Introdução
A publicação anual do relatório “Justiça em Números” pelo CNJ é o momento em que a política judiciária brasileira se confronta com seu espelho empírico. A edição de 2025, referente ao ano-base de 2024, reflete uma imagem preocupante: o Índice de Conciliação do Poder Judiciário, um dos principais termômetros da pacificação social, recuou de 12,3% para 10,4% (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2025).
Este número, longe de ser uma mera oscilação estatística, confirma o diagnóstico de esgotamento de um modelo. Ele evidencia que a estratégia de solução de conflitos, massivamente concentrada no ambiente intraprocessual, atingiu um teto de eficiência e, agora, demonstra claros sinais de retrocesso.
O diagnóstico inequívoco: O paradoxo da estrutura judicial
A queda no índice de conciliação torna-se ainda mais alarmante quando analisada sob a ótica do investimento estatal. Constata-se que, ao final de 2024, o Brasil contava com uma rede de 2.135 CEJUSCs - Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, estrutura focada nas sedes de comarcas e em contínua expansão (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2025). Configura-se, portanto, um paradoxo institucional: o país nunca teve tantos centros destinados a conciliar, mas nunca conciliou tão pouco em termos proporcionais.
O fracasso do modelo reside em sua própria concepção. A conciliação e a mediação, quando ofertadas apenas após o ajuizamento da ação, chegam tarde demais. O conflito já foi formalizado, as partes já se armaram com teses antagônicas, o custo emocional e financeiro da "guerra" judicial já foi internalizado.
O CEJUSC, nesse cenário, opera como um hospital de campanha tentando tratar feridos em meio a uma batalha em andamento, quando a estratégia mais eficaz seria evitar a própria batalha. Trata-se de uma política de remediação, não de prevenção. A cultura do litígio, profundamente arraigada, transforma o processo judicial na primeira - e muitas vezes única - porta que o cidadão enxerga para a solução de sua controvérsia.
A solução ignorada: O poder pacificador do foro extrajudicial
Enquanto o Judiciário busca, com recursos públicos finitos, expandir sua estrutura de pacificação, uma vasta e poderosa infraestrutura de prevenção de litígios, já presente em todos os municípios do país e sem custo algum para o erário, é cronicamente subutilizada como ferramenta de desjudicialização ativa para conciliações e mediações. Os 12.512 cartórios extrajudiciais do Brasil - Tabelionatos de Notas e de Protesto, Registros de Imóveis, Registros de Títulos e Documentos e Registros Civis - não são meros formalizadores de atos; são, por natureza, agentes de pacificação.
Notários e registradores, em sua função diária, já atuam como os mais eficientes filtros pré-processuais, garantindo que negócios jurídicos nasçam hígidos, prevenindo incontáveis disputas futuras. Contudo, seu potencial para atuar na solução de conflitos já existentes é imenso e precisa ser urgentemente integrado à política nacional de acesso à justiça.
Este potencial, aliás, não é uma mera conjectura ou uma proposta de lege ferenda. Trata-se de uma competência já positivada e regulamentada. A lei 8.935/94 (a lei dos notários e registradores), em seu art. 7º-A (BRASIL, 1994), é explícita ao atribuir aos notários a faculdade de realizar mediações e conciliações. Essa prerrogativa é ecoada pela própria lei de mediação (lei 13.140/15) (BRASIL, 2015), que prevê a figura do mediador extrajudicial, papel que os delegatários, como profissionais do direito dotados de fé pública e imparcialidade, podem exercer com excelência, conforme prevê seu art. 42.
O passo definitivo para a consolidação dessa competência veio do próprio CNJ. O Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial (provimento 149/23) dedica um capítulo inteiro (Capítulo II do Livro I de sua Parte Geral) a regulamentar detalhadamente a conciliação e a mediação nas serventias extrajudiciais (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2023). O provimento estabelece os princípios, os procedimentos, os deveres dos mediadores/conciliadores e a força do termo final do acordo, que pode constituir título executivo extrajudicial. Portanto, a questão não é mais "se" os cartórios podem atuar, mas "como" integrar essa estrutura já regulamentada à política de tratamento de disputas do país. A ferramenta já foi criada e normatizada pelo órgão máximo de controle do Judiciário; falta apenas a decisão política de utilizá-la em larga escala.
Mais do que isso, a própria legislação registral já aponta para essa expansão do escopo social. A lei de registros públicos (lei 6.015/73), em seu art. 29, § 3º (BRASIL, 1973), qualificou expressamente os ofícios do registro civil das pessoas naturais como "ofícios da cidadania", autorizando-os a prestar outros serviços por meio de convênios. Essa vocação, que já se materializa na emissão de documentos como CPF e RG, demonstra a intenção do legislador em transformar as serventias em verdadeiros centros de atendimento ao cidadão. O que se propõe, agora, é a expansão dessa lógica para todas as especialidades, não apenas como emissores de documentos, mas como protagonistas na pacificação social, seja pré-processual ou intraprocessual.
