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Entre acordos e realidade: O que faz da COP 30 um ponto de inflexão

O sucesso da COP 30 dependerá não apenas das negociações na Blue Zone, mas da capacidade do Brasil de projetar para o mundo uma visão de futuro sustentável e justo a partir da Amazônia

6/11/2025

Entre acordos e realidade, o que faz da COP 30 um ponto de inflexão

Em novembro de 2025, a cidade de Belém, no coração da Amazônia brasileira, sediará a 30ª Conferência das Partes (COP 30) da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima. Este evento não é apenas mais um encontro anual de líderes mundiais; ele representa um marco de três décadas de negociações climáticas, um período marcado por avanços notáveis, fracassos retumbantes e uma crescente lacuna entre as promessas diplomáticas e a ação necessária para evitar uma catástrofe climática. Para que não seja apenas mais um rito procedimental, a COP 30 precisa amarrar metas a mecanismos claros de implementação, com transparência e prestação de contas. Este artigo oferece uma análise crítica dessa jornada, examinando os acordos mais importantes, os compromissos cumpridos e os descumpridos, o impacto dos tratados no desenvolvimento urbano e, crucialmente, o que é necessário para que a COP 30 transcenda o protocolo e se torne um verdadeiro ponto de inflexão na luta contra o aquecimento global.

A jornada de 30 anos das COPs: Entre a esperança e a decepção

A saga das negociações climáticas globais começou formalmente após a Cúpula da Terra (Rio-92), que deu origem à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima. A primeira COP, realizada em Berlim em 1995, estabeleceu o palco para um processo contínuo de negociações. Desde então, o mundo assistiu a uma série de conferências que oscilaram entre momentos de grande otimismo e profunda frustração.

O primeiro grande marco foi o Protocolo de Kyoto (COP 3, 1997), que introduziu pela primeira vez metas juridicamente vinculantes de redução de emissões para os países industrializados. No entanto, sua eficácia foi minada desde o início pela recusa dos Estados Unidos, então o maior emissor mundial, em ratificar o acordo. Este episódio inaugural estabeleceu um padrão de desafios que assombraria as negociações futuras: a dificuldade de garantir o compromisso universal e a tensão entre as "responsabilidades comuns, porém diferenciadas" de nações desenvolvidas e em desenvolvimento. A ausência de universalidade somada à expansão de emissões em economias fora do escopo corroeu a ambição agregada.

O Acordo de Paris (COP 21, 2015) representou uma mudança de paradigma. Pela primeira vez, quase todas as nações do mundo se comprometeram a agir. O acordo estabeleceu a meta ambiciosa de limitar o aquecimento global a "bem menos de 2°C", com esforços para não ultrapassar 1,5°C. Sua arquitetura, baseada em Contribuições Nacionalmente Determinadas (NDCs), permitiu uma participação universal, mas ao custo de tornar as metas voluntárias e sem um mecanismo de sanção robusto, um ponto de crítica central que persiste até hoje. O desafio, portanto, não é apenas fixar metas, mas garantir aderência, mensuração e correção de rota.

Entre esses dois marcos, outras COPs tiveram resultados mistos. A COP 16 em Cancún (2010) criou o Fundo Verde para o Clima, uma promessa de financiar a ação climática nos países em desenvolvimento. A COP 27 em Sharm el-Sheikh (2022) finalmente estabeleceu um fundo para Perdas e Danos, reconhecendo a necessidade de compensar as nações mais vulneráveis pelos impactos inevitáveis das mudanças climáticas. Contudo, muitas outras conferências terminaram em impasse, adiando decisões cruciais sobre financiamento, mercados de carbono e a eliminação progressiva dos combustíveis fósseis. A linguagem recorrente de “phase down” segue aquém do necessário “phase out” com cronogramas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Conferência

Ano

Local

Principal Resultado (Positivo e Negativo) -

COP 3

1997

Kyoto, Japão

(+) Adoção do Protocolo de Kyoto, primeiro tratado com metas de redução de emissões juridicamente vinculantes para países desenvolvidos.

