1. Breve introdução
A expressão “laboratórios da democracia” nasceu nos Estados Unidos a partir de um voto célebre do juiz Louis Brandeis, da Suprema Corte, em 1932 (New State Ice Co. v. Liebmann). Brandeis afirmou que, no sistema Federal dualista norte-americano, cada Estado tem autonomia suficiente para experimentar políticas públicas próprias, sem comprometer a unidade nacional. Assim, os Estados funcionam como verdadeiros laboratórios de inovação democrática, testando soluções sociais, econômicas e jurídicas que, se exitosas, podem inspirar a federação como um todo.
No Brasil, todavia, a estrutura é cooperativa e centralizada, e os municípios, embora formalmente entes federados, ainda exercem papel tímido na criação de políticas públicas autônomas. Entretanto, dada sua proximidade com a população e o conhecimento direto das realidades locais, o município brasileiro poderia desempenhar com maior eficácia essa função laboratorial. É no plano municipal que se percebe mais claramente o impacto imediato das decisões públicas - na saúde, educação, mobilidade e sustentabilidade.
Se dotados de autonomia real e incentivos institucionais, os municípios seriam o campo ideal para testar políticas inovadoras, adaptáveis às diversidades regionais, contribuindo para o aperfeiçoamento da federação brasileira e tornando-a mais responsiva, democrática e experimental, à semelhança do modelo norte-americano.
Essa será a tônica deste artigo.
2. Laboratórios da democracia
Como referem Brian Galle e Joseph Leahy, o federalismo americano compara o governo descentralizado a uma espécie de entidades-cientistas-cívicas, cada uma em busca de descobertas para melhorar a humanidade. Recordam Galle e Leahy que o Justice Louis Brandeis elogiou os governos estaduais e locais como os “laboratórios” da democracia e que o Justice Anthony Kennedy escreveu que o federalismo “dividiu o átomo da soberania”. Os próprios casos que Kennedy elogia, todavia, têm algo em comum: mesmo um cientista precisa de incentivo para inovar.
Os governos estaduais e locais podem ser considerados cientistas, inventores sem patentes, como dizem Galle e Leahy: como qualquer pessoa pode roubar suas novas ideias, que incentivo eles teriam para inventar? E, trazendo para o Brasil, adiciono um risco: num sistema de controles que gerou o “apagão das canetas” - expressão usada para denunciar que o denuncismo acarretou o retardo da Administração Pública - como se pode exigir “inovação” se os órgãos de controle não têm capacidade intelectual, ou isenção moral, para distinguir - dentro da análise de risco das inovações - o que seria um insucesso tolerado de coisa diversa, que seria um erro crasso. Jogam tudo na última conta. E que se vire o “cientista” para provar o contrário. Por isso “apagaram as canetas inovadoras”.
Compreender os incentivos para um ente sub-nacional ser um laboratório da democracia é fácil. Ocorre que precisamos - concordando ou não com o tom ad terrorem - prestar atenção na prática. Como Steven Levitsky e Daniel Ziblatt alertaram, os estados americanos já foram descritos por Louis Brandeis como “laboratórios da democracia”, mas, podem correr o risco de se tornarem laboratórios do autoritarismo. A advertência é válida, ainda que discordemos da razão da crítica: os autores por vezes entendem como “revogar direito de voto” a efetivação de lei de exigência documento com foto para o ato de votação.
Como analisa Gerald S. Dickinson o Justice Brandeis imaginava os estados como arenas independentes onde políticas sociais e econômicas poderiam ser testadas sem colocar em risco toda a nação, um princípio que o Brandeis, legisladores, tribunais e acadêmicos tradicionalmente aplicavam às legislaturas estaduais. Dickinson defende, inclusive, que a visão legislativa da experimentação democrática é incompleta: além do incentivo à experimentação legislativa estadual sem impedimentos por parte dos atores Federais, essa visão legislativa da experimentação democrática é incompleta. Falta ainda a análise da posição do Judiciário nesta “experimentação”. Logicamente, o autor avalia as Cortes Estaduais onde os juízes são eleitos. No Brasil, todavia, ainda que o Judiciário não atue “positivamente”, ao menos participará da “experimentação” ao julgar ações que envolvam cada política pública experimentada.
3. A vida real é no município
Expressões muito comuns, que convivem inclusive em harmonia, são estas duas: a primeira, “a família é a célula mãe da sociedade”; e a segunda, “a vida real ocorre no Município, sendo os Estados e a União ficções jurídicas”. O Brasil, especialmente no período pré-Constituição de 1988 sempre experimentou uma tendência municipalista. Mesmo a prática política anterior sempre viu nos municípios uma célula altamente importante da República.
Sobreveio a CF/88 e plasmou o município como ente partícipe da Federação, ao lado da União e dos Estados (art. 1º), com auto-organização e autonomia (art. 18), regência por lei orgânica votada pelos próprios vereadores, e não outorgada pelos Estados (art. 29). A CF/88 listou competência locais diretas (art. 30). E ainda previu a intervenção Federal nos Estados, em caso de violação da autonomia local (art. 34, V, “b”, VII, “c”).
