1. Introdução
A máxima de que "onde está a sociedade, está o Direito" (ubi societas, ibi jus) nunca se mostrou tão desafiadora quanto na era digital. A velocidade das transformações tecnológicas frequentemente ultrapassa a capacidade de resposta do ordenamento jurídico, criando lacunas normativas que exigem dos operadores do Direito criatividade interpretativa e coragem para enfrentar o novo. É nesse contexto que surge a questão da herança digital - tema que, até poucos anos atrás, sequer figurava nos manuais de Direito das Sucessões.
O enunciado 687, aprovado na IX Jornada de Direito Civil do CJF, em 2022, representa um marco nessa trajetória. Ao afirmar que "o patrimônio digital pode integrar o espólio de bens na sucessão legítima do titular falecido, admitindo-se, ainda, sua disposição na forma testamentária ou por codicilo", o enunciado não apenas reconhece a existência jurídica dessa nova categoria patrimonial, mas também valida a autonomia da vontade como instrumento de planejamento sucessório no ambiente digital.
Mas será que o Direito realmente acompanha a tecnologia? Ou estamos diante de mais uma tentativa de encaixar realidades novas em molduras antigas? Este artigo propõe-se a analisar criticamente o enunciado 687, investigando suas bases teóricas, suas implicações práticas e, sobretudo, sua capacidade de oferecer respostas adequadas aos desafios da sucessão de bens digitais - em especial, dos criptoativos, que representam talvez o exemplo mais emblemático da tensão entre inovação tecnológica e segurança jurídica.
2. O patrimônio digital como realidade jurídica
2.1. A construção do conceito de patrimônio digital
Durante décadas, o conceito de patrimônio no Direito Civil esteve ancorado em bens tangíveis ou, quando muito, em direitos de crédito documentados fisicamente. A revolução digital, contudo, desmaterializou não apenas os suportes, mas a própria essência de muitos bens. Arquivos em nuvem, criptomoedas, non-fungible tokens (NFTs), perfis monetizados em redes sociais e direitos autorais sobre conteúdos digitais compõem uma nova realidade patrimonial que desafia as categorias tradicionais.
A doutrina tem se esforçado para classificar esses bens. Alguns autores propõem a distinção entre bens digitais patrimoniais e existenciais, sendo os primeiros aqueles com conteúdo econômico direto (como bitcoins e contas bancárias digitais) e os segundos relacionados aos direitos da personalidade (como e-mails pessoais e fotografias íntimas). Há ainda uma terceira categoria, a dos bens dúplices, que transitam entre ambas as esferas – caso dos perfis em redes sociais que, simultaneamente, guardam memórias afetivas e geram receitas publicitárias.
O enunciado 687 não se preocupou em estabelecer uma taxonomia rígida. Ao contrário, optou por uma abordagem funcional, reconhecendo que o patrimônio digital, em sua diversidade, merece tutela jurídica sempre que apresentar valor econômico ou relevância para os sucessores. A justificativa do enunciado é clara ao mencionar exemplos concretos: "direitos autorais sobre conteúdos digitais; perfis, publicações e interações em redes sociais e plataformas digitais com potencial valor econômico; arquivos em nuvem, contas de e-mail; sítios eletrônicos, bitcoins etc."
A menção expressa aos bitcoins não é casual. Representa o reconhecimento de que os criptoativos, apesar de sua natureza descentralizada e de certa resistência inicial do sistema jurídico em aceitá-los como "bens", integram o patrimônio das pessoas e, portanto, devem ser transmitidos aos herdeiros. Trata-se de uma evolução significativa, especialmente se considerarmos que, até recentemente, havia dúvidas sobre a própria natureza jurídica das criptomoedas.
2.2. A fundamentação constitucional do direito à herança digital
O enunciado 687 ancora-se em sólida base constitucional. O art. 5º, inciso XXX, da Constituição Federal garante o direito de herança, e esse direito fundamental não pode ser esvaziado pela mera circunstância de os bens possuírem natureza digital. Como bem observa a justificativa do enunciado, "o ordenamento jurídico brasileiro não pode recusar tutela jurídica a essa modalidade patrimonial que, ainda que não regulada especificamente por lei [...] extrai força normativa da própria Constituição Federal".