(-) Não ratificação pelos EUA e ausência de metas para países em desenvolvimento. -

COP 15

2009

Copenhague

(+) Reconhecimento da importância de limitar o aquecimento a 2°C.

(-) Fracasso em produzir um acordo vinculante, resultando no fraco "Acordo de Copenhague". -

COP 21

2015

Paris, França

(+) Adoção do Acordo de Paris, com participação quase universal e a meta de 1,5°C.

(-) Metas nacionais (NDCs) voluntárias e insuficientes para atingir o objetivo de 1,5°C. -

COP 27

2022

Sharm el-Sheikh

(+) Criação histórica do fundo de Perdas e Danos para países vulneráveis. (-) Falta de avanço na eliminação progressiva dos combustíveis fósseis e regras fracas para mercados de carbono. -

COP 29

2024

Baku, Azerbaijão

(+) Estabelecimento de uma nova meta de financiamento climático de US$ 300 bilhões/ano até 2035.

(-) Meta considerada amplamente insuficiente e recuo nos compromissos de transição energética. -

Acordos no papel vs. ação na prática: Um balanço crítico

Uma análise honesta dos últimos 30 anos revela uma verdade desconfortável: a implementação dos acordos climáticos tem sido cronicamente lenta e insuficiente. O abismo entre o que é prometido e o que é entregue permanece como o maior obstáculo, e sem a métrica publica ou mesmo revisões periódicas, a lacuna tende a se perpetuar numa escala de tempo.

O legado ambíguo do Protocolo de Kyoto

Apesar de suas falhas, o Protocolo de Kyoto demonstrou que mecanismos de mercado e metas vinculantes poderiam funcionar. Muitos países europeus, por exemplo, cumpriram e até superaram suas metas. Contudo, o impacto global foi neutralizado pelo aumento vertiginoso das emissões de países não incluídos nas metas, como a China, e pela ausência dos EUA, destacando que ambições parciais não desloca ou reduz ambições.

O desafio do Acordo de Paris: Voluntarismo é suficiente?

O Acordo de Paris está, tecnicamente, funcionando. Ele catalisou a criação de políticas climáticas em dezenas de países. Projeções indicam que, com as políticas atuais, o mundo se encaminha para um aquecimento de cerca de 2°C a 2.5°C, uma melhora significativa em relação aos 3.6°C projetados em 2015. No entanto, isso ainda está perigosamente acima da meta de 1,5°C. Como Stela Herschmann, do Observatório do Clima, afirmou à CNN Brasil, o acordo "não está funcionando na velocidade que precisamos" [1]. Destaca-se que a próxima rodada das NDCs deve ser atrelada a planos setoriais com indicadores e auditorias independentes, tendo em vista que natureza voluntária das NDCs e a falta de um mecanismo de conformidade robusto são suas maiores fraquezas.

A promessa quebrada do financiamento climático

Talvez o maior símbolo do fracasso da implementação seja a meta de financiamento climático. Em 2009, os países desenvolvidos prometeram mobilizar US$ 100 bilhões por ano até 2020 para ajudar as nações em desenvolvimento. Essa meta só foi oficialmente cumprida em 2022, com dois anos de atraso. Além disso, a qualidade desse financiamento é amplamente criticada. Relatórios da OCDE e de organizações da sociedade civil apontam que grande parte do valor consiste em empréstimos (não doações) e na reclassificação de ajuda ao desenvolvimento já existente, não em recursos novos e adicionais [2]Sem adicionalidade, acessibilidade e previsibilidade, o financiamento não entrega transformação. A nova meta de US$ 300 bilhões/ano, estabelecida na COP 29, já nasceu sob a crítica de ser grosseiramente insuficiente, representando menos de um quarto do US$ 1,3 trilhão que os países em desenvolvimento estimam ser necessário.

Acordos Cumpridos (Parcialmente)

Acordos Não Cumpridos ou com Dificuldades -

Protocolo de Kyoto: Metas de redução cumpridas por muitos países europeus.

