Migalhas de Peso

STJ redefine a impenhorabilidade da pequena propriedade rural: Reserva Legal fora do cálculo

Decisão do STJ redefine a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, excluindo a Reserva Legal e reforçando justiça, equilíbrio e segurança jurídica.

6/11/2025

A recente e paradigmática decisão do STJ emerge como um divisor de águas na interpretação do instituto da impenhorabilidade da pequena propriedade rural. 

Ao estabelecer que a área de Reserva Legal deve ser decotada do cômputo total do imóvel para fins de enquadramento legal, a Corte não apenas soluciona uma antiga controvérsia jurídica, mas refina substancialmente a aplicação de princípios constitucionais. 

Este posicionamento, pautado por uma hermenêutica teleológica e sistemática, centra-se na finalidade da norma protetiva, oferecendo um alívio e uma segurança jurídica sem precedentes para o produtor rural.

A base desta questão reside na intrínseca proteção conferida pelo art. 5º, inciso XXVI, da CF/88, que salvaguarda a impenhorabilidade da pequena propriedade rural, desde que o imóvel seja trabalhado pela família e os débitos sejam oriundos da própria atividade produtiva.

 A jurisprudência, ao longo dos anos, consolidou o critério quantitativo de até quatro módulos fiscais como o balizador para definir a "pequena propriedade". No entanto, a grande controvérsia se instalou sobre qual seria a base de cálculo para aferir esse limite: a área total constante da matrícula do imóvel ou apenas a área efetivamente passível de exploração econômica?

O dissenso jurídico nasceu da colisão de dois regimes legais de profunda importância: de um lado, o Direito de Propriedade, em sua concepção civilista, que assegura o uso, gozo e disposição dos bens; de outro, as imperativas limitações administrativas impostas pelo Direito Ambiental. O Código Florestal (lei 12.651/12) impõe ao proprietário rural o ônus inafastável de manter um percentual de seu imóvel como Reserva Legal. Esta porção da propriedade, embora indispensável para a manutenção do equilíbrio ecológico, é marcada por severas restrições de uso, gozo e disposição, atributos essenciais do domínio.

Em um cenário interpretativo anterior, mais literal e formalista, prevalecia a consideração da área total registral do imóvel. Essa abordagem, na prática, gerava um paradoxo jurídico de graves consequências. O produtor rural que, com diligência, cumpria rigorosamente a legislação ambiental, mantendo intacta sua Reserva Legal, podia ser justamente por isso desenquadrado do conceito de pequeno produtor. 

A consequência direta era a perda da fundamental proteção constitucional destinada a garantir seu patrimônio mínimo e, em última análise, sua subsistência. Era uma situação onde a virtude ambiental se tornava uma vulnerabilidade econômica.

A virada jurisprudencial operada pelo STJ representa um triunfo inequívoco da interpretação teleológica e sistemática. A Corte Superior não se limitou à superfície do texto legal; em vez disso, investigou o telos - a finalidade essencial e subjacente da norma constitucional. Concluiu-se que o objetivo primordial é proteger a unidade de produção familiar, ou seja, o patrimônio que efetivamente gera o sustento e garante a vida no campo.

Uma interpretação sistemática, por sua vez, exigiu a harmonização da norma protetiva com as imposições do Código Florestal, evitando que o cumprimento de um dever legal, essencial para a sociedade, acarretasse uma sanção em outra esfera do Direito, desvirtuando o próprio espírito da lei.

A ratio decidendi, reside na peculiar natureza jurídica da Reserva Legal. Ela não é meramente uma porção de terra, mas uma limitação administrativa que esvazia parte significativa do conteúdo econômico do Direito de Propriedade sobre aquela porção do imóvel. Se o proprietário não pode explorar economicamente essa área, e é vedado fazê-lo, ela não pode ser considerada parte integrante da base produtiva que a norma da impenhorabilidade visa proteger. Incluí-la no cálculo da impenhorabilidade seria uma ficção jurídica desprovida de lastro na realidade econômica e funcional da propriedade, subvertendo o propósito do instituto protetivo.

A consequência jurídica primária e mais impactante desta nova orientação é a redefinição do próprio objeto da proteção. O foco da impenhorabilidade se desloca da área registral, que é um dado formal e estático, para a área útil ou de exploração econômica, um critério material, dinâmico e funcional.

De maneira mais clara, isso resulta em uma aplicação mais precisa, justa e equânime do benefício da impenhorabilidade, expandindo seu alcance a proprietários que, embora possuam matrículas com área superior a quatro módulos fiscais, dispõem de uma área produtiva efetivamente enquadrada nos limites legais, garantindo que a letra da lei não se sobreponha ao seu espírito.

Ademais, a decisão promove uma importante e necessária harmonização entre os regimes jurídicos agrário, ambiental e constitucional. Fica estabelecido, de forma inquestionável, que o ônus decorrente da função socioambiental da propriedade, materializado na instituição e manutenção da Reserva Legal, não pode e não deve ser utilizado em detrimento da proteção à pequena propriedade rural familiar.

Afinal, a pequena propriedade também concretiza, à sua maneira, a função social da propriedade, ao garantir o sustento familiar e a produção de alimentos. O cumprimento de um dever ambiental, que é de interesse coletivo, deixa de ser um fator de risco patrimonial para o produtor rural, transformando-se em um pilar de sustentabilidade.

Este precedente confere, ainda, uma robusta e maior segurança jurídica às relações no campo, mitigando conflitos e incertezas. Ao estabelecer um critério claro, objetivo e material para a aferição da pequena propriedade, reduz-se significativamente a litigiosidade. 

Em suma, a decisão do STJ transcende a mera resolução de um caso concreto isolado. Representa um avanço doutrinário e jurisprudencial que prestigia a realidade fática do campo e a finalidade última das normas, em detrimento de um formalismo estéril e, por vezes, prejudicial. 

Ao ajustar o conceito de pequena propriedade rural à sua verdadeira dimensão econômica e funcional, o Tribunal garante que a proteção constitucional, tão vital para a agricultura familiar, seja mais do que uma promessa distante, tornando-se um direito efetivo, tangível e plenamente realizável para quem, com seu trabalho, produz e, ao mesmo tempo, preserva no campo.

Ana Clara Oliveira
Advogada especialista em Direito do Agronegócio, da banca João Domingos advogados.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

ADPF do aborto - O poder de legislar é exclusivamente do Congresso Nacional

2/12/2025

Falecimento e conta conjunta: O banco pode reter todo o saldo?

2/12/2025

Concurso público e convocação tardia: STF mantém decisão que garantiu direito de candidato da Paraíba

2/12/2025

Não há incidência do IPI na transferência de salvados à seguradora

2/12/2025

Entre capital e compliance: Por que a regulação acelera o M&A no ecossistema fintech?

2/12/2025