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O ágio pago na aquisição de investimento: a importância da natureza jurídica

Discussão sobre o aproveitamento fiscal do ágio e os limites entre planejamento tributário interpretativo e fático-concreto.

10/11/2025

O título deste texto é uma referência ao artigo escrito por João Francisco Bianco na edição da Controvérsias Jurídico-Contábeis, do ano de 20191, em que o referido professor denuncia que as discussões quanto ao aproveitamento fiscal do ágio “partem de uma premissa” que é ‘equivocada’”.

Segundo Bianco, essa premissa inicial acaba por desviar o foco do verdadeiro ponto controvertido, que reside na determinação da natureza jurídica do ágio. Em sua análise, enquanto o debate permanece centrado em aspectos operacionais ou instrumentais, como a estruturação das reorganizações societárias, deixa-se de enfrentar a questão nuclear, que consiste em compreender qual é, em essência, o fundamento jurídico que legitima (ou não) o aproveitamento fiscal do ágio.

Em recente artigo sobre a forma como o STJ tem se manifestado em casos envolvendo o aproveitamento fiscal do ágio, Sérgio André Rocha, partindo de uma concepção ampla de planejamento tributário, sustenta que seria possível identificar duas espécies distintas de planejamento tributário2:

(i) Planejamento interpretativo: consistiria na adoção de interpretações da legislação tributária que resultassem em economia fiscal para o contribuinte. Nessa hipótese, o princípio da legalidade exerceria papel central, uma vez que o foco do contribuinte estaria em compreender “exatamente o que estabelece a lei em cada caso”, sem alterar a substância dos fatos; e

(ii) Planejamento tributário fático-concreto: ocorre quando o sujeito passivo atua intencionalmente sobre os fatos a serem praticados, de modo a alcançar um regime fiscal mais favorável ou evitar um regime mais oneroso. 

 O autor ressalta, contudo, que essa distinção não é absoluta, uma vez que o planejamento interpretativo está centrado na interpretação normativa, enquanto o fático-concreto se baseia na qualificação dos fatos, havendo, na prática, interação e zonas de sobreposição entre ambos. Confiram-se suas palavras:

“É importante ressaltarmos, para que não haja confusão, que não se trata de uma dicotomia absoluta. Não estamos sustentando que nos planejamentos tributários interpretativos os fatos sejam irrelevantes, nem que nos planejamentos tributários fático-concretos não exista interpretação jurídica. É óbvio que não! 

O que estamos destacando é que, em cada um desses casos, há uma preponderância do tema central de controvérsia. Ou seja, não é uma questão de exclusividade, é uma questão de maior ou menor relevância.” 

De forma acertada, o professor ainda asseverou que a Fazenda, no âmbito da temática de aproveitamento fiscal de ágio pago na aquisição de participações societárias no período anterior à vigência da lei 12.973/14, tentou “transformar um debate de planejamento tributário fático-concreto em uma controvérsia sobre um suposto planejamento tributário interpretativo”. 

Por que, então, essa discussão se manifestou no âmbito do aproveitamento fiscal do ágio? Em nossa visão, a justificativa para esse fenômeno reside na observação formulada pelo professor João Francisco Bianco, segundo a qual a tomada de posição quanto à natureza jurídica do aproveitamento fiscal do ágio possui aptidão para influenciar a própria apreciação dos fatos em cada caso concreto.

Em outras palavras, a definição jurídica atribuída ao ágio – se ele é visto como um direito fiscal autônomo, como mera consequência contábil de uma operação societária ou, ainda, como uma hipótese de diferimento de despesa – condiciona a forma como os tribunais e o Fisco analisam a substância das operações realizadas. Assim, o debate dogmático sobre a natureza do ágio transcende a teoria e reverbera diretamente na valoração dos elementos fáticos dos casos submetidos ao controle judicial e administrativo.

