Introdução
A paisagem do crédito ao consumidor foi irrevogavelmente transformada. O arquétipo do gerente de banco, com seu arbítrio analógico e análise discricionária, foi substituído por algoritmos impessoais, cuja eficiência assombrosa decide, em segundos, o destino financeiro de milhões. Com a ascensão das fintechs e a onipresença dos serviços financeiros digitais, o acesso ao crédito tornou-se instantâneo, ubíquo e sedutoramente fácil. Contudo, sob o verniz dessa aparente democratização, prolifera uma epidemia silenciosa: o superendividamento. A questão fulcral que emerge deste novo paradigma não é apenas como proteger o consumidor, mas como redesenhar as fronteiras da responsabilidade corporativa. Este ensaio argumenta que, paradoxalmente, a era do crédito inteligente e automatizado não dilata a culpa das instituições financeiras, mas, ao contrário, solidifica a responsabilidade final e intransferível do consumidor, alicerçada no pilar da autonomia da vontade.
O pilar clássico e a nova blindagem legal
Tradicionalmente, a relação creditícia é regida pelo brocardo pacta sunt servanda - os pactos devem ser cumpridos. A responsabilidade do credor sempre esteve focada no dever de informar, um mandamento central do CDC. A instituição financeira tem a obrigação de apresentar, de forma límpida e inequívoca, todas as condições contratuais: taxas de juros, CET - Custo Efetivo Total, prazos e encargos. A lei do superendividamento (lei 14.181/21) buscou reforçar essa muralha, introduzindo o conceito de "crédito responsável" e exigindo uma avaliação mais criteriosa da capacidade de pagamento. No entanto, constitui um erro interpretativo supor que a lei tenha transferido o ônus decisório ou posicionado o credor como um tutor financeiro do cliente. A premissa fundamental permanece intocada: um consumidor bem-informado é o agente soberano de suas próprias decisões.
A inteligência artificial e a miragem da responsabilidade ampliada
É a entrada da IA - Inteligência Artificial no processo de análise de crédito que acende o debate contemporâneo. Algoritmos perscrutam milhões de pontos de dados - do histórico de crédito tradicional a padrões de consumo online - para modelar um perfil de risco. Críticos argumentam que, ao deterem ferramentas preditivas tão potentes, as empresas teriam uma responsabilidade ampliada sobre a solvência do cliente. Este raciocínio, contudo, desmorona ao ignorar três fatores cruciais:
- O algoritmo é um calculista de risco: A IA não prevê o futuro; ela calcula probabilidades com base em dados pretéritos. O modelo da empresa não tem acesso ao roteiro completo da vida financeira do indivíduo: uma despesa médica imprevista, a perda de um emprego futuro, ou a contração de outra dívida em instituição concorrente. A visão mais holístico pertence, indelevelmente, ao consumidor. O algoritmo avalia o risco para o negócio, não a prudência para o cliente.
- A decisão final como ato de soberania: A tecnologia pode servir a oferta de forma otimizada, utilizando nudges comportamentais e marketing cirúrgico. Contudo, o ato final - a aceitação dos termos - é uma manifestação inequívoca da vontade. Equiparar uma oferta de crédito digital, por mais personalizada que seja, à coação ou à indução irresistível ao erro é uma tese juridicamente frágil e perigosamente paternalista, que trata o indivíduo capaz como um ser desprovido de agência.
- O imperativo da autoproteção (Self-Help): Em um ecossistema de crédito farto, o ônus da autoproteção se intensifica. Espera-se que o indivíduo avalie o próprio orçamento antes de assumir um compromisso financeiro, da mesma forma que pesquisa antes de uma compra significativa. A mera disponibilidade da oferta não gera a obrigação de seu aceite. Responsabilizar a empresa por "oferecer em demasia" seria análogo a culpar uma editora pela vasta quantidade de livros que leva um leitor a comprar mais do que pode ler.
Conclusão
A era do crédito algorítmico não deve ser interpretada como um agravante da responsabilidade empresarial pelo superendividamento, mas sim como um catalisador que reforça a necessidade de autonomia e literacia financeira por parte do consumidor. A regulação e a jurisprudência devem evoluir para garantir transparência máxima e punir com rigor as falhas processuais no ambiente digital. Contudo, atribuir à empresa a culpa pela escolha soberana do indivíduo é infantilizar o consumidor e instituir um perigoso precedente de irresponsabilidade pessoal. A proteção genuína não reside em remover a agência do indivíduo, mas em empoderá-lo com informação clara e responsabilizá-lo por suas escolhas, consolidando um mercado de crédito mais maduro e consciente.
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Fonte
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O fenômeno do superendividamento e seu reflexo na jurisprudência - STJ, acessado em junho 25, 2025, https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/28022021-O-fenomeno-do-superendividamento-e-seu-reflexo-na-jurisprudencia2.aspx
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Lei do Superendividamento: o que, de fato, é reconhecido como dívida? - Análise, acessado em junho 25, 2025, https://analise.com/opiniao/lei-do-superendividamento-o-que-de-fato-e-reconhecido-como-divida
O FENÔMENO DO SUPERENDIVIDAMENTO: A LEGISLAÇÃO Nº 14.181 E O DIREITO DO CONSUMIDOR - ISSN 1678-0817 Qualis B2, acessado em junho 25, 2025, https://revistaft.com.br/o-fenomeno-do-superendividamento-a-legislacao-no-14-181-e-o-direito-do-consumidor/
IA na concessão de crédito: mais precisão,agilidade e democratização - Matera, acessado em junho 25, 2025, https://www.matera.com/br/blog/ia-na-concessao-de-credito/
A responsabilidade das fintechs na concessão de crédito ao ..., acessado em junho 25, 2025, https://vradvogados.com.br/a-responsabilidade-das-fintechs-na-concessao-de-credito-ao-consumidor/
Como a economia comportamental pode ... - FGV Direito SP, acessado em junho 25, 2025, https://direitosp.fgv.br/sites/default/files/arquivos/carolina-gabriele-spinardi-pinto_proj_378563.pdf