observância às normas específicas que regulam o tema do mercado de capitais e destrincha as responsabilidades e deveres assumidos pelas entidades do ramo, bem como os limites da atuação de cada ente.

________________________

1 O mecanismo de ressarcimento de prejuízos, regulado pela Instrução CVM nº 461/2007, tem a finalidade de assegurar aos investidores o recebimento de um valor a título de indenização em decorrência dos prejuízos causados pela ação ou omissão dos participantes da B3. 

2 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de responsabilidade civil. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 26

3 Art. 17. As Bolsas de Valores, as Bolsas de Mercadorias e Futuros, as entidades do mercado de balcão organizado e as entidades de compensação e liquidação de operações com valores mobiliários terão autonomia administrativa, financeira e patrimonial, operando sob a supervisão da Comissão de Valores Mobiliários. § 1o Às Bolsas de Valores, às Bolsas de Mercadorias e Futuros, às entidades do mercado de balcão organizado e às entidades de compensação e liquidação de operações com valores mobiliários incumbe, como órgãos auxiliares da Comissão de Valores Mobiliários, fiscalizar os respectivos membros e as operações com valores mobiliários nelas realizadas. 

Lucas de Castro Oliveira e Silva
Advogado no Terra Tavares Elias Rosa. Doutorando e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ex-Professor Substituto do Departamento de Direito Civil e Direito Internacional Privado da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ).

Gabriela Coelho Machado da Costa
Advogada no Terra Tavares Elias Rosa. Bacharel em Direito pela UERJ.

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