Sorte e acaso são conceitos que acompanham a humanidade desde seus primórdios, sendo aplicados aos mesmos contextos e, por isso, confundidos entre si muitas das vezes. A sorte representa o elemento emocional da imprevisibilidade que escapa à lógica e à razão, sendo associado, em diversas culturas, a símbolos, rituais e/ou superstições que permitiriam obter vantagens sobre o incerto. O acaso, por sua vez, é o elemento racional da imprevisibilidade, que representa a ausência aparente de causalidade entre eventos e é estudado pelas teorias de estatísticas e probabilidades a fim de quantificar o incerto e transformar o risco em oportunidade.
As casas de aposta ("bets"), assim como as bolsas de valores, são apenas um dos pontos de convergência entre esses dois conceitos. Elas são um sistema econômico estruturado que, por meio de algoritmos matemáticos probabilísticos e estatísticos, confrontam muito precisamente o comportamento humano e eventos até então imprevisíveis. O apostador enfrenta o acaso de forma controlada, duelando, com maior ou menor habilidade, com a "casa" no alcance da sorte.
O mercado de apostas de quota fixa, por sua amplitude e capilaridade social, sempre revelou alta capacidade contributiva. O Poder Público, atento a esse potencial, consolidou na lei 14.790/231 um marco regulatório mínimo de legalidade e boa conduta para os operadores do setor, sujeitando-os à mesma tributação aplicável às demais atividades empresariais (IRPJ, CSLL, PIS/Cofins e, em alguns municípios, ISS). A norma também fixou destinações sociais específicas de receita, conforme o art. 30, §1º e seus incisos da lei 13.756/182, determinando a aplicação de 12% sobre a receita bruta ajustada ("Gross Gaming Revenue" – GGR).
Os dados de 2024 e 2025 evidenciam o peso econômico do setor3:
- Gasto médio por usuário ativo no primeiro semestre de 2025 foi de R$ 983,00;
- Empresas de apostas online faturaram cerca de R$ 17,4 bilhões no período;
- Receita Federal registrou R$ 4,73 bilhões em tributos sobre apostas nos sete primeiros meses de 2025 — sendo R$ 2,6 bilhões provenientes das bets e R$ 2,1 bilhões das loterias tradicionais.
A MP 1.303/254 foi baixada pelo Executivo para, de diversas formas, reforçar a arrecadação e reequilibrar a balança econômica nacional, que tem sido marcada pela elevação constante dos gastos públicos. Dentre as mudanças ela propôs, em seu art. 61, a alteração do art. 30, §1º da lei 13.756/18 para criar uma contribuição adicional de 6% sobre a receita bruta das bets destinada à seguridade social para financiamento de ações na área da saúde. Assim, a receita líquida dessas companhias, durante sua vigência, passou de 88% para 82%.
Com todos os esforços da base aliada do governo federal, a MP não foi convertida em lei. Por essa razão, foi protocolado em 9 de outubro desse ano pelo deputado Lindbergh Farias (PT/RJ), líder do partido na Câmara, o PL 5.076/255. O novo texto segue, desde o dia 22 do mesmo mês, sob o regime de urgência e propõe a manutenção da destinação específica criada pela Medida e amplia sua alíquota para 12%. Dessa forma, os descontos totais sobre a GGR alcançariam 24%, dobrando o percentual inicialmente previsto na lei e reduzindo a margem operacional das operadoras para 76%.
As principais justificativas utilizadas pelo parlamentar foram:
- País já registra cerca de 2 milhões de pessoas com dependência em jogos;
- Registros de atendimentos de pessoas com sintomas de jogo patológico na rede pública aumentaram 300% de 2022 para 2024;
- Da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo mostrou que, no Brasil, 63% de quem aposta teve parte da renda comprometida com as bets, 19% pararam de fazer compras no mercado e 11% não gastaram com saúde e medicamento;
- Carga tributária total sobre o setor, estimada em 27%, seria inferior à observada em países como França (55%) e Alemanha (48%).
