Migalhas de Peso

Um julgado que honra o espírito da lei do superendividamento

O recente acórdão proferido pelo desembargador Antônio da Rocha Lourenço Neto, do TJ/RJ, representa um marco na efetiva aplicação da lei 14.181/21.

17/11/2025

O julgamento proferido na apelação 0847294-04.2023.8.19.0002, pela 8ª Câmara de Direito Privado do TJ/RJ, sob relatoria do desembargador Antônio da Rocha Lourenço Neto, em 30 de setembro de 2025, ao reconhecer a situação de superendividamento da consumidora Maria Isabel de Albuquerque Teixeira e homologar o plano de repactuação de dívidas com limitação dos descontos a 35% da renda líquida, materializa a finalidade protetiva da norma e reafirma o papel do Judiciário na concretização da dignidade da pessoa humana.

A decisão vai além de uma simples análise contratual. Ao afastar a aplicação automática do decreto 11.150/22 - que fixou o “mínimo existencial” em R$ 600 - o relator demonstrou sensibilidade e rigor técnico ao destacar que tal parâmetro não pode ser reduzido a um valor aritmético, sob pena de condenar o consumidor à miséria. O voto evidencia compreensão profunda de que o mínimo existencial é um conceito jurídico indeterminado, que deve ser definido conforme as condições concretas do devedor e de sua família, à luz da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da Constituição Federal).

O desembargador Lourenço Neto também faz o necessário distinguishing em relação ao Tema 1.085 do STJ, afastando sua aplicação nas ações de superendividamento. De forma precisa, esclareceu que a limitação de 35% não decorre de mera analogia com o empréstimo consignado, mas constitui instrumento essencial para a viabilidade do plano de repactuação e a proteção do mínimo existencial. Trata-se, portanto, de uma leitura sistemática e finalística do microssistema instituído pela lei do superendividamento.

O voto ressalta ainda que o objetivo da lei 14.181/21 não é desonerar o devedor, mas permitir a recomposição financeira com base na boa-fé e na função social do contrato, equilibrando direitos e deveres. Essa perspectiva rompe com a visão punitiva do endividamento e resgata a centralidade do ser humano no sistema de crédito.

Tenho insistido reiteradamente, em fóruns, palestras e ofícios dirigidos aos tribunais de Justiça, sobre a urgência de promover cursos de formação, oficinas e debates institucionais sobre a lei do superendividamento. O julgado do TJ/RJ, relatado pelo desembargador Lourenço Neto, é exemplo concreto de como a magistratura pode - e deve - aplicar a norma conforme sua finalidade social e constitucional. Essa decisão deveria ser leitura obrigatória para todos os magistrados que atuam na temática do superendividamento.

Mais do que um precedente isolado, o acórdão traduz a maturidade institucional de um tribunal que reconhece o superendividamento como fenômeno social, jurídico e humano. O voto, técnico e empático, mostra que é possível conciliar o rigor da lei com a realidade das pessoas que buscam apenas a chance de recomeçar.

Que este precedente inspire outros julgadores. A efetividade da lei 14.181/21 depende de decisões como esta - firmes na técnica, sensíveis na aplicação e comprometidas com o valor que está no cerne do Direito do Consumidor: a dignidade da pessoa humana.

Leonardo Garcia
Procurador do Estado do Espírito Santo; Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Membro do GT de acompanhamento da Lei do Superendividamento no CNJ, Autor dos livros e parecerista

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