Apesar disso tudo, se na década de 1980 - especialmente - era algo “elegante” dizer-se um “municipalista”, ao longo de pouco mais de três décadas foram matando a relevância dos municípios. Ocorre que expressões “município” e “municipalismo” sub-repticiamente passaram a ter um ar cafona, antiquado como se ultrapassadas estivessem. Foram lenta e propositalmente sendo substituídas por outras novidadeiras, como “cidade” e o “urbano”. A “direita” não viu a razão. E já paga caro por isso. A substituição não foi uma coincidência. Foi pensada estrategicamente. Explico adiante.
4. Matar o “município”: Um projeto de 35 anos, e contando
A expressão “cidade”, devo afirmar, não me agrada porque esquece que mesmo o planejamento “urbano” não se destina exclusivamente à noção de “cidade”. A cidade é um elemento do “município”. E não pode ser dissociada das “áreas rurais” ou “áreas menos urbanizadas” ao seu redor. Por esse motivo - não vou me estender aqui - discordo veementemente do discurso de Ran Hirschl em seu livro City, State: Constitutionalism and the Megacity.
Toda a produção a respeito da realidade local não resvala mais em “direito municipal”, mas, em “direito da cidade” ou “direito urbano” ou “direito do urbanismo/urbanístico”. Qual a razão pela qual a obra de Hirschl importa tanto? Pois ele, em alguns trechos deixa clara uma visão. Visão que sempre foi um objetivo sob do enfraquecimento municipal. Transcrevo apenas um trecho, suficiente para compreensão do objetivo dessa substituição do conceito de “município” pelo de “cidade”.
Nos últimos 35 anos, desde a promulgação da CF/88, nunca deixaram sequer escondido no Brasil que iriam tentar matar os municípios. E contou com apoio da “esquerda e da direita” que, sejamos francos, compartilha uma visão tecnocrata e “elitista” acreditando que a centralização em Brasília daria coisa boa. Não deu.
Vamos pegar apenas três exemplos. A permissão parlamentar para a centralização de receitas Federais não partilháveis, na era Fernando Henrique Cardoso quando, ao invés de aumento de impostos Federais - nos quais Estados e municípios têm participação - foram agigantadas as “contribuições”. Ou, podemos pegar dois temas mais recentes, quando das emendas constitucionais que reduziram o número de vereadores, e também tentaram reduzir a remuneração de vereadores. Concorde-se ou não com uma vereança forte e bem remunerada, mas, sem ela o municipalismo brasileiro deixará de ter os contornos únicos que a CF de 1988 nos legou. Por fim, agora sobrevém a “reforma tributária” milagreira. Viram que o setor de serviços é agora o concentrador de riquezas e não poderiam deixar tamanha riqueza nas mãos dos municípios. O subterfúgio de simplificar o sistema tributário não passa disso: um engodo.
5. É preciso ressuscitar o município e o municipalismo
E preciso ressuscitar a ideia do município, com os contornos brasileiros. A “sede”, os “distritos”, as “zonas rurais”, enfim, toda a sua complexidade cujas noções novidadeiras foram enfraquecendo. De modo ainda mais urgente, que os representantes conservadores lutem para a inclusão do Direito Municipal nas faculdades de Direito brasileiras. Além de, doravante, terem maior atenção em votações de propostas de emendas constitucionais com alguma tendência de afetar a autonomia local.
Nos últimos 40 anos até mesmo a nomenclatura “Direito Municipal” vem perdendo lugar. Há novidadeiras expressões como “Direito Urbano”, “Direito da Cidade” e situações do gênero. A gênese dessas nomenclaturas visou compreender o fenômeno do agigantamento das áreas urbanas mais povoadas e, especialmente, as chamadas metrópoles. Limitam-se aos perímetros urbanos ou metropolitanos.
Todavia quaisquer dessas novas demandas não são capazes de substituir o Direito Municipal. São um conteúdo e não o continente. Chegam alguns autores à defesa do ressurgimento das Cidades-Estado, ou, para sermos mais precisos, que se repense o status federativo das grandes Metrópoles. Neste caso, igualmente, não se substitui o Direito Municipal, sendo a este exigido que a configuração jurídica das “metrópoles” seja avaliada com atenção peculiar. Um desafio do qual não pode fugir a doutrina municipalista.
A Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação edita as diretrizes curriculares que orientam os cursos jurídicos no Brasil. No ano de 2018, mais precisamente em 17 de dezembro, fora editada a resolução 005/18 institui as diretrizes curriculares nacionais do curso de graduação em Direito. O curso de graduação em Direito deve cumprir a meta contida no da formação técnico-jurídica que envolve, “além do enfoque dogmático, o conhecimento e a aplicação, observadas as peculiaridades dos diversos ramos do Direito, de qualquer natureza, estudados sistematicamente e contextualizados segundo a sua evolução e aplicação às mudanças sociais, econômicas, políticas e culturais do Brasil.”