Como passo inicial e pragmático, o arcabouço legal existente já permite uma integração imediata. A possibilidade de celebração de convênios entre as serventias extrajudiciais e o Poder Judiciário é o caminho para um projeto-piloto de grande escala. Nesse primeiro momento, os cartórios poderiam atuar em conciliações e mediações intraprocessuais, sob a gestão dos CEJUSCs, auxiliando a desafogar a pauta dos centros judiciários.
Esta colaboração serviria para consolidar a confiança do sistema na capacidade pacificadora do foro extrajudicial, pavimentando o caminho para a fase seguinte e mais impactante: a positivação legislativa dos filtros pré-processuais como condição de procedibilidade, transformando a tentativa de conciliação extrajudicial na porta de entrada preferencial do sistema de justiça.
O precedente do CNJ e a condição de procedibilidade: O caso da resolução 547/24 como filtros pré-processual obrigatório para as execuções fiscais
Qualquer proposta de mudança estrutural enfrenta a barreira do ceticismo. No entanto, o próprio CNJ já deu um passo decisivo que serve como um projeto-piloto de sucesso irrefutável: a resolução 547/24 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2024). Esta norma instituiu uma política de incentivo à cooperação entre os Tabelionatos de Protesto e as Procuradorias, visando à recuperação de créditos fiscais.
A norma não surgiu de uma elaboração teórica, mas como uma resposta direta e pragmática ao maior gargalo do Judiciário. Nos "considerandos" da resolução, o CNJ expõe o diagnóstico alarmante do Relatório Justiça em Números: as execuções fiscais representam 34% do acervo pendente, com uma taxa de congestionamento de 88% e um tempo médio de tramitação de longos 6 anos e 7 meses (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2023).
Diante desse cenário, o CNJ não agiu no vácuo. A resolução 547/24 foi a consequência direta e a regulamentação prática da tese vinculante firmada pelo STF no julgamento do Tema 1.184 de repercussão geral (RE 1.355.208) (BRASIL, 2023). Nesta decisão paradigmática, o STF não apenas validou o protesto da Certidão de Dívida Ativa, mas foi além, estabelecendo um verdadeiro itinerário de desjudicialização ao decidir que: O ajuizamento da execução fiscal dependerá da prévia adoção da tentativa de conciliação ou adoção de solução administrativa; e do protesto do título, salvo por motivo de eficiência administrativa, comprovando-se a inadequação da medida (BRASIL, 2023).
O fluxo proposto é revolucionário em sua simplicidade e eficácia: antes de ajuizar uma custosa e demorada ação de execução fiscal, a Fazenda Pública deve, primeiro, tentar uma negociação prévia com o devedor, podendo valer-se da SNP - Solução Negocial Prévia uma nova ferramenta de negociação extrajudicial prévia ao protesto disponibilizada pela serventia extrajudicial antes da efetivação do protesto extrajudicial da CDA - Certidão de Dívida Ativa. Apenas se essas etapas se mostrarem infrutíferas é que a via judicial poderá ser utilizada.
A Suprema Corte, portanto, fez mais do que permitir; ela condicionou. O que o CNJ fez, na prática, foi regulamentar uma condição de procedibilidade para a execução fiscal já estabelecida pelo STF. Isso nos leva ao ponto crucial da discussão: a qualificação do interesse de agir.
A lógica é a mesma que o STF já havia delineado em outros contextos, como no Tema 350 (prévio requerimento ao INSS) (BRASIL, 2014): exigir uma tentativa de solução extrajudicial prévia não é negar o acesso ao Judiciário; é qualificar o interesse processual. O interesse de agir não se resume à existência de uma dívida não paga; ele se configura na necessidade de invocar a onerosa máquina judicial.
Se a Fazenda Pública dispõe de meios extrajudiciais mais céleres e eficientes - e constitucionalmente validados - para satisfazer seu crédito, o ajuizamento direto da execução, sem antes esgotar essas vias, revela-se uma medida desproporcional e carente de pleno interesse de agir, como bem reconheceu o STF ao invocar o princípio da eficiência administrativa.
Destarte, a resolução 547/24 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2024), fundamentada no Tema 1.184, prova que este modelo funciona para o crédito público, o mais complexo e burocrático de todos. A pergunta que se impõe é inevitável: se a própria Advocacia Pública, para cobrar crédito do Estado, deve primeiro tentar conciliar e protestar a dívida pública, por que o cidadão ou a empresa, para cobrar um crédito privado, pode recorrer diretamente ao Judiciário sem qualquer filtro? Se o princípio da eficiência administrativa justifica essa condição para o Estado, o princípio da eficiência processual (Art. 8º do CPC) não a justificaria com ainda mais força para as disputas privadas?
Nesse sentido, entendemos que a experiência exitosa do protesto deve ser a inspiração ao legislador para uma reforma mais ampla, transformando as serventias extrajudiciais em filtros pré-processuais obrigatórios para diversas matérias já que possuem todo um microssistema regulamentado para atuação na mediação e conciliação de conflitos.