Essa fundamentação é crucial porque desloca o debate do plano da legalidade estrita para o da constitucionalidade. Não se trata de criar direitos novos, mas de reconhecer que direitos fundamentais já existentes – como o direito de herança e o direito de propriedade - aplicam-se também aos bens digitais. A ausência de lei específica não pode servir de pretexto para negar efetividade a garantias constitucionais.
O STJ, no julgamento do REsp 2.124.424/SP, em 2025, consolidou esse entendimento ao afirmar que os bens digitais integram a herança e devem ser transmitidos aos herdeiros. A decisão, relatada pela Ministra Nancy Andrighi, reconheceu que o direito sucessório deve assegurar que a impossibilidade de acesso aos bens digitais, devido à existência de senhas não compartilhadas, não cause prejuízo à transmissão do patrimônio.
Ao mesmo tempo, o tribunal estabeleceu limites: nem todos os bens digitais são transmissíveis, devendo-se preservar aqueles que possam violar direitos de personalidade do falecido ou de terceiros.
3. A sucessão testamentária de bens digitais
3.1. Autonomia da vontade e planejamento sucessório
Se o reconhecimento de que o patrimônio digital integra o espólio já representa um avanço, a admissão de sua disposição testamentária constitui verdadeira revolução. O enunciado 687 não se limita a afirmar que os bens digitais são transmissíveis ex lege; vai além, ao reconhecer que o titular pode, em vida, determinar o destino desses bens por meio de testamento ou codicilo.
Essa possibilidade é especialmente relevante no caso dos criptoativos. Diferentemente de uma conta bancária tradicional, cujo saldo pode ser identificado pelos herdeiros mediante certidões e ofícios, uma carteira de bitcoins só é acessível por quem detém a chave privada. Se o titular falece sem compartilhar essa informação, os criptoativos tornam-se irrecuperáveis, mesmo que os herdeiros comprovem a titularidade. Trata-se de uma perda patrimonial irreversível, que contraria frontalmente o princípio constitucional da garantia do direito de herança.
O testamento surge, então, como instrumento de planejamento sucessório capaz de evitar essa perda. Por meio dele, o testador pode não apenas indicar quem receberá seus criptoativos, mas também fornecer as informações técnicas necessárias ao acesso: endereços de carteiras, seeds de recuperação, senhas de exchanges, localização de hardware wallets. Trata-se de informações que, pela própria natureza dos criptoativos, não podem ser descobertas pelos herdeiros sem a colaboração do titular.
A doutrina tem debatido qual modalidade de testamento seria mais adequada para essa finalidade. O testamento público, lavrado em cartório, oferece segurança formal, mas expõe informações sensíveis (como chaves privadas) a terceiros, o que pode comprometer a segurança dos ativos. O testamento cerrado, por sua vez, preserva o sigilo, mas exige formalidades que podem dificultar sua elaboração. Já o testamento particular, embora mais acessível, depende de confirmação judicial e pode gerar controvérsias sobre sua autenticidade.
Há ainda a possibilidade do codicilo, mencionado expressamente no enunciado 687. Trata-se de instrumento simplificado, adequado para disposições de pequena monta. O codicilo pode ser útil para a transmissão de criptoativos de valor reduzido ou para a atualização de informações sobre carteiras digitais, sem a necessidade de revogação integral do testamento.
3.2. Disposições testamentárias negativas: O direito de não ser herdado
Um aspecto particularmente inovador do enunciado 687, constante na parte final da Justificativa, é o reconhecimento das "disposições de última vontade de viés negativo", ou seja, “aquelas que determinam a eliminação total dos dados e informações do de cujus.” Essa possibilidade, embora não prevista expressamente no CC, decorre da autonomia da vontade e do direito à autodeterminação informativa.