Não Ratificação do Protocolo de Kyoto pelos EUA: A ausência do maior emissor da época minou a eficácia do tratado. – A ausência americana minou o efeito agregado.

Acordo de Paris: Participação quase universal e criação de políticas climáticas nacionais.

Meta de Financiamento de US$ 100 bilhões: Cumprida com dois anos de atraso e com contabilidade questionável (empréstimos em vez de doações). – Meta de 1,5º permanece fora de alcance

Fundo de Perdas e Danos: Estabelecido na COP 27.

Meta de 1,5°C: O mundo não está no caminho para cumpri-la; as NDCs atuais são insuficientes e o planeta já ultrapassou temporariamente o limiar. -

Eliminação de Combustíveis Fósseis

Eliminação dos Combustíveis Fósseis: Acordos usam linguagem fraca como "afastamento progressivo" (phase down) em vez de "eliminação" (phase out), sem cronogramas claros. -

O impacto dos tratados no desenvolvimento das cidades

As cidades estão na linha de frente da crise climática. Elas consomem mais de dois terços da energia mundial e são responsáveis por mais de 70% das emissões de CO2. Ao mesmo tempo, são extremamente vulneráveis a impactos como ondas de calor, inundações e elevação do nível do mar. Os tratados internacionais, embora negociados em nível nacional, têm um impacto profundo e crescente no planejamento e desenvolvimento urbano. A tradução do tratado em política urbana é onde a mitigação e a adaptação “acontecem” de fato.

Políticas públicas municipais cada vez mais refletem os compromissos assumidos em acordos como o de Paris. Cidades ao redor do mundo estão desenvolvendo seus próprios Planos de Ação Climática, estabelecendo metas para a transição energética, promovendo o transporte público e a mobilidade ativa, e investindo em infraestrutura verde e resiliente. Redes como a C40 Cities e o ICLEI (Governos Locais pela Sustentabilidade) desempenham um papel vital, conectando prefeitos e gestores urbanos para compartilhar as melhores práticas e acelerar a implementação [3].

A COP 30 em Belém promete dar um destaque sem precedentes à agenda urbana, com um pavilhão dedicado às "Cidades Resilientes". Isso reconhece que a batalha pelo clima será, em grande parte, vencida ou perdida nas cidades. Demonstra-se como crucial integrar saneamento, habitação, drenagem e mobilidade às metas climáticas, e é no nível local que as políticas de descarbonização e adaptação se tornam realidade, afetando diretamente a vida dos cidadãos.

COP 30 em Belém: Uma oportunidade única na encruzilhada amazônica

A escolha de Belém como sede da COP 30 é carregada de simbolismo. Realizar a principal conferência do clima na maior floresta tropical do mundo envia uma mensagem poderosa sobre a centralidade dos ecossistemas naturais e dos povos indígenas na solução da crise climática. A expectativa é que a COP 30 seja a "COP da implementação", marcando a transição da elaboração de regras para a ação concreta, no qual o êxito dependerá de cronogramas públicos, métricas e revisão por pares.

As principais tarefas da COP 30 incluem:

a) Apresentação de Novas NDCs: Os países devem submeter uma nova rodada de metas climáticas, que precisam ser drasticamente mais ambiciosas para manter viva a meta de 1,5°C.

b) Avanço no Financiamento: Pressionar por um caminho claro para superar a insuficiente meta de US$ 300 bilhões e chegar aos trilhões necessários para uma transição global justa.

c) Implementação da Transição Justa: Transformar o conceito de "transição justa" em planos de ação concretos, garantindo que a descarbonização não deixe trabalhadores e comunidades para trás.

d) Enfrentar os Combustíveis Fósseis: O sucesso da COP 30 será medido por sua capacidade de abordar o "elefante na sala" e estabelecer um cronograma claro para a eliminação dos combustíveis fósseis, ressaltando que sem esta ação, as outras são perdidas em escala.

