Crescemos assistindo a filmes de Hollywood. Em todo filme de detetive, ao realizar uma prisão, o policial saca o distintivo, vira o suspeito contra a parede e recita o mantra sagrado: “Você tem o direito de permanecer calado. Tudo o que disser poderá e será usado contra você no tribunal.” Esse rito, o famoso Miranda warning, fruto de uma decisão da Suprema Corte americana de 1966 (Miranda v. Arizona), sempre pareceu uma cena de cinema. Um adereço de roteiro ou um bordão que dava ao mocinho mais uma fala antes do corte.
Enquanto até os Dirty Harries das telas seguiam o script da legalidade, no Brasil a história era outra. O direito ao silêncio era uma garantia que só parecia existir na cadeira acolchoada da audiência ou, com sorte, na formalidade de um interrogatório. O verdadeiro jogo começava antes: na “entrevista informal” da blitz, no “papo reto” da viatura, na “conversa” durante uma busca e apreensão. Era ali, sem advogado, microfone ou registro, que se extraía a tão desejada “confissão” - com ênfase nas aspas. Nessa mise-en-scène policial, a coerção se disfarçava de diálogo e o silêncio era tratado como culpa. E o roteiro, como sempre, terminava em condenação.
Essa confissão clandestina, arrancada na base do medo, depois aparecia “lavada” nos autos, em depoimentos de policiais que juravam ter ouvido o suspeito “confessar espontaneamente”. O Judiciário, por anos, aceitou a farsa como se fosse fato. Aury Lopes Jr., com ironia cortante, costuma resumir o absurdo com uma frase memorável: “Eu nunca vi tanto traficante suicida.”
Agora, o STF se prepara para escrever outro final. No julgamento do RE 1.177.984 (Tema 1.185), discute-se o momento em que o direito ao silêncio passa a valer. A questão parece técnica, mas é visceral: quando o cidadão precisa ser avisado de que pode se calar? De que pode aguardar a presença de um advogado antes de se pronunciar? Apenas diante do delegado ou do juiz, ou já no instante em que o Estado põe as mãos sobre ele?
De um lado, há a visão antiga - nefasta herança de um processo penal de obediência e medo - segundo a qual basta avisar o suspeito durante o interrogatório formal. De outro, a visão constitucional, que se impõe com força crescente: o aviso é obrigatório desde a primeira abordagem. Porque é nesse instante, quando o indivíduo está mais vulnerável, que a advertência faz sentido. Lógico! A palavra só é livre se for consciente.
Essa é a espinha dorsal da tese do ministro Edson Fachin em seu voto já proferido: o direito ao silêncio não é um luxo retórico. É uma fronteira civilizatória. Sem ele, a “conversa informal” vira um interrogatório clandestino, na mesma linha em que a “cooperação” vira coação. A Constituição exige o aviso prévio porque sabe que o Estado é grande, armado e insistente e que o cidadão, sozinho, não possui chance nesse diálogo desigual.
Se o aviso não for dado, a consequência é clara: tudo o que se disser sem ele deve ser considerado prova ilícita. É importante que deixemos claro que não se trata de uma formalidade, mas sim a diferença entre liberdade e arbítrio. A confissão arrancada na viatura não pode ser “purificada” depois no depoimento policial. É o velho princípio da árvore envenenada: se a raiz e o caule estão rotos, assim também estará o fruto. O Supremo discute, portanto, se o processo penal brasileiro continuará aceitando frutos podres em nome de uma falsa “eficiência policial” - outra loucura à brasileira, segundo a qual a eficácia se mede com base somente em condenações, mortes e prisões.
Outro ponto essencial nesta discussão é o ônus da prova. Não cabe ao acusado provar que foi coagido, mas sim ao Estado provar que o informou de seus direitos. E a prova dessa advertência não deve vir de palavras, mas de registros verificáveis. Câmeras corporais, gravações de áudio e vídeo, instrumentos que protegem o cidadão e também o policial honesto. Curioso notar, contudo, que muita gente ainda se opõe à implementação da tecnologia em favor da preservação da verdade.
O que está em jogo não é apenas o direito de ficar calado, mas o dever do Estado de saber agir a despeito do silêncio. A cada vez que se ignora essa garantia, não é só o suspeito, humilhado e coagido, que acaba por confessar um fato, seja lá por qual motivo for. É o Estado de Direito contemporâneo que confessa parte de sua ineficácia ou, até melhor, sua absoluta ausência em determinados lugares e para tantas pessoas.
Nas telonas, o aviso de Miranda sempre serviu como um prelúdio de justiça. No Brasil, ele ainda é um roteiro em aberto. Talvez o que o STF esteja decidindo agora seja a chance de filmarmos, enfim, a nossa própria versão. Claro, sem Capitães Nascimento, mas em um enredo em que o policial cumpre a lei, o acusado conhece seus direitos. Assim, o valioso silêncio, ao contrário do que dizem os velhos manuais, passa a ser um gesto eloquente de liberdade.