A doutrina e a jurisprudência entendem que, em observância ao princípio da autonomia da vontade e do direito à autodeterminação informativa do indivíduo, devem ser respeitadas as chamadas disposições de última vontade de viés negativo.
A manifestação prática desse viés negativo é a determinação expressa do testador (o de cujus) de que seus perfis em redes sociais, e-mails, arquivos pessoais na nuvem ou outros dados e informações íntimas sejam totalmente eliminados após seu falecimento e não sejam transmitidos aos herdeiros.
Essa medida visa proteger o Direito à Intimidade do falecido, garantindo que sua vontade de preservar a privacidade e impedir o acesso a aspectos íntimos de sua vida prevaleça sobre qualquer interesse de terceiros, incluindo herdeiros legítimos, em ter acesso a esses dados post mortem.
Imagine-se o caso de um titular de criptoativos que, por razões pessoais, não deseja que seus herdeiros tenham acesso a determinadas carteiras digitais. Pode ser o caso de doações anônimas a causas sensíveis, de investimentos em projetos experimentais ou simplesmente de uma vontade de que aquele patrimônio se extinga com sua morte. O Enunciado 687 valida essa escolha, desde que manifestada em testamento.
Essa possibilidade, contudo, não é isenta de controvérsias. Críticos argumentam que permitir a destruição voluntária de patrimônio contraria o princípio da função social da propriedade e pode prejudicar credores e herdeiros necessários. A questão ganha contornos ainda mais complexos quando se considera que, no caso dos criptoativos, a "destruição" pode ser simplesmente o não compartilhamento da chave privada - o que, na prática, torna os ativos inacessíveis para sempre.
A solução, ao que parece, passa pela ponderação de interesses. Disposições testamentárias negativas devem ser admitidas, mas não podem violar direitos de terceiros. Se há credores ou herdeiros necessários, a destruição de patrimônio pode ser questionada. Por outro lado, se o testador possui patrimônio suficiente para satisfazer todas as obrigações e a legítima, não há razão para negar-lhe o direito de dispor livremente da parte disponível, ainda que essa disposição implique sua extinção.
4. Criptoativos e sucessão: Desafios técnicos e jurídicos
4.1. A especificidade dos criptoativos no contexto sucessório
Os criptoativos representam, talvez, o exemplo mais desafiador de bem digital do ponto de vista sucessório. Sua natureza descentralizada, a ausência de intermediários e a dependência de chaves criptográficas criam obstáculos práticos que o Direito das Sucessões tradicional não estava preparado para enfrentar.
Quando uma pessoa falece deixando uma conta bancária, os herdeiros podem solicitar certidões, bloquear valores e, eventualmente, transferir o saldo para suas próprias contas. Todo o processo é mediado por instituições financeiras reguladas, que mantêm registros e respondem a ordens judiciais. No caso dos criptoativos, porém, não há intermediário. A titularidade é definida exclusivamente pela posse da chave privada. Quem tem a chave, tem o ativo. Quem não tem, não tem nada - ainda que seja o legítimo herdeiro.
Essa característica técnica tem implicações jurídicas profundas. Primeiro, porque torna ineficaz a mera declaração de titularidade. Não basta que o inventário reconheça que o falecido possuía X bitcoins; é preciso que os herdeiros consigam efetivamente acessar e transferir esses bitcoins. Segundo, porque cria o risco de apropriação indevida. Se um terceiro (um amigo, um empregado, um herdeiro preterido) obtém acesso à chave privada antes do inventário, pode transferir os criptoativos para si, de forma irreversível e praticamente irrastreável.
A doutrina tem apontado que a solução para esses desafios passa necessariamente pelo planejamento sucessório. O titular de criptoativos não pode simplesmente confiar que "o Direito resolverá" após sua morte. Precisa, em vida, adotar medidas concretas: elaborar testamento com instruções detalhadas, utilizar esquemas de custódia compartilhada (multisig), considerar serviços de herança digital que liberam chaves após determinado período de inatividade, ou mesmo treinar os herdeiros para lidar com a tecnologia.