Dentre as realidades políticas, culturais e sociais mais brasileiras, encontram-se os municípios e o nosso modelo de Federação Tripartite. Portanto, nada mais lógico que se estude, em nosso país, a realidade Municipal de forma igualmente específica.
Mesmo nos concursos para procuradores municipais há uma severa apatia na inclusão da disciplina Direito Municipal de forma específica nos editais. Essa falta acaba sendo “justificada” pela alusão à hipotética transversalidade ou interdisciplinaridade. O que de fato não ocorre. Basta verificar que as noções específicas de Direito Municipal, como tal consideradas, não são objeto de preocupação na confecção de editais e provas de concursos em nossa carreira. Note-se o caso do concurso para procurador municipal de São Paulo (2014) que no máximo previa situações como leis e decretos municipais, ou referência à “autonomia municipal”. Nada muito diferente da PGM RIO. Ressalvas também sejam feitas à PGM Porto Alegre, cujo edital explicitamente elenca o Direito Municipal.
Os concursos municipais podem acabar selecionando pessoas excelentes, mas, talhadas para cargos que não lidam, por exemplo, com a defesa do “interesse local”. Nunca é demasiado recordar: o perfil do futuro profissional também deve ser objeto de preocupação ao momento do recrutamento, já que o Inciso II do art. 37 exige - e poucos atentam - que o concurso tenha correlação direta com a “natureza e a complexidade do cargo”.
Inacreditável como há um silêncio sepulcral quanto a essa aberração: no maior país municipalista do mundo, o Direito Municipal não é disciplina autônoma obrigatória nos cursos de direito nem é cobrado em concursos. Se formos em países nos quais o Poder Local não é sequer dotado de autonomia constitucional, como é o caso dos Estados Unidos, disciplinas como “Local Government” ou “Municipal Law” constam fartamente na grade curricular disponível aos alunos.
6. Municípios podem “fazer experiência”?
David Osborne e Ted Gaebler em obra clássica - reinventando o Governo - propugnavam por uma mudança de pensamento quanto ao engessamento absoluto do gestor público. Poderiam os gestores - responsavelmente - propor experimentos. Inclusive - e porque não? - consultando previamente os órgãos de controle. Trazendo o caso para o Brasil: o município pode propor um experimento, e avisar previamente ao Tribunal de Contas e até mesmo ao Ministério Público. Uma tentativa segmentada de execução de uma política pública experimental [ou uma mudança de procedimento já existente, etc].
Trarei dois exemplos que hoje serão anedotas. Mas os fatos são verdadeiros. Serão casos de quase 30 anos, para termos o distanciamento do tempo, que sempre permite ver de forma mais isenta de paixões.
Certa feita - ainda na década de 1990 - uma cidade de interior notou algo “estranho”: quando precisava enviar seus agentes políticos ou servidores para reuniões em Brasília, a “passagem aérea” de ida e volta ficava mais cara comprada isoladamente, do que se fosse adquirida em conjunto com a hospedagem - e assim recebia a nomenclatura “pacote”. Pois bem, consultado o Tribunal de Contas, veio a resposta: o município é proibido de adquirir “pacote”, pois isso seria confundido com “pacote de turismo”. A cidade, então, manteve a compra “separada” de passagens e de hospedagens, pagando o dobro do preço de um “pacote”.
Por último, um vereador - hoje falecido, Sr. Josias Marvila, devo homenageá-lo aqui - também de uma cidade interiorana teve uma ideia: se o Estado e a prefeitura colocam “Defensor Público” para um necessitado quando precisa se defender em um processo judicial, por qual razão a prefeitura não poderia colocar um “arquiteto” para ajudar no projeto da casa dos mais necessitados quando forem construir? Muitas vezes a população tem a mão de obra própria ou a ajuda de amigos e parentes; tem o material de construção comprado a duras penas; mas, não tem um projeto. Assim partem para a “auto construção não licenciada”, construções de "gênese irregular", diriam os doutrinadores. Mas, o vereador, em sua visão próxima do problema local viu uma possível solução ou ajuda para amenizar problemas: vamos acabar com as obras pelo menos ajudando no licenciamento. Passariam a ser construídas seguindo projetos seguros, gerando a proteção dos próprios moradores. O projeto de lei foi vetado. A cidade seguiu com construções irregulares.
Sim, certas “inovações” não são nem tão “estranhas” ou "perigosas". O tempo - a distância de 30 anos - mostra que eram inofensivas em termos de externalidades negativas. Mas, a visão tosca impediu que pudéssemos experimentar externalidades positivas. Inovar sempre envolve o “risco da incompreensão”, especialmente dos órgãos de controle.
Se os municípios e o municipalismo não forem mais valorizados, nunca saberemos se poderiam ter sido eficientes laboratórios da democracia brasileira.