O direito à correção diferenciada nas provas discursivas para autistas em concurso público
A crescente participação de pessoas com TEA - Transtorno do Espectro Autista em concursos públicos representa um marco importante na consolidação dos princípios de inclusão, diversidade e igualdade de oportunidades no serviço público brasileiro. Trata-se de um reflexo direto das transformações sociais e jurídicas que vêm reconhecendo, com maior sensibilidade, os direitos das pessoas neurodivergentes, especialmente no acesso a cargos públicos e na valorização de suas competências técnicas.
Apesar dos avanços normativos e da previsão legal de reserva de vagas e atendimento especializado, ainda persistem barreiras estruturais e institucionais que dificultam a plena participação de candidatos com TEA nos certames. Essas barreiras não se limitam à acessibilidade física ou tecnológica, mas se manifestam de forma mais sutil e profunda nas etapas de avaliação subjetiva - como as provas discursivas - onde o modelo tradicional de correção pode desconsiderar as especificidades cognitivas, comunicacionais e expressivas do autismo.
Candidatos com TEA frequentemente apresentam formas singulares de organizar o pensamento, construir argumentos e expressar ideias por escrito. Essas características, longe de representarem deficiência intelectual, refletem uma neurodiversidade que exige adaptações razoáveis na forma de avaliação, sob pena de se perpetuar uma exclusão silenciosa e injusta. A ausência de critérios diferenciados na correção das provas discursivas pode comprometer a equidade do concurso, violando direitos fundamentais como a ampla defesa, o contraditório, a isonomia e a dignidade da pessoa humana.
Este artigo tem como objetivo esclarecer, de forma técnica e aprofundada, o direito à correção adaptada das provas discursivas para candidatos com Transtorno do Espectro Autista, com base na legislação vigente - incluindo a lei 12.764/12 (lei Berenice Piana), a lei 13.146/15 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência - bem como em normas regulamentares como a resolução CNJ 629/25. Embora esta última tenha aplicação direta aos concursos promovidos pelo Poder Judiciário, sua força normativa e conteúdo protetivo permitem sua utilização por analogia em concursos de outras esferas e poderes, servindo como referência para a implementação de boas práticas inclusivas.
Ao longo do texto, serão abordadas as bases legais, os fundamentos constitucionais, os precedentes jurisprudenciais e os mecanismos práticos que candidatos com TEA podem utilizar para reivindicar seu direito à avaliação compatível com sua condição neurodivergente. O propósito é oferecer não apenas informação jurídica, mas também empoderamento e orientação para que esses candidatos possam disputar concursos públicos em condições verdadeiramente igualitárias.
1 - O reconhecimento legal do autismo como deficiência
O reconhecimento jurídico do TEA - Transtorno do Espectro Autista como deficiência é um dos pilares fundamentais para a efetivação dos direitos das pessoas autistas, especialmente no contexto dos concursos públicos. Esse reconhecimento não apenas garante o acesso formal às políticas de inclusão, mas também impõe à Administração Pública o dever de assegurar condições equitativas de participação, incluindo adaptações razoáveis em todas as etapas do certame - da inscrição à avaliação.
1.1 - Lei 12.764/12 - Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com TEA
A lei 12.764/12, conhecida como lei Berenice Piana, instituiu a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista. Seu art. 1º, §2º é categórico: “A pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais.”
Esse dispositivo tem enorme relevância prática, pois insere o autismo no rol das deficiências reconhecidas pelo ordenamento jurídico brasileiro, permitindo que pessoas com TEA sejam beneficiárias das garantias previstas em legislações específicas, como o Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/15) e a CDPD - Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, incorporada ao direito interno pelo decreto 6.949/09.
1.2 - Lei 13.146/15 - Estatuto da Pessoa com Deficiência
O Estatuto da Pessoa com Deficiência reforça e amplia os direitos das pessoas com TEA, ao estabelecer um conjunto de garantias voltadas à promoção da acessibilidade, da inclusão e da igualdade de oportunidades. Entre seus principais dispositivos aplicáveis aos concursos públicos, destacam-se:
- Art. 3º, VI - Define “adaptação razoável” como modificações e ajustes necessários e adequados, que não acarretem ônus desproporcional, para assegurar o exercício de direitos em igualdade de condições.
- Art. 28, §1º - Determina que o poder público deve assegurar, em concursos públicos, a acessibilidade e as adaptações necessárias para garantir a participação plena e efetiva das pessoas com deficiência.
- Art. 30, VI - Garante à pessoa com deficiência o direito de se inscrever em concurso público em igualdade de condições com os demais candidatos, incluindo adaptações razoáveis na aplicação das provas (VI - adoção de critérios de avaliação das provas escritas, discursivas ou de redação que considerem a singularidade linguística da pessoa com deficiência, no domínio da modalidade escrita da língua portuguesa).
Esses dispositivos impõem à Administração Pública a obrigação de adaptar não apenas o formato da prova, mas também os critérios de avaliação, especialmente em provas discursivas, onde a subjetividade pode prejudicar candidatos neurodivergentes.
1.3 - CDPD - Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
A CDPD, ratificada pelo Brasil com status constitucional (decreto 6.949/09), estabelece princípios universais de respeito à dignidade, à autonomia e à igualdade das pessoas com deficiência. O art. 5º da Convenção consagra o princípio da igualdade e não discriminação, enquanto o art. 24 trata do direito à educação inclusiva e à avaliação compatível com as necessidades individuais.
A jurisprudência brasileira reconhece a força normativa da CDPD, especialmente quando há lacunas ou omissões nas normas infraconstitucionais. Assim, mesmo que um edital de concurso não preveja expressamente a correção adaptada para candidatos com TEA, a Convenção impõe esse dever à Administração Pública.
1.4 - Reconhecimento do TEA como deficiência oculta
Outro ponto relevante é o reconhecimento do autismo como uma deficiência oculta, ou seja, não visível fisicamente, mas que impacta diretamente a cognição, a comunicação e o comportamento. Esse reconhecimento é essencial para afastar interpretações restritivas que excluem o TEA das políticas de inclusão.
A resolução CNJ 629/25, por exemplo, reforça que tanto deficiências visíveis quanto ocultas devem ser consideradas na aplicação de adaptações razoáveis em concursos públicos, incluindo a correção diferenciada das provas discursivas.
Em síntese, o arcabouço legal brasileiro - composto por leis nacionais, normas regulamentares e tratados internacionais - reconhece o Transtorno do Espectro Autista como deficiência e impõe à Administração Pública o dever de garantir adaptações compatíveis com essa condição. A correção diferenciada das provas discursivas não é uma concessão discricionária, mas uma obrigação legal que visa assegurar a igualdade material entre os candidatos e proteger os direitos fundamentais da pessoa com deficiência.
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