O que é a verdade? É possível alcançá-la? Ela é absoluta ou relativa? São indagações referentes à filosofia. Tais questões tiveram início com os filósofos pré-socráticos, os denominados naturalistas (como Tales, de Mileto). Porém, a filosofia evoluiu na Grécia em razão do comércio, da religião e da democracia1, tendo como ápice Sócrates, Platão e Aristóteles. Sócrates foi o filósofo que mudou o mundo filosófico com a dialética e o conceito de psyché (alma/essência), com a busca pela verdade ou essência das coisas. Platão, seu aluno, criou o que se denomina hoje de metafísica - a contraposição entre o mundo das formas/ideias e o mundo sensível. Já Aristóteles, pupilo de Platão, deu continuidade ao trabalho dos mestres sob outro ângulo, afirmando que a essência das coisas estavam nelas mesmas. O que esses pensadores tinham em comum é que, para eles, há possibilidade de se chegar à verdade absoluta.
Contudo, a doutrina processual moderna compreende a verdade em um sentido contextual2. Como assim? A verdade no processo se dá pela situação fática nele em exame. Não há verdade substancial, mas verdade contextual! Não defendo, aqui, que há pura e simplesmente uma verdade formal do processo. A verdade depende do contexto, ora! Falar em “verdade real” é permitir abusos por parte do Estado-juiz, que lançará mão de todos os meios - mesmo que ilegais ou inconstitucionais - para alcançá-la.
“Verdade real”: Um álibi para subjetivismo e arbitrariedade
Primeiramente, é importante analisar que a jurisprudência contemporânea ainda utiliza o conceito de verdade substancial no processo penal de forma errônea. Por que equivocada? Pois no processo penal não há uma “verdade dos fatos”. O processo penal visa à reconstrução dos fatos para condenar ou absolver, visto que não há possibilidade de voltar no tempo e ver se, de fato, aquele delito ocorreu, nas lições de Aury Lopes Júnior3. Parte-se, desse modo, de uma reconstrução dos fatos com as provas produzidas em juízo, conforme o crivo do contraditório e da ampla defesa, respeitando o devido processo penal. Ressalto que o dia em que houver viagem no tempo, não há necessidade de processo, já que será possível averiguar o fato diretamente, não é? Como não há essa possibilidade, resta o processo.
A “verdade real” também é utilizada, muitas vezes, como um álibi retórico para o subjetivismo e a arbitrariedade da decisão do intérprete. Há quem a utilize de boa-fé, mas o álibi é dominante. Isso se ampara no que Streck4 denomina de subjetivismo e filosofia da consciência - o famoso “decido conforme minha consciência” e na discricionariedade da interpretação dos fatos tendo como base o “livre” convencimento “motivado” (entre aspas mesmo, porque a fundamentação é deixada de lado em diversos casos!). Filha do positivismo normativista kelseniano, a discricionariedade - entendida como a liberdade do juiz de julgar caso haja lacunas com ampla liberdade (dentro de uma “moldura normativa” que nem é delimitada por Kelsen) - é o ponto-chave da questão que dá embasamento para a (suposta e inalcançável) verdade substancial.
Portanto, o que está por trás da tão aclamada “verdade” propagada por parcela da doutrina e pela jurisprudência nacional é o subjetivismo do intérprete aliado à discricionariedade interpretativa oriunda do positivismo normativista kelseniano, que dá ampla margem de liberdade para que o juiz decida “conforme sua consciência”, “livre” convecimento “motivado”, em busca da verdade substancial inalcançável, pois a verdade é inserida dentro de um contexto fático no bojo do processo.
A “verdade real” e o (des)respeito às “regras do jogo” do sistema acusatório
Em segundo lugar, as regras do processo penal acusatório são imprescindíveis para o devido processo legal. Sem elas, não há justiça inserida no contexto processual. Ocorre que a verdade dos fatos ignora tais regras, gerando diversas injustiças. Lança-se mão de artifícios processuais equivocadamente - como a prisão preventiva, hoje banalizada5 em nome da “verdade” - a fim de alcançá-la a todo custo.
Visto isso, o sistema acusatório, previsto no art. 3º-A, do CPP, separa as funções do magistrado de julgar, do Ministério Público de acusar e do réu de se defender. Porém, o juiz, em muitos casos, viola o princípio dispositivo separador das funções e instrui o processo, ao utilizar, por exemplo, o art. 156, do CPP (flagrantemente inconstitucional), violando sua imparcialidade. Esta faz parte das regras do devido processo penal, sendo norma cogente, inafastável por excelência. Ferindo-a, é passível de nulidade - apesar de que as nulidades, atualmente e de acordo com a jurisprudência do STJ, precisam causar “prejuízo concreto” ao réu (absurdo!), mesmo que sejam absolutas.
Logo, é imperioso ressaltar que as “regras do jogo” precisam ser respeitadas para que o devido processo penal e seus sub-princípios derivados sejam efetivados e a justiça seja resguardada nos casos concretos.
Notas para uma possível solução
Concluindo: uma possível solução para o caso em questão talvez não haja, pois o problema se encontra no senso comum teórico dos juristas. O que se pode fazer - e isso demoraria anos, porque a problemática está arraigada nesse senso comum dos juristas e em sua formação acadêmica e cultural - é alterar esse próprio senso comum hermenêutico amparado na filosofia da consciência e na discricionariedade interpretativa.
Possível solução é a interpretação conforme a Constituição a fim de se filtrar constitucionalmente as normas do CPP que possuem ranços inquisitórios a fim de evitar a discricionariedade interpretativa, jogando para escanteio a “verdade dos fatos” em nome da aplicação direta da CF/88.
Portanto, observa-se que o tema é imprescindível e há um problema da cultura jurídica contemporânea. Contudo, é necessário mudá-lo. Não se sabe até quando tais arbitrariedades perpetuar-se-ão no sistema jurídico brasileiro. Uma coisa é certa: se não alterar o senso comum teórico dos juristas, dificilmente haverá uma alteração hermenêutica substancial no conceito da “verdade real”...
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1 REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. Filosofia: antiguidade e idade média. São Paulo: Paulus Editora, 2017.
2 DIDIER JR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao processo civil, parte geral e processo do conhecimento. 27. ed. São Paulo: JusPodivm, 2025.
3 LOPES JR, Aury. Direito processual penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2019.
4 STRECK, Lênio Luiz. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017.
5 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2025-out-07/a-banalizacao-da-prisao-preventiva/. Acesso em: 15 de out. 2025.