Em que pese todas as críticas feitas pelo parlamentar ao mercado como um todo, pesquisas conduzidas pela LCA6, pelo Instituto Locomotiva7 e pela Cruz Consulting8 (financiada pela própria Associação Nacional de Jogos e Loterias) indicam que, talvez, boa parte das externalidades negativas possam ser atribuídas à ineficiência do Estado em fiscalizar e onerar o mercado ilegal. Dos dados obtidos, destacam-se:
- Na legalização foram inativados mais de 11 mil domínios irregulares;
- 2.000 pessoas entrevistadas entre abril e maio de 2025: 61% apostaram em sites ilegais / 78% o fizeram sem reconhecimento facial, com cartão de crédito ou criptoativos / 77% utilizaram apenas ou em maior parte plataformas irregulares / e 48% consideram difícil diferenciar meios regulamentados e não regulamentados;
- Ilegalidade representa entre 41 e 51% do mercado de apostas;
- Fevereiro e abril de 2025, considerando as destinações específicas e o IRRF sobre prêmios, estima-se perda de arrecadação entre R$ 7,2 e 10,8 bilhões;
- 803 pessoas beneficiárias de programas sociais entrevistadas entre 15 e 18 de outubro na região metropolitana de São Paulo: 75,14% possuem renda complementar / 19,45% participam do Bolsa Família / 55,19% jogam até uma vez por semana / 68,20% apostam menos de R$ 50,00 mensais / 45,08% migrariam para sites ilegais em caso de proibições de utilizar programas sociais para apostar / 69,07% apostam por dinheiro.
Esses dados, aliados à capacidade financeira do mercado demonstrada anteriormente, indicam que, eventualmente, o caminho mais razoável seria destinar maiores esforços para a fiscalização, oneração e inativação dos domínios irregulares e educar os consumidores sobre aposta não ser investimento, como identificar plataformas ilegais, dos riscos envolvidos e da importância da utilização consciente das rendas oriundas de programas sociais.
De toda forma, embora tenha informado uma estimativa para a tributação das casas de aposta, o deputado não detalhou quais os tributos considerados no cálculo. Assim, torna-se interessante simular a carga caso seja aprovada a nova redação. O cenário seria o seguinte:
- IRPJ e CSLL: alíquota combinada de 34% sobre o lucro real ou presumido;
- PIS e Cofins: 3,65% ou 9,25% sobre a gros gaming revenue, conforme o regime de apuração;
- ISS: 2% a 5% sobre a mesma base de cálculo acima, a depender do município;
- Destinações específicas: 24% da GGR.
Considerando os percentuais indicados acima, após o PL, a tributação nominal a que sujeitas as bets seria de, aproximadamente, 60,25% para 72,25%.
A natureza específica das "destinações específicas" é controversa por si só, pois remete às loterias federais, que são estatais, permitindo alocação direta das receitas – já que a sua titularidade é pública. No caso das casas de aposta, trata-se de autorização para exploração de serviço público (art. 29, caput da lei 13.756/18 c/c art. 9º, caput da lei 14.790/23), e esta alocação direta se assemelha mais à tributação incidente sobre a receita de entidades privadas. A parcela dos 24% que se destine a seguridade social poderia ser enquadrada na previsão do art. 195, III, da CF (contribuição social sobre receita de concursos de prognósticos). Todavia, todo o restante que não seja estritamente destinado a seguridade social como, por exemplo, à segurança, educação, esporte, cultura, turismo, não se enquadraria nem no art. 195 e nem no art. 149, restando apenas a competência residual do art. 154, I, da Carta Magna para instituição de novos tributos – que exigem lei complementar e que sejam "não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição". Logo, a cobrança via lei ordinária – oriunda da legislação vigente ou vindoura, caso o PL seja aprovado, tenderia à inconstitucionalidade.
A promulgação da EC 132/239 e a edição da LC 214/2510 redesenham a tributação do consumo substituindo os tributos atuais pela instituição de um Imposto sobre Valor Agregado ("IVA dual") - formado pelo IBS e pela CBS - Contribuição sobre Bens e Serviços – e de um IS - Imposto Seletivo.
As modificações propostas pela LC afetam diretamente os agentes do mercado de apostas de quota fixa, porque os três novos tributos onerarão suas operações da seguinte forma:
- Capítulo IV (arts. 244 a 248) estabelece a cobrança de IBS e CBS sobre a receita líquida das casas de apostas, já deduzidas as premiações pagas e as destinações obrigatórias por lei a órgão ou fundo público e aos demais beneficiários. Esses tributos, respeitada a trava de alíquota prevista no art. 475, §11, terão alíquotas somadas de 26,5%;
- Arts. 409, VII, 414, V e 422, caput preveem a incidência do IS sobre a receita líquida em alíquota ainda a ser definida pela legislação ordinária da União.