"O Brasil deveria almejar um resultado que vá além dos avanços incrementais. O momento exige uma resposta à altura do desafio." - Stela Herschmann, Observatório do Clima [4]

Como evitar que a COP 30 seja apenas mais um encontro protocolar?

Após 30 anos de negociações, a fadiga e o ceticismo são compreensíveis. Para que a COP 30 rompa o ciclo de promessas vazias, uma abordagem diferente é necessária, focada em responsabilidade, prestação de contas e compromisso com resultados. Ou seja, uma ação tangível.

Primeiramente, é preciso aumentar a pressão por compromissos vinculantes. A natureza voluntária do Acordo de Paris, embora tenha facilitado o consenso, provou ser um entrave para a ambição. A comunidade internacional deve explorar mecanismos que garantam a responsabilização dos países por suas metas, plenamente mensuráveis, afastando-se a quaisquer conceituações de um mero protocolo de intenções.

Em segundo lugar, o financiamento climático deve ser real e justo. Isso significa que os países desenvolvidos devem prover recursos na forma de doações, não de empréstimos, e em uma escala que reflita sua responsabilidade histórica. A meta deve ser de trilhões, não de bilhões, e os fundos devem ser acessíveis às comunidades que mais precisam, com fluxo estáveis e frequentes.

Terceiro, a conferência deve colocar a ciência e a justiça no centro. As decisões precisam ser guiadas pelos alertas do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) e devem garantir que as vozes dos mais afetados — povos indígenas, comunidades tradicionais, jovens e o Sul Global — sejam ouvidas e incorporadas nas decisões finais.

Finalmente, o Brasil, como anfitrião, tem uma responsabilidade única. O país pode e deve liderar pelo exemplo, apresentando uma NDC ambiciosa, combatendo o desmatamento de forma implacável e promovendo um modelo de desenvolvimento que valorize a floresta em pé e seus povos. O sucesso da COP 30 dependerá não apenas das negociações na Blue Zone, mas da capacidade do Brasil de projetar para o mundo uma visão de futuro sustentável e justo a partir da Amazônia, firmada numa cooperação federativa e processo de governança aprofundado e plenamente estabelecido.

Conclusão

A jornada de três décadas das COPs é uma história de progresso lento e relutante, sempre aquém da urgência exigida pela ciência. O mundo acumulou acordos, regras e promessas, mas as emissões globais continuam em níveis perigosamente altos. A COP 30 em Belém não pode ser apenas uma celebração de aniversário. Ela ocorre em um momento de verdade, uma encruzilhada onde a humanidade deve escolher entre continuar no caminho da inação incremental ou finalmente tomar as medidas transformadoras que a crise climática exige. O legado da COP 30 será definido pela coragem dos líderes mundiais em transformar décadas de palavras em ação imediata e decisiva.

Enfim, o legado da COP 30 será medido por entregas verificáveis, não por declarações.

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Referências

1 CNN Brasil. (2025, 18 de março). Acordo de Paris está funcionando? Veja o que dizem especialistas. Recuperado de https://www.cnnbrasil.com.br/tecnologia/acordo-de-paris-esta-funcionando-veja-o-que-dizem-especialistas/

2 Valor Globo. (2024, 29 de maio). Países ricos cumprem financiamento climático de US$ 100 bi com dois anos de atraso, diz OCDE. Recuperado de https://valor.globo.com/mundo/noticia/2024/05/29/pases-ricos-cumprem-financiamento-climtico-de-us-100-bi-com-dois-anos-de-atraso-diz-ocde.ghtml

3 C40 Cities. C40 Cities - A global network of mayors taking urgent climate... Recuperado de https://www.c40.org/

4 Suzano. (2025, 11 de agosto). Qual é a importância da COP30? Recuperado de https://www.suzano.com.br/blog-posts/importancia-da-cop-30

Daniel Charliton Rodrigues
Advogado especializado em Direito Penal, Ambiental, Cível e Empresarial. Com experiência em gestão pública, foi superintendente do IBAMA, gestor em Itaguaí/RJ, São João de Meriti/RJ

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