4.2. O papel das exchanges e a jurisprudência do STJ
Uma alternativa que tem sido explorada é a utilização de exchanges - plataformas que intermediam a compra e venda de criptoativos. Quando os criptoativos estão custodiados em uma exchange brasileira, os herdeiros podem solicitar judicialmente o bloqueio e a transferência dos valores, de forma análoga ao que ocorre com contas bancárias.
O STJ já admitiu essa possibilidade no contexto de execução de dívidas, autorizando o envio de ofícios às corretoras de criptomoedas para localizar e penhorar ativos digitais em nome do devedor. A mesma lógica pode ser aplicada ao inventário: o juiz pode determinar que as exchanges nacionais informem se o falecido possuía conta e, em caso positivo, bloqueiem os valores até a conclusão da partilha.
Essa solução, contudo, é limitada.
Primeiro, porque só funciona quando os criptoativos estão custodiados em exchanges. Se o titular utilizava carteiras próprias (self-custody), as exchanges nada poderão informar. Segundo, porque as exchanges estrangeiras, não sujeitas à jurisdição brasileira, podem simplesmente ignorar ordens judiciais nacionais. Terceiro, porque a própria filosofia dos criptoativos – a descentralização e a soberania financeira individual - é incompatível com a dependência de intermediários.
Daí a importância do testamento. Ele permite que o titular, independentemente de onde e como custodia seus criptoativos, forneça aos herdeiros as informações necessárias ao acesso. Mais do que isso: permite que o titular escolha quem terá acesso a quais ativos, respeitando a autonomia da vontade e evitando conflitos entre herdeiros.
5. O inventariante digital e o incidente processual do STJ
5.1. A criação pretoriana do incidente de identificação de bens digitais
A decisão do STJ no REsp 2.124.424/SP, julgado em 2025, representa outro marco na construção jurisprudencial do regime da herança digital. Diante da ausência de legislação específica, a ministra Nancy Andrighi propôs a criação de um "incidente de identificação, classificação e avaliação de bens digitais", a ser instaurado paralelamente ao inventário.
Segundo a decisão, quando o falecido não compartilhou senhas com os herdeiros, a busca por informações patrimoniais e bens digitais em seus aparelhos eletrônicos deve ser feita por meio desse incidente, com o apoio de um profissional especializado - o "inventariante digital". Esse profissional teria a função de acessar os dispositivos do falecido, identificar e classificar os ativos transmissíveis, preservando tudo o que possa violar direitos de personalidade.
A solução é criativa e pragmática. Reconhece que o juiz do inventário, em regra, não possui conhecimento técnico para lidar com criptoativos, arquivos criptografados e outras complexidades digitais. Ao mesmo tempo, estabelece um procedimento que equilibra o direito dos herdeiros à transmissão patrimonial com a proteção da intimidade do falecido.
Há, contudo, questões em aberto. Quem seria esse "inventariante digital"? Qual sua formação? Como seria remunerado? Teria acesso irrestrito aos dispositivos do falecido, ou apenas a determinadas áreas? E, mais importante: como garantir que esse profissional não se aproprie indevidamente de chaves privadas de criptoativos?
5.2. Testamento como alternativa ao incidente processual
É exatamente aqui que o testamento se revela superior ao incidente processual. Enquanto o incidente depende de decisão judicial, nomeação de perito, produção de provas e toda a morosidade inerente ao processo, o testamento oferece uma solução imediata e eficaz. O testador, em vida, indica quem deve ter acesso a quais bens digitais, fornece as informações necessárias e, se desejar, até mesmo nomeia um "executor testamentário digital" - pessoa de confiança encarregada de garantir o cumprimento de suas disposições.
Mais do que isso: o testamento permite que o titular preserve sua intimidade. No incidente processual, um terceiro (o inventariante digital) terá acesso a todos os dispositivos e arquivos do falecido, o que pode expor informações sensíveis. No testamento, ao contrário, o titular pode segregar o que deseja transmitir do que deseja manter privado, ou mesmo determinar a destruição de determinados arquivos antes que os herdeiros tenham acesso aos dispositivos.