Esse cenário, somado à possível aprovação do PL 5.076/25, projeta um aumento expressivo da carga fiscal setorial, podendo elevar a oneração nominal das receitas das bets a 84,5% a partir de 2033, sem considerar o IS (ainda sem percentual definido).
A nosso ver, a medida acima não representa a abordagem mais estratégica para proteger o equilíbrio fiscal e proteger as finanças do brasileiro médio. Isso, na medida em que, as pesquisas mencionadas ao longo desse artigo, para além dos dados destacados, demonstram a ainda elevada força dos domínios irregulares no sentido de reduzir a arrecadação hoje e no pós-reforma, desviar a finalidade das rendas distribuídas nos programas sociais e expor o consumidor a um ambiente incerteza e tendência ao endividamento.
De toda forma, a cadeia de eventos aqui exposta revela um movimento contínuo de elevação da carga tributária e de intensificação do controle estatal sobre o setor de apostas. Ainda que não concordemos com isso, defendemos que, ao menos, esse processo deve ser calibrado para não inviabilizar a livre iniciativa nem desestimular a formalização do mercado. O equilíbrio entre arrecadação, regulação e viabilidade econômica é a chave para a consolidação de um ambiente seguro, transparente e competitivo — capaz de sustentar o crescimento do mercado de apostas de quota fixa no Brasil sem comprometer sua função social e econômica.
Se a intenção é regular as bets, justamente para evitar ou minorar as suas potenciais externalidades negativas, possibilitando inclusive a arrecadação tributária, não é boa política legislativa asfixiar de morte o setor.
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1 BRASIL. Lei nº 14.790, de 30 de dezembro de 2023: dispõe sobre a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa; altera as Leis nºs 5.768 e 13.756 e a Medida Provisória nº 2.158-35; revoga dispositivos do Decreto-Lei nº 204 e dá outras providências. Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2023-2026/2023/Lei/L14790.htm. Acesso em: 26 out. 2025.
2 BRASIL. Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018: dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), sobre a destinação do produto da arrecadação das loterias e sobre a promoção comercial e a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa; altera outras Leis e revoga dispositivos. Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13756.htm. Acesso em: 26 out. 2025.
3 PUPULIM, Pedro. Caixa quer lançar própria plataforma de apostas online. VEJA. 25 out. 2025. Disponível em: https://veja.abril.com.br/coluna/radar/caixa-quer-lancar-propria-plataforma-de-apostas-online/ . Acesso em: 25 out. 2025
4 BRASIL. Medida Provisória nº 1.303, de 11 de junho de 2025: dispõe sobre a tributação de aplicações financeiras e de ativos virtuais no País e dá outras providências. Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2025/mpv/mpv1303.htm. Acesso em: 26 out. 2025.
5 BRASIL. Projeto de Lei nº 5.076, de 2025: altera a Lei nº 13.756, de 12 de dezembro de 2018, que dispõe sobre o Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), sobre a destinação do produto da arrecadação das loterias e sobre a promoção comercial e a modalidade lotérica denominada apostas de quota fixa; altera as Leis nºs 8.212, 9.615, 10.891, 11.473 e 13.675; revoga dispositivos de diversas leis e dá outras providências. Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=3019259&filename=PL%205076/2025. Acesso em: 26 out. 2025.
6 LCA CONSULTORIA ECONÔMICA. Fora do Radar: dimensionamento e impactos socioeconômicos do mercado ilegal de apostas no Brasil. São Paulo: LCA Consultoria Econômica; IBJR – Instituto Brasileiro do Jogo Responsável, jun. 2025.
7 INSTITUTO LOCOMOTIVA. Incidência de apostas ilegais no Brasil. São Paulo, 2025. Relatório de pesquisa quantitativa nacional, realizado entre abril e maio de 2025, com 2.000 entrevistas, margem de erro de 2,2 p.p. e nível de confiança de 95%.
8 CRUZ CONSULTING. Pesquisa de diagnóstico setorial: Bets versus Programa Social. Região Metropolitana de São Paulo, outubro de 2025. Relatório de pesquisa de opinião pública, 803 entrevistas presenciais, margem de erro de 3,5 p.p., nível de confiança de 95%.
9 BRASIL. Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023: altera o Sistema Tributário Nacional. Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03///////Constituicao/Emendas/Emc/emc132.htm. Acesso em: 26 out. 2025.
10 BRASIL. Lei Complementar nº 214, de 16 de janeiro de 2025: institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária. Presidência da República. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/Lcp214.htm. Acesso em: 26 out. 2025.