Migalhas de Peso

As prerrogativas da advocacia e o Tema 1.068 do STF

Defesa das garantias legais e do devido processo frente à execução antecipada da pena, reforçando a função contramajoritária da advocacia.

20/10/2025

“Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.” Assim dispõe o art. 5º, inciso LVII, da CF/88. Começamos com ele porque, talvez, seja a frase mais repetida e, paradoxalmente, mais violada do nosso texto constitucional. E aqui, desde já, fica a pergunta: será que o bom direito adormeceu?

A CF, no art. 5º, inciso XXXVIII, reconhece a instituição do Tribunal do Júri como uma garantia do acusado e não como privilégio do Estado punitivo. E lá estão expressas as suas salvaguardas: a plenitude de defesa, o sigilo das votações e a soberania dos veredictos. Nenhuma dessas cláusulas foi desenhada para fortalecer o poder punitivo. Todas nasceram para proteger o cidadão frente ao Estado.

Quando o constituinte assegurou a soberania dos veredictos, ele não disse que a decisão do júri estaria imune a recursos, tampouco que a execução da pena poderia iniciar-se imediatamente após o julgamento. O que ele quis garantir foi a independência do Conselho de Sentença, livre de interferências de juízes togados, e jamais que esse instituto pudesse ser convertido em instrumento de punição antecipada.

O que se fez com a tese da execução imediata da pena nos crimes dolosos contra a vida foi inverter o sentido da Constituição. O que nasceu como proteção ao acusado transformou-se em ferramenta de punitivismo. Afirmar que a soberania dos veredictos autoriza o início imediato da execução penal é, sob qualquer ótica, inconstitucional, ainda que “declarada constitucional”. Viola frontalmente o art. 5º, inciso LVII, que exige o trânsito em julgado para a formação da culpa.

O art. 283 do CPP é taxativo: ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito, por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso do processo, por prisão temporária ou preventiva. Fora dessas hipóteses, qualquer prisão é ilegal.

O processo penal não pode ser regido por paixões momentâneas, muito menos pela ânsia de punição. A execução provisória da pena, antes do trânsito em julgado, viola a CF e o próprio sentido de justiça. O clamor público não pode justificar a subversão da legalidade.

A prisão é sempre a exceção, e a liberdade, a regra. Essa é a lógica do Estado Democrático de Direito. A CF não admite concessões à conveniência. O princípio da presunção de inocência é cláusula pétrea e limite intransponível ao arbítrio.

As prerrogativas da advocacia e a execução provisória

O que dizer, então, da violação do Estatuto da Advocacia quando, diante de execução imediata da pena, o réu, advogado, é recolhido de forma incompatível com suas garantias legais? A lei 8.906/1994, em seu art. 7º, inciso V, é clara: o advogado possui o direito de não ser recolhido preso antes de sentença transitada em julgado, devendo permanecer em sala de Estado Maior e, na ausência desta, em prisão domiciliar.

A norma não distingue entre prisões cautelares e prisões decorrentes de execução provisória. Ao contrário, abrange toda e qualquer hipótese de prisão antes do trânsito em julgado. Interpretar o dispositivo de modo restritivo seria criar limitação de direito sem previsão legal, afrontando os princípios da legalidade e da reserva legal, pilares constitucionais que limitam a atuação estatal.

O art. 5º, inciso II, da CF reforça: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Este postulado não é mera regra de liberdade individual; é garantia de contenção do poder, vedando que o Judiciário ou qualquer autoridade crie restrições sem amparo normativo.

Não há base jurídica que autorize afastar a prerrogativa legal nesse contexto, sob pena de esvaziar o alcance protetivo da norma e vulnerar as garantias institucionais da advocacia. Essas garantias existem para evitar que a prisão do advogado se torne instrumento de coação, intimidação ou retaliação pelo exercício da profissão.

Portanto, sala de Estado Maior ou prisão domiciliar para advogados condenados pelo Tribunal do Júri sem trânsito em julgado não é escolha, é imposição legal. Trata-se de dispositivo federal em plena vigência, cuja interpretação não comporta distinções artificiais.

Sob a ótica hermenêutica, permanece atual o brocardo latino: Ubi lex non distinguit, nec nos distingueredebemus, “onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir”.

Papel contramajoritário e as garantias da defesa

Não se pode olvidar que o Poder Judiciário tem função contramajoritária: sua missão é justamente proteger direitos fundamentais mesmo quando o clamor popular exige o contrário. O juiz não é um porta-voz das multidões; é guardião da Constituição. E é nesse ponto que a advocacia, com suas prerrogativas, se coloca como última trincheira da democracia. Toda vez que o direito de defesa é relativizado, a própria Justiça perde legitimidade.

As prerrogativas da advocacia não são privilégios individuais, mas instrumentos institucionais de equilíbrio. Elas servem para garantir que o advogado possa atuar com independência, coragem e liberdade técnica, sem medo de represálias. São garantias da sociedade, não de uma classe. Quando se ignora uma prerrogativa, não se atinge apenas o profissional; fere-se o direito de defesa do cidadão, que é a razão de ser da advocacia.

Por óbvio, nem se discute que, para a aplicação do tema, os fatos devem ser posteriores à sua fixação, bem como à própria pronúncia.

Por fim, é preciso lembrar que o respeito à legalidade é o que distingue o Estado Democrático de Direito do arbítrio. Quando o cumprimento da CF e da lei se torna opcional, abre-se o caminho para a exceção. Respeitar o Estatuto da Advocacia é, tão somente, cumprir a lei.

E como bem afirmou Rui Barbosa: “A lei é a origem espiritual, o princípio necessário de toda obediência: não pode haver absurdo mais absurdo que reclamar obediência, desobedecendo à lei.”

Ana Paula Trento
É advogada criminalista e eleitoralista, Pesquisadora Criminologia, Prof. Penal e Processo Penal, Fundadora Copresidente Nacional da UNAA - União Nacional das Advogadas Criminalistas.

Fabiano Pimentel
Pós-Doutor em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra/IGC. Doutor e Mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Professor de Direito Processual Penal e Prática Penal da Universidade Federal da Bahia e da Universidade do Estado da Bahia. Membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia e da Comissão Especial de Direito Processual Penal do Conselho Federal da OAB. Advogado Criminalista.

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