A ideia de que cada um de nós habita uma esfera mental privada, onde apenas o próprio sujeito pode acessar seus pensamentos, intenções e sensações, está entre as mais persistentes da tradição filosófica ocidental. Ela sustenta que só posso saber se estou com dor, se quis ou não determinado resultado, ou se previ ou aceitei determinado risco, e que ninguém mais pode acessar diretamente essas experiências.
Essa imagem, ainda dominante na dogmática penal, repousa sobre a noção de que a mente é um espaço interior inacessível, onde se guardam os elementos subjetivos da conduta. No entanto, Ludwig Wittgenstein, ao longo de suas Investigações Filosóficas, desmantela essa suposição e mostra, com vigor argumentativo, que a chamada linguagem privada, isto é, uma linguagem que designaria estados mentais acessíveis apenas ao próprio sujeito, é uma impossibilidade lógica. Esse é o centro de sua crítica à ideia de que há “algo oculto” no campo da mente.
O argumento da linguagem privada parte de uma pergunta crucial: seria possível criar uma linguagem em que apenas o falante pudesse compreender o significado das palavras, por se referirem a experiências internas absolutamente privadas? O exemplo mais famoso elaborado por Wittgenstein é o do “diário secreto”, em que uma pessoa decide registrar, todos os dias, a ocorrência de uma sensação por meio de um signo, digamos, a letra “S”. Ao anotar esse signo em seu diário, o sujeito concentra sua atenção na sensação e cria, para si, um vínculo entre o signo e a experiência interna. Mas, como pergunta Wittgenstein, o que garante que, no dia seguinte, esse mesmo signo “S” remeta à mesma sensação? Como é possível saber que se trata da mesma experiência? Qual é o critério de correção? A resposta é desconcertante: não há critério. Nesse contexto, dizer que é correto o que “sempre me parece correto” não significa nada. Não há como falar de correção onde não há possibilidade de erro, e, portanto, tampouco de sentido.
Esse raciocínio revela uma das teses mais poderosas do pensamento wittgensteiniano: o significado de uma palavra não é garantido por um ato interno de nomeação, mas pelo uso compartilhado que dela se faz em contextos públicos. O uso estabelece o sentido. Se não há regras compartilhadas de uso, não há linguagem. O signo “S” do diário privado não pode ser entendido nem mesmo por quem o escreve, porque carece de critérios objetivos de correção. Nesse ponto, Wittgenstein inicia sua crítica mais incisiva à concepção cartesiana da mente: se uma sensação não pode ser identificada nem mesmo por quem a sente, com que legitimidade se pode pretender imputar a outro um “estado mental” como a intenção, a previsão ou a aceitação do risco?
A crítica de Wittgenstein, portanto, não é meramente semântica. Ela atinge diretamente a ideia de introspecção como fundamento da certeza subjetiva. Quando se afirma que apenas o sujeito pode saber se sente dor, ou se quis determinado resultado, parte-se da premissa de que há uma conexão intransponível entre linguagem e interioridade. Mas Wittgenstein mostra que essa conexão é, na verdade, uma construção gramatical sem base real. Ele escreve: “Se uso a palavra ‘dor’, uso-a com base nas expressões naturais da dor: o choro, o gesto, o comportamento. A palavra substitui o grito, não o descreve.” Não há, portanto, um objeto interior chamado dor que se comunica por palavras; há, sim, um jogo de linguagem no qual a dor é manifestada, reconhecida e compreendida socialmente.
Esse ponto é crucial para a teoria significativa da imputação. A insistência em critérios subjetivos invisíveis, como o dolo eventual, transforma o processo penal numa tentativa de leitura da mente do outro. A responsabilidade penal passa a depender de suposições sobre a previsão e a aceitação de riscos por parte do agente, suposições que jamais podem ser verificadas com segurança. A teoria significativa da imputação, ao incorporar a crítica wittgensteiniana, propõe uma ruptura com esse modelo. Não se trata mais de imaginar intenções ocultas, mas de analisar a conduta como forma de vida, dotada de sentido no mundo intersubjetivo. A imputação penal se reconstrói com base na ação significativa, e não no teatro mental de ficções subjetivas.
Wittgenstein chega a ilustrar sua crítica com um exemplo contundente: a história da tribo que não conhece o conceito de dor fingida. Para esses nativos, qualquer expressão de dor é acolhida com empatia, pois não se considera a possibilidade de simulação. Um forasteiro ensina-lhes, então, a distinguir entre dor verdadeira e dor simulada. Ao aprenderem essa distinção, a tribo passa a desconfiar, julgar, classificar. Mas, pergunta Wittgenstein, teriam eles, ao aprender isso, adquirido o conceito de dor? Evidentemente, não. Eles sempre souberam o que é dor. O que aprenderam foi uma nova forma de uso da palavra, inserida em um novo jogo de linguagem. Não há, portanto, uma essência interna da dor. Há o uso público da palavra, que organiza e transforma as práticas sociais.
Essa conclusão conduz a um ponto decisivo: a impossibilidade da linguagem privada significa que não há conhecimento intransferível das sensações. É claro que ninguém pode sentir a dor do outro, mas é igualmente claro que sabemos quando o outro está com dor, não por introspecção, mas pela linguagem, pela conduta, pelo contexto. Wittgenstein afirma: “Se eu disser ‘eu sei que tenho dor’, isso não faz sentido. Não se trata de saber. Trata-se de sentir. Os outros podem duvidar; eu não.” Com isso, dissolve-se o mito de que conhecer estados mentais é um privilégio exclusivo do sujeito.
Essa dissolução tem consequências jurídicas diretas. No campo penal, devemos rejeitar as construções teóricas que partem da ideia de uma mente opaca, cuja chave interpretativa seria o julgamento subjetivo do magistrado. A linguagem do Direito deve se articular com comportamentos públicos, com condutas dotadas de sentido compartilhado. A responsabilidade penal, por sua vez, deve ser atribuída com base em critérios verificáveis, jamais em presunções psicológicas. Ao desmontar a linguagem privada, Wittgenstein oferece as ferramentas conceituais para uma imputação penal fundada na clareza, na objetividade e na constitucionalidade.
Neste segundo artigo da série Filosofia da Mente em Wittgenstein - A base filosófica da Teoria Significativa da Imputação, vimos que a linguagem não é um espelho do interior, mas uma prática social. No próximo artigo, abordarei como Wittgenstein desenvolve a ideia de que nada está oculto: as sensações, os sentimentos e os processos mentais não são entidades escondidas por trás de comportamentos, são expressos nas formas de vida, nos jogos de linguagem, nas condutas públicas. O que está em jogo, como veremos, é a gramática da dor e a superação da metáfora do invisível.
Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra RUDÁ, Antonio Sólon. Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).