1. O cenário atual e os propósitos de equiparação
Ao contrário do que se pode imaginar, a reforma tributária não está restrita à EC 132/23. De 2023 em diante, foram introduzidas várias normativas tendentes ao acréscimo de arrecadação e à tributação de itens, relações e operações. Mesmo quando não se cria um novo tributo, redesenha-se o que já existe - e sempre com o objetivo de ampliar a base de arrecadação.
Nesse particular, citam-se a tributação de fundos exclusivos e de offshores (lei 14.754/23), a famigerada “taxa das blusinhas” (cobrança de tributos sobre compras internacionais de pequeno valor, especialmente via plataformas digitais) e a revisão de benefícios fiscais ou processuais (voto de qualidade no CARF - Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, a pretensão de tributação de JCP, LCA, LCI, debêntures ou de revisão de compensação de créditos tributários).
Ainda nesse cenário de pressões fiscais e compromissos orçamentários crescentes, a Fazenda Nacional ensaia novas rodadas de reconfiguração tributária, mirando setores emergentes e ativos financeiros com apetite técnico e precisão política. É o caso de medidas provisórias ou projetos de lei que, por exemplo, ampliam o alcance da tributação sobre ativos digitais e instrumentos financeiros, com foco em arrecadação e controle fiscal.
Embora seja inegável que o mercado exige regulamentação para a proteção de consumidores e investidores, os ativos digitais já foram abrangidos pela L14754, que passou a considerá-los aplicações financeiras para fins de tributação, equiparando-os a outros instrumentos de investimento, como ações e fundos.
O PL 4.308/24 pretende equiparar as stablecoins a operações de câmbio, equiparando-as ao IOF. A RFB - Receita Federal do Brasil já trata criptoativos como ativos sujeitos à declaração e à tributação sobre ganho de capital com o advento da IN 1.888/19. Por sua vez, os tribunais e a doutrina vêm aplicando sobre tais ativos regras de tributação de fundos de investimento e valores mobiliários, especialmente quando operados por pessoas jurídicas. A lógica é que, mesmo sem regulamentação específica, o efeito econômico da operação justifica a incidência tributária, conforme o art. 51, da lei 7.450/1985.
2. Medida provisória 1.303/25
A MP 1.303/25 propõe a criação de RERAV - Regime Especial de Regularização de Ativos Virtuais, e vai além da substituição do IOF. Haveria regime especial de regularização de criptoativos não declarados, com tributação reduzida e atualização patrimonial, além de ajustes em alíquotas que afetam diretamente o mercado financeiro, o setor agroindustrial e a compensação de créditos tributários.
O novo regime permitirá que investidores atualizem o valor de seus ativos virtuais para o preço de mercado ao final de 2025, pagando 7,5% de IR - imposto de renda (sobre a diferença positiva. Para aqueles que ainda não declararam, a regularização poderá ser feita mediante o pagamento da mesma alíquota sobre o estoque total. O prazo de adesão será de 180 dias após a regulamentação, com possibilidade de prorrogação.
A medida cumpre duas funções: ampliar a arrecadação e viabilizar compensações exigidas pela lei de responsabilidade fiscal. O governo estima que a regularização de criptoativos e outras alterações propostas podem gerar mais de R$ 30 bilhões em receitas entre 2025 e 2026. Parte desse montante será utilizada para neutralizar renúncias fiscais já previstas, como aquelas destinadas à indústria química e às vítimas do Zika vírus (não há indicativos de que a MP contemplaria a ampliação da faixa de isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil mensais, que, segundo o Ministério da Fazenda, será custeada pela tributação adicional de supersalários).
Além dos criptoativos, o texto modifica pilares sensíveis da estrutura tributária.
A limitação à compensação de créditos tributários, com exceções para operações societárias, é apontada como uma das medidas de maior impacto arrecadatório. A proposta também zera as alíquotas de PIS e COFINS sobre bioinsumos agropecuários, sinalizando uma política de incentivo à produção sustentável.
No campo dos investimentos, o projeto redesenha a tributação de diversos instrumentos financeiros. Letras de crédito do agronegócio e imobiliárias passam a ter alíquota de 7,5% a partir de 2026. Certificados de recebíveis e debêntures incentivadas mantêm isenção para pessoas físicas, mas passam a ser tributados na fonte em 17,5% para pessoas jurídicas. Fundos imobiliários e FIAGROS com mais de cem cotistas também permanecem isentos.
A proposta consolida ainda uma alíquota fixa de 17,5% para rendimentos de aplicações financeiras, preservando a possibilidade de compensação entre ganhos e perdas em diferentes modalidades. Juros sobre capital próprio passam a ser tributados em 20%, e a CSLL é elevada para instituições financeiras, com alíquotas que chegam a 20% para sociedades de crédito.
3. Conclusão
O conjunto de medidas revela uma engenharia fiscal sofisticada, mas também levanta preocupações legítimas: a recorrente reinterpretação de bases tributárias, ainda que tecnicamente fundamentada, pode sinalizar uma tendência de instabilidade normativa e de expansão silenciosa da carga tributária. O risco não está apenas na criação de novos tributos, mas na constante mutação dos existentes - o que exige atenção redobrada no planejamento financeiro e nas provisões dos exercícios financeiros.