A alienação fiduciária, enquanto técnica de garantia amplamente utilizada no Direito brasileiro contemporâneo, revela particular relevância na dogmática civil ao permitir a coexistência de dois estatutos jurídicos distintos no âmbito de um mesmo vínculo contratual: o direito obrigacional de crédito e o direito real de propriedade resolúvel. A compreensão dessa dualidade, contudo, ainda enseja equívocos interpretativos, especialmente quando o debate jurídico se volta à incidência da prescrição sobre a dívida garantida e seus possíveis reflexos sobre o domínio fiduciário.
Nas garantias reais clássicas, como a hipoteca, o penhor e a anticrese, vigora a lógica segundo a qual o direito real de garantia possui natureza estritamente acessória em relação à obrigação principal. Nesses casos, a garantia existe para assegurar o adimplemento da dívida e se extingue com a extinção do crédito, seja pelo pagamento, seja pela prescrição (que, em verdade, extingue a pretensão), em conformidade com o princípio accessorium sequitur principale.
O direito real de uma garantia clássica não possui autonomia ontológica, ao contrário, é constituído, mantido e extinto em função direta da subsistência do crédito garantido. Por essa razão, na hipoteca, por exemplo, uma vez prescrita a pretensão de cobrança, opera-se a consequente extinção da garantia, pois o gravame hipotecário não pode permanecer se a dívida não mais pode ser exigida.
Todavia, essa lógica não se transpõe para a alienação fiduciária, cujo regime jurídico não assenta a garantia em uma relação de dependência, mas na transferência efetiva da propriedade resolúvel ao credor fiduciário, como expressamente prevê o art. 22 da lei 9.514/971e art. 1º do DL 911/692.
A garantia nos contratos de alienação fiduciária não é um acessório do crédito, mas um direito real autônomo, que se mantém enquanto não implementada a condição resolutiva, qual seja, o adimplemento, razão pela qual a prescrição da pretensão de cobrança não conduz, por si só, a reversão da propriedade impedindo a sua consolidação em nome do credor fiduciário.
Inegavelmente, a alienação fiduciária rompe com o modelo tradicional das garantias reais e opera em um plano estrutural distinto, no qual crédito e propriedade coexistem sem relação de dependência causal.
Por uma perspectiva mais analítica, pode-se questionar qual seria a razão de o crédito não mais poder ser cobrado em virtude da prescrição e, ainda assim, subsistir a garantia decorrente da alienação fiduciária. E a resposta não se encontra apenas no reconhecimento de que o contrato de alienação fiduciária contempla dois direitos materiais distintos (direito de crédito e o direito de propriedade), mas na própria coerência interna do sistema jurídico, o qual se vale dos conceitos de existência, validade e eficácia dos negócios jurídicos.
A prescrição atua exclusivamente no plano da eficácia3, limitando o exercício do direito de crédito, mas sem comprometer a existência ou a validade do negócio jurídico originário4. Assim, ainda que o crédito não possa mais ser judicialmente exigido, o direito de propriedade transferido ao credor fiduciário permanece hígido, pois escora-se em um negócio jurídico que permanece existente e válido.
A certificação do inadimplemento do devedor fiduciante permanece juridicamente relevante, ainda que a prescrição impeça a exigibilidade judicial do crédito. Essa relevância manifesta-se como instrumento de preservação do contraditório, ainda que em sede extrajudicial, assegurando ao devedor fiduciante a ciência formal de sua mora. A constatação extrajudicial do inadimplemento, realizada mediante notificação expedida por Cartório de Títulos e Documentos, nos termos do art. 26, § 1º, da lei 9.514/975, tem o condão de demonstrar que não se implementou a condição resolutiva (pagamento) capaz de restituir ao devedor a propriedade resolúvel que, desde a constituição da alienação fiduciária, pertence ao credor fiduciário.
A consolidação da propriedade configura, portanto, um ato meramente formal e declaratório, destinado não a transferir a titularidade, a qual já foi adquirida pelo credor fiduciário no momento da celebração e registro do contrato de alienação fiduciária, mas a autorizar o ato registral subsequente, documentando situação jurídica preexistente.
Esse entendimento encontra ressonância na jurisprudência do STJ, que tem afirmado a autonomia entre o direito de crédito, suscetível de prescrição; e o direito real de propriedade fiduciária, insuscetível de limitação temporal enquanto subsistir o registro da alienação fiduciária e o inadimplemento do fiduciante. No REsp 1.503.485/CE, a Quarta Turma reconheceu que “a prescrição da pretensão de cobrança não impede a consolidação da propriedade nem a subsequente alienação do bem em leilão”6.
É relevante também examinar o tema do prazo para a consolidação da propriedade fiduciária à luz da lei 9.514/97. O diploma legal não estabelece qualquer prazo máximo para a consolidação, justamente porque se trata de ato meramente formal e declaratório, destinado a conferir de maneira definitiva a propriedade já transferida ao credor fiduciário no momento da constituição do negócio, e até então resolúvel (art. 23 da lei 9.514/977).
Ainda que se pudesse aventar a aplicação de um prazo, o que, em tese, seria de natureza decadencial, por se tratar de eventual exercício de direito potestativo8, tal interpretação não se sustenta. A decadência pressupõe o exercício de uma pretensão constitutiva, voltada à criação, modificação ou extinção de uma situação jurídica. No caso da consolidação da propriedade fiduciária, contudo, não se constitui um novo direito, mas apenas se formaliza uma situação jurídica preexistente, decorrente do registro originário do contrato de alienação fiduciária9.