Concordamos com o professor Sérgio André Rocha no sentido de que a dicotomia entre o denominado “planejamento tributário interpretativo” e o “planejamento tributário fático-concreto” não é absoluta, e é exatamente por esse motivo que, em matéria de aproveitamento fiscal do ágio, há tanta dificuldade em se concluir se determinada reorganização societária permite, ou não, o aproveitamento fiscal do ágio. Em outras palavras: quem enxerga no aproveitamento do ágio um “benefício fiscal” irá apreciar de forma distinta a reorganização societária implementada em comparação com aqueles que enxergam nas normas de aproveitamento do ágio um “incentivo” (norma extrafiscal). 

Em outro recente artigo3, o professor Sérgio André Rocha, ao analisar a questão da “empresa-veículo” em matéria de aproveitamento fiscal de ágio, propõe o “teste da subtração” para identificar os limites ao “planejamento tributário fático-concreto”, utilizando-se, na construção desse raciocínio, de expressões como “benefício fiscal” e “opção legal”, que, invariavelmente, denunciam uma tomada de posição hermenêutica no que tange aos artigos 7º e 8º da lei 9.532/97 (regras que permitem o aproveitamento fiscal do ágio). 

Temos a convicção de que é impossível analisar “planejamentos tributários fático-concretos” – para continuar com a didática segregação feita pelo ilustre professor – em matéria de aproveitamento fiscal de ágios pagos na aquisição de investimentos sem se tomar uma posição hermenêutica sobre a natureza jurídico-tributária das normas reconstruídas a partir da interpretação dos arts 7º e 8º da lei 9.532/97 e do art. 22 da lei 12.973/14 (regras que permitem o aproveitamento de ágio quando da realização de reorganizações societárias4). 

A partir desse diagnóstico, analisamos 507 acórdãos do Carf5, entre 2015 e 2020, a fim de identificar quais seriam as possíveis naturezas jurídicas de tais normas.

O exame revelou a existência de diferentes correntes interpretativas, cada uma delas refletindo uma concepção específica sobre o fundamento e a função dessas normas.

De modo sintético, foram identificadas as seguintes classificações: (i) benefício fiscal; (ii) incentivo fiscal com característica extrafiscal; (iii) norma antielisiva específica; e (iv) norma conformadora da base de cálculo (regra de dedução ou perda de capital diferida), subdividida, ainda, em “quatro” subcorrentes. 

Cada uma dessas naturezas possui fundamentos distintos e consequências hermenêuticas que impactam a apreciação do “planejamento tributário fático-concreto”. Abaixo, resumimos os fundamentos que sustentam cada uma dessas “naturezas jurídicas” e suas consequências hermenêuticas, identificadas após a análise da jurisprudência administrativa supramencionada e da doutrina6 

Natureza Jurídica 

Fundamento(s) 

Consequência Hermenêutica 

Benefício fiscal 

Fundamento nº 1: as regras de aproveitamento fiscal do ágio representariam uma “exceção” em face do regramento geral, no sentido de que (i) o custo relacionado ao investimento somente poderia ser utilizado quando da sua alienação ou liquidação (regras previstas nos arts. 31 e 33 do Decreto-Lei 1.598/77); e (ii) a amortização do ágio seria indedutível (artigo 24 do Decreto-Lei 1.598/77). 

 

Fundamento nº 2: o artigo 8º da Lei 9.532/97 inovou no ordenamento jurídico, permitindo o aproveitamento do ágio em “incorporações reversas” ou “às avessas”, fato que não era permitido no regime jurídico anterior.  

 

Fundamento nº 3: o regime jurídico trazido pela Lei 9.532/97, em comparação com o regime jurídico anterior (art. 34 do Decreto-Lei 1.598/77), garantiria maior dedução na apuração do Lucro Real. 

Sujeição ao artigo 111, II, do CTN. 

Incentivo fiscal (extrafiscal) 

Fundamento nº 1: o aproveitamento fiscal do ágio em reorganizações societárias verticais7 teria “surgido” com a edição da Lei 9.532/97. 

 

Fundamento nº 2: o momento histórico (occasio legis) demonstraria que esse “novo” regime jurídico (previsto na Lei 9.532/97) serviria para garantir vantagens a fusões e aquisições, a fim de incentivar as privatizações. 