Essa possibilidade de controle é especialmente relevante no caso dos criptoativos. O titular pode, por exemplo, manter em sigilo a existência de determinadas carteiras, revelando-as apenas a herdeiros específicos ou a instituições de caridade. Pode também estabelecer condições para o acesso, como a maioridade de um filho ou a conclusão de determinado curso de formação. Tudo isso é possível por meio de testamento; nada disso é possível por meio do incidente processual.
6. Limites da autonomia da vontade: Legítima e direitos da personalidade
6.1. A proteção dos herdeiros necessários
A autonomia da vontade na sucessão testamentária não é ilimitada. O CC brasileiro adota o sistema da legítima, reservando metade do patrimônio aos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge). Essa regra aplica-se também aos bens digitais: o testador pode dispor livremente apenas da metade disponível de seu patrimônio digital.
A questão que se coloca é: como calcular a legítima quando parte do patrimônio é composta por criptoativos? A volatilidade desses ativos torna complexa a avaliação. Um bitcoin que valia R$ 100.000,00 no momento da abertura da sucessão pode valer R$ 150.000,00 ou R$ 50.000,00 alguns meses depois. Como garantir que os herdeiros necessários recebam efetivamente metade do patrimônio?
A solução mais adequada parece ser a avaliação no momento da abertura da sucessão (data do óbito), com posterior partilha em espécie. Se o testador deixou 10 bitcoins, metade deve ir para a legítima e metade pode ser livremente disposta. As oscilações posteriores de preço são suportadas pelos herdeiros, da mesma forma que ocorre com ações de empresas ou outros ativos voláteis.
Outra questão relevante é a possibilidade de o testador determinar que determinados criptoativos sejam excluídos da legítima por meio de doação em vida com reserva de usufruto. Essa estratégia, comum no planejamento sucessório tradicional, pode ser aplicada aos criptoativos, desde que observadas as formalidades legais e a necessidade de colação no inventário.
6.2. A tensão entre transmissão patrimonial e proteção da intimidade
O enunciado 687 e a jurisprudência do STJ reconhecem que nem todos os bens digitais são transmissíveis. Aqueles que possam violar direitos de personalidade do falecido ou de terceiros devem ser preservados. Mas como traçar essa linha divisória?
A doutrina tem proposto critérios funcionais. Bens digitais com conteúdo predominantemente patrimonial (criptoativos, direitos autorais, contas monetizadas) são transmissíveis. Bens digitais com conteúdo predominantemente existencial (e-mails pessoais, diários digitais, fotografias íntimas) não são transmissíveis, salvo disposição expressa do falecido autorizando o acesso.
Essa distinção, embora útil, não resolve todos os casos. E-mails pessoais podem conter informações patrimoniais relevantes (contratos, senhas de contas bancárias, chaves de criptoativos). Perfis em redes sociais podem ter tanto valor afetivo quanto econômico. A solução, mais uma vez, passa pela autonomia da vontade: o testador deve indicar, com a maior precisão possível, o que deseja transmitir e o que deseja preservar.
O testamento pode, inclusive, estabelecer diferentes níveis de acesso. Por exemplo: determinar que o cônjuge tenha acesso a todos os e-mails, mas que os filhos tenham acesso apenas às informações patrimoniais; ou que determinadas fotografias sejam preservadas por um executor testamentário, que as entregará aos filhos quando atingirem determinada idade. Essas nuances, impossíveis de serem alcançadas pela sucessão legítima ou pelo incidente processual, demonstram a superioridade do testamento como instrumento de planejamento sucessório digital.
7. Onde está a Tecnologia, está o Direito?
7.1. A capacidade de resposta do ordenamento jurídico
Voltemos à pergunta inicial: o Direito acompanha a tecnologia? A análise do enunciado 687 e da jurisprudência recente sugere uma resposta matizada. Por um lado, é inegável que o ordenamento jurídico brasileiro tem demonstrado capacidade de adaptação. A construção doutrinária do conceito de herança digital, o reconhecimento jurisprudencial da transmissibilidade dos bens digitais e a validação da autonomia da vontade como instrumento de planejamento sucessório são avanços significativos.