Por uma nova governança pública: Integrar para desafogar
O diagnóstico do Justiça em Números 2025 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2025) impõe uma reflexão ao CNJ. A métrica de sucesso não pode mais ser o "número de CEJUSCs inaugurados". É preciso uma nova governança pública que finalmente derrube o muro entre os foros judicial e extrajudicial, integrando-os em um Sistema de Justiça Multiportas coeso e funcional.
Isso implica a criação de um SIPS-BR - Sistema Integrado de Prevenção e Solução de Conflitos, onde o advogado, ao acessar o sistema PJe para distribuir uma nova ação, seja primeiramente direcionado a um módulo de "triagem", que o informaria sobre a necessidade de cumprir a etapa pré-processual extrajudicial adequada à natureza de sua causa. O cumprimento dessa etapa geraria um certificado ou código de validação, que seria o requisito para a liberação do protocolo da petição inicial.
O recuo no índice de conciliação judicial não é uma derrota, mas uma oportunidade. É a evidência empírica de que o caminho atual se esgotou e que uma nova via, mais eficiente e menos onerosa, está pronta para ser trilhada. A virada para o extrajudicial não é uma ameaça ao Poder Judiciário, mas sim sua maior aliada na luta contra a morosidade e na busca por uma pacificação social mais célere e efetiva. O precedente da resolução 547/24 (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2024), ancorado na decisão vinculante do STF (Tema 1.184) (BRASIL, 2023), já existe. Falta, agora, o protagonismo de transformá-lo de exceção em regra.
Mas enquanto isso não acontece no plano legislativo Federal, os Tribunais de Justiça podem e devem assumir um papel de vanguarda. A legislação atual, notadamente a lei 8.935/94 e a lei 6.015/73, já autoriza a celebração de convênios entre o Poder Judiciário e as serventias extrajudiciais. Urge que as Presidências e Corregedorias-Gerais de Justiça estaduais utilizem essa prerrogativa para firmar parcerias com as entidades representativas dos notários e registradores. O objetivo seria delegar aos cartórios, com sua capilaridade inigualável presente nos 5.570 municípios brasileiros, a realização das audiências obrigatórias de conciliação e mediação prévias, previstas no art. 334 do CPC (BRASIL, 2015).
Os CEJUSCs, nesse modelo, atuariam como coordenadores e gestores dessa vasta rede extrajudicial de pacificação, focando seus recursos na supervisão e nos casos de maior complexidade. Esta seria uma medida de gestão imediata, sem custos adicionais para o erário, que aliviaria a sobrecarga dos centros Judiciários e ofereceria ao cidadão um acesso mais rápido e eficiente aos meios consensuais, concretizando, desde já, os princípios da Justiça Multiportas e da eficiência processual (BRASIL, 2015, Art. 8º). Basta saber por onde se iniciará esse protagonismo e ineditismo em prol da reversão do índice de conciliação do Judiciário nos Estados.
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BRASIL. Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973. Dispõe sobre os registros públicos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 31 dez. 1973. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6015compilada.htm. Acesso em: 17 out. 2025.
BRASIL. Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Regulamenta o art. 236 da Constituição Federal, dispondo sobre serviços notariais e de registro. (Lei dos cartórios). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 21 nov. 1994. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8935.htm. Acesso em: 17 out. 2025.
BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 mar. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 17 out. 2025.
BRASIL. Lei nº 13.140, de 26 de junho de 2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública [...]. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 29 jun. 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13140.htm. Acesso em: 17 out. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário). Recurso Extraordinário 631.240 RG/MG. Repercussão Geral. Necessidade de prévio requerimento administrativo como condição para o acesso ao Judiciário - Ação de concessão de benefício previdenciário. Relator: Min. Luís Roberto Barroso, 27 ago. 2014. DJe 10 nov. 2014. Tema 350. Acesso em: 17 out. 2025.
BRASIL. Supremo Tribunal Federal (Plenário Virtual). Recurso Extraordinário 1.355.208 AgR/SC. Repercussão Geral. Constitucionalidade do protesto de Certidões de Dívida Ativa (CDA) como condição de procedibilidade para o ajuizamento de execuções fiscais. Relatora: Min. Cármen Lúcia, 19 dez. 2023. DJe 1 fev. 2024. Tema 1184. Acesso em: 17 out. 2025.
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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Corregedoria Nacional de Justiça. Provimento nº 149, de 30 de agosto de 2023. Institui o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça - Foro Extrajudicial (CNN/CN/CNJ-Extra), que regulamenta os serviços notariais e de registro. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, DF. Acesso em: 17 out. 2025.
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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução nº 547, de 22 de fevereiro de 2024. Institui medidas e diretrizes de cooperação judiciária entre os órgãos do Poder Judiciário e os Tabelionatos de Protesto de Títulos visando à recuperação do crédito fiscal e à redução do número de execuções fiscais. Diário da Justiça Eletrônico. Brasília, DF. Acesso em: 17 out. 2025.