 

Fundamento nº 3: ao se comparar o “novo” regime jurídico (decorrente da Lei 9.532/97) com o anterior (art. 34 do Decreto-Lei 1.598/77), identificar-se-ia o “incentivo” para implementar as condutas previstas na Lei 9.532/97 para garantir a dedutibilidade nela prevista (implementação das reorganizações societárias para viabilizar o aproveitamento fiscal do ágio fundamentado em expectativa de rentabilidade futura). 

Privilegiamento da liberdade do contribuinte na adoção de estruturas societárias de aquisição, sendo que a utilização de “empresas-veículo” seria conduta “induzida” pela Lei 9.532/97. 

Norma antielisiva específica 

Fundamento nº 1: a Lei 9.532/97 teria “restringido” o aproveitamento fiscal do ágio, fato que teria sido feito para reduzir a possibilidade de “planejamentos tributários” nada ortodoxos feitos pelos contribuintes. 

 

Fundamento nº 2: a exposição de motivos da MP 1.602/97 demonstraria a natureza antielisiva específica contida nos arts. 7º e 8º da Lei 9.532/97. 

Somente seria possível o aproveitamento fiscal do ágio de rentabilidade futura se a reorganização societária vertical envolvesse o “real” ou “originário” comprador do investimento adquirido com ágio. 

Regra conformadora da base de cálculo 

Subcorrente nº 1: defende que a dedução do ágio de rentabilidade futura seria uma opção fiscal do contribuinte. 

 

Subcorrente nº 2: entende que a dedução do ágio de rentabilidade futura estaria vinculada ao princípio da neutralidade da tributação. 

 

Subcorrente nº 3: sustenta que a dedução do ágio de rentabilidade futura estaria fundamentada no princípio da confrontação do custo com a receita que lhe deu fundamento (ou matching contábil). 

 

Subcorrente nº 4: posiciona-se no sentido de que a dedução do ágio de rentabilidade futura tem como fundamento a realização do investimento, decorrente da reorganização societária vertical. 

Aderência integral às regras estruturantes do IRPJ (conceito de renda, princípios da capacidade contributiva, renda líquida, generalidade, universalidade e pressuposto de disponibilidade previsto na definição do fato gerador do Imposto de Renda decorrente do artigo 43 do CTN).

 Não pretendemos, neste breve texto, demonstrar as razões pelas quais entendemos que as regras que permitem o aproveitamento fiscal do ágio (arts. 7º e 8º da lei 9.532/97 e art. 22 da lei 12.973/14) são normas conformadoras da base de cálculo do IRPJ cujo fundamento jurídico decorre da realização do investimento em reorganizações societárias “verticais”8.

O que se busca ressaltar, neste momento, é a importância do diagnóstico feito por Sérgio André Rocha na linha de que a identificação de limites normativos em planejamentos tributários decorre de uma relação imbricada entre o que o referido professor chamou de “planejamento tributário interpretativo” e “planejamento tributário fático-concreto”. 

Uma coisa é certa - e decorre tanto da análise de diversos precedentes administrativos quanto da doutrina tributária sobre o aproveitamento fiscal do ágio: não é possível interpretar adequadamente os fatos nem delimitar os contornos do chamado “planejamento tributário fático-concreto” sem previamente adotar uma posição sobre o fundamento jurídico das normas que permitem o seu aproveitamento fiscal.

Antes, portanto, de se propor testes de validação - como o chamado “teste da subtração” - para aferir a legitimidade da utilização de “empresas-veículo” nas operações de reorganização societária, é indispensável determinar qual é o fundamento normativo correto das regras previstas nos arts. 7º e 8º da lei 9.532/1997, e no artigo 22 da lei 12.973/14. Do contrário, corre-se o risco de, na tentativa de enxergar de perto, utilizar os óculos de quem tem dificuldade para ver de longe, ou seja, aplicar critérios de aferição prática sem antes ajustar a lente teórica que orienta a própria compreensão do fenômeno jurídico em exame.

Vinicius Pimenta Seixas Pereira
Sócio de Pinheiro Neto Advogados.

José Arnaldo Godoy Costa de Paula
Associado de Pinheiro Neto Advogados.

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