Por outro lado, é igualmente inegável que o Direito ainda caminha atrás da tecnologia. A ausência de legislação específica sobre herança digital, a insegurança quanto aos procedimentos de acesso a bens protegidos por senha, a falta de regulamentação sobre o "inventariante digital" e a inexistência de normas sobre a forma do testamento digital são lacunas que geram insegurança jurídica e podem resultar em perdas patrimoniais irreversíveis.
O enunciado 687 representa, nesse contexto, uma solução de transição. Não substitui a necessidade de legislação específica, mas oferece aos operadores do Direito um norte interpretativo enquanto essa legislação não vem. Mais do que isso: sinaliza ao legislador a urgência do tema e indica os caminhos que a futura regulamentação deve seguir.
7.2. Perspectivas futuras: a necessidade de legislação específica
Há diversos projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional sobre herança digital. O PL 1.689/21, por exemplo, propõe alterações no CC para incluir disposições específicas sobre a transmissão de bens digitais. Outros projetos tratam da possibilidade de testamento digital, da criação da figura do inventariante digital e da regulamentação do acesso a contas e dispositivos de pessoas falecidas.
A futura legislação deverá enfrentar questões complexas. Qual a natureza jurídica dos diferentes tipos de bens digitais? Como equilibrar a transmissão patrimonial com a proteção da intimidade? Qual o procedimento para acesso a dispositivos protegidos por senha? Como lidar com a volatilidade dos criptoativos? Qual a responsabilidade das plataformas digitais e das exchanges? Como garantir a segurança das chaves privadas durante o inventário?
Enquanto essas respostas não vêm do legislador, cabe à doutrina e à jurisprudência continuar construindo soluções. E, sobretudo, cabe aos titulares de patrimônio digital adotarem medidas concretas de planejamento sucessório. O testamento, validado pelo enunciado 687, é o instrumento mais eficaz para garantir que a tecnologia não se torne um obstáculo à transmissão da herança, mas sim uma aliada na realização da vontade do testador.
8. Conclusão
O enunciado 687 da IX Jornada de Direito Civil representa um marco na evolução do Direito das Sucessões brasileiro. Ao reconhecer que o patrimônio digital integra o espólio e pode ser objeto de disposição testamentária, o CJF ofereceu resposta jurídica a uma realidade social incontornável: a digitalização crescente das relações patrimoniais.
A análise realizada neste artigo demonstra que o testamento e o codicilo são instrumentos adequados e eficazes para o planejamento sucessório de bens digitais, especialmente dos criptoativos. Permitem que o titular preserve sua autonomia da vontade, forneça aos herdeiros as informações técnicas necessárias ao acesso aos ativos, proteja sua intimidade e evite perdas patrimoniais irreversíveis.
A jurisprudência do STJ, ao criar o incidente de identificação de bens digitais e reconhecer a figura do inventariante digital, complementa o arcabouço normativo, oferecendo soluções processuais para os casos em que o falecido não deixou testamento. Contudo, essas soluções são subsidiárias e menos eficazes do que o planejamento sucessório realizado em vida.
Onde está a tecnologia, está - ou deveria estar - o Direito. O desafio que se coloca não é apenas adaptar institutos tradicionais a realidades novas, mas repensar, de forma criativa e corajosa, as próprias bases do Direito das Sucessões. A herança digital não é apenas uma questão técnica; é uma questão existencial, que toca os limites da autonomia da vontade, os direitos da personalidade e a própria função social da propriedade.
O enunciado 687 não encerra esse debate; ao contrário, inaugura-o. Cabe à doutrina, à jurisprudência e, em última análise, ao legislador, continuar construindo respostas que garantam, simultaneamente, a efetividade do direito constitucional de herança e o respeito à dignidade da pessoa humana - em vida e após a morte, no mundo físico e no mundo digital.
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Referências
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