Trata-se, pois, de ato declaratório, e não constitutivo, razão pela qual não há falar em limitação temporal para sua prática. Limitar o prazo para consolidação da propriedade em contratos de alienação fiduciária seria equivalente a afirmar que alguém que detém um contrato particular de compra e venda, o conhecido “contrato de gaveta”, perderia o direito de registrar o imóvel em seu nome com o decurso do tempo. A ausência de publicidade pode, de fato, gerar incertezas e conflitos possessórios, mas não extingue nem limita o direito de propriedade desse adquirente, e com muito mais razão, não extingue o direito de propriedade do credor fiduciário, o qual já detém a condição de proprietário (ainda que fiduciário) desde que firmou o contrato de alienação fiduciária. (art. 1.361, § 1º, do Código Civil).
Portanto, a prescrição do crédito constante em contrato de alienação fiduciária não repercute sobre o direito de propriedade fiduciária, que permanece hígido e plenamente constituído desde o registro do contrato. Todavia, a constatação de prescrição não é irrelevante, e impacta, por óbvio, o direito de crédito, limitando a possibilidade de satisfação patrimonial no caso de o produto do leilão ser inferior ao valor da dívida.
O leilão extrajudicial consiste em ato inerente ao contrato de alienação fiduciária, não podendo o credor fiduciário, apropriar-se de início do bem cuja propriedade consolidou em seu nome. O art. 27 da lei 9.514/97 em seu § 4º estabelece que, se o produto da venda superar o valor da dívida, o excedente deverá ser restituído ao devedor fiduciante; se, ao contrário, o valor apurado for inferior, o credor poderá exigir o saldo remanescente (art. 27, § 5º).
Nessa perspectiva, os reflexos econômicos do leilão se submetem ao regime prescricional aplicável ao crédito garantido. Se o crédito estiver prescrito, inexiste pretensão executiva quanto ao saldo devedor. Assim, embora a prescrição não atinja o direito de propriedade do credor fiduciário, que é direito real já constituído e independente da exigibilidade do crédito, restringe a eficácia econômica da garantia, projetando-se sobre o produto do leilão e impedindo a cobrança de diferenças não mais exigíveis judicialmente, em consonância com o princípio da segurança jurídica.
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1. Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o fiduciante, com o escopo de garantia de obrigação própria ou de terceiro, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel. (grifamos)
2. Art 1º O artigo 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, passa a ter a seguinte redação: (Vide Lei nº 10.931, de 2004)
"Art. 66. A alienação fiduciária em garantia transfere ao credor o domínio resolúvel e a posse indireta da coisa móvel alienada, independentemente da tradição efetiva do bem, tornando-se o alienante ou devedor em possuidor direto e depositário com tôdas as responsabilidades e encargos que lhe incumbem de acordo com a lei civil e penal.”
3. A prescrição “ataca a pretensão e não o direito, que subsiste como obrigação natural” (GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. 22. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019).
4. “As obrigações classificam-se, tradicionalmente, em civis e naturais, na medida em que sejam exigíveis ou apenas pagáveis (desprovidas de exigibilidade jurídica).
A obrigação natural é, portanto, um debitum em que não se pode exigir, judicialmente, a responsabilização patrimonial (obligatio) do devedor, mas que, sendo cumprido, não caracterizará pagamento indevido.
Sendo dívida, a ela se aplicam, a priori, todos os elementos estruturais de uma obrigação, com a peculiaridade, porém, de não poder ser exigida a prestação, embora haja a irrepetibilidade do pagamento...”(GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Manual de Direito Civil: volume único. 6. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2023).
5. Art. 26, § 1º “O fiduciante, ou seu representante legal ou procurador regularmente constituído, será intimado, a requerimento do fiduciário, pelo oficial do Registro de Imóveis, para, no prazo de quinze dias, contados da intimação, pagar a dívida pendente.”
6. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.503.485/CE, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, julgado em 04/06/2024.
7. Art. 23. “Constitui-se a propriedade fiduciária de coisa imóvel mediante registro, no competente Registro de Imóveis, do contrato que lhe serve de título.”
8. Não há de se falar em prazo prescricional ao direito de o credor fiduciário consolidar a propriedade, pois não existe pretensão condenatória, tampouco há de se falar em prazo decadencial, pois não existe pretensão constitutiva. Neste sentido: “As ações condenatórias podem sofrer os efeitos da prescrição, porque só elas pretendem alcançar prestação e só os direitos que buscam uma prestação possibilitam ação condenatória. (...) as ações constitutivas ligam-se à decadência. As ações declaratórias, que só visam obter certeza jurídica, não estão sujeitas nem à decadência nem à prescrição.” (VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Parte Geral. 10. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 353).
9. “Pacificou-se o entendimento de que a propriedade do bem imóvel já foi alvo de transferência ao credor no momento inicial da contratação, com anuência do devedor, de modo que, configurado o inadimplemento, opera-se, em verdade, meramente a consolidação da propriedade com o primeiro, e não a sua transferência. Como consequência, os leilões para venda do bem não se destinam a transferir a propriedade do devedor a terceiro, visto que o bem já pertence ao credor.” (CUNHA, Fernando Antonio Maia da; DIAS, Maria Rita Rebello Pinho. Alienação fiduciária em garantia. Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, ano 20, n. 50, p. 31-52, jul./ago. 2019).