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Herança digital, direito à intimidade e criação da figura do inventariante digital

Nova figura jurídica pode trazer avanços no que se refere à organização de dados de pessoas falecidas, mas também tornar processo de inventário ainda mais moroso e custoso para herdeiros.

12/11/2025

No início do último mês de setembro, foi julgado o REsp 2.124.424/SP, que criou um importante precedente relacionado à sucessão dos bens digitais e também uma figura inovadora para o Direito: o inventariante digital.

Em resumo, o caso trata da tentativa judicial de acesso às informações contidas em um computador deixado por pessoa falecida. Como nenhum dos sobreviventes tinha a senha para acessar o conteúdo contido no aparelho, ajuizou-se ação buscando ordem judicial que determinasse a expedição de ofício ao fabricante do aparelho para que este procedesse com o desbloqueio.

Os principais objetivos com o acesso eram: identificar a eventual existência de bens com valor econômico e acessar bens de valor afetivo, a exemplo de registros fotográficos. Parece simples, mas as questões levantadas no acordão são relevantes e merecem atenção.  

Durante a análise do caso, a relatora ministra Nancy Andrighi trouxe luz a uma questão essencial: A PROTEÇÃO AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE, como direito à intimidade do falecido e, eventualmente, de terceiros.

Ou seja, seria correto o judiciário liberar acesso irrestrito e integral ao conteúdo do computador para os familiares sobreviventes? E se, para além de bens de cunho econômico e afetivo, existirem segredos e questões intimas do de cujus e que ele não tinha interesse que fossem compartilhadas com outros membros da família?

Como consta na ementa do acórdão: “(...) é dever do juiz se cercar de todos os cuidados e garantias para compatibilizar, de um lado, o direito dos herdeiros à transmissão de TODOS os bens do falecido; de outro, os direitos de personalidade, especialmente a intimidade do falecido e/ou de terceiros.”

Uma questão extremamente válida, intrigante e relevante! Mas e qual seria a solução?

A própria relatora propôs uma solução diferenciada e inédita: a criação de uma nova figura no procedimento de inventário, a do inventariante digital1, que seria um profissional especializado, o qual acessaria o conteúdo em completo sigilo, fazendo a listagem de todos os arquivos que estiverem disponíveis no dispositivo acessado.

A lista completa deverá ser encaminhada unicamente para o juiz do inventário, que se torna responsável por decidir o que é patrimônio transmissível e pode ser liberado aos familiares solicitantes, bem como o que são bens de cunho privado, protegidos pelo direito à intimidade e, portanto, intransmissíveis (devendo ser mantidos sob sigilo).

A solução é inovadora e a criação de uma nova figura jurídica pode trazer avanços no que se refere à organização de dados. Contudo, pode tornar o processo de inventário ainda mais moroso e custoso para os herdeiros, já que a ideia é que o inventariante digital atue como um auxiliar da Justiça, que se equipara a um perito. 

Também há que se considerar preocupações relevantes sob o ponto de vista da transparência e da isonomia, pois o inventariante digital, ao dispor de acesso privilegiado a documentos, bens, senhas e informações digitais, concentra em si um poder de gestão exclusivo que não é igualmente acessível aos demais interessados.

Ainda que o magistrado tenha acesso ao mesmo conteúdo, a família - que é a verdadeira e legítima destinatária da partilha - fica em posição de dependência do crivo de uma terceira pessoa sobre o conteúdo que poderá ou não acessar e sem possibilidade de fiscalizar diretamente os atos praticados.

Essa situação traz riscos concretos, por exemplo, a ocultação ou manipulação de dados e das informações patrimoniais pela falta de transparência, bem como a falta de publicidade do que realmente foi encontrado que os herdeiros deveriam ter meios plenos de acompanhar e contestar cada ato do inventariante.

Outra reflexão importante é a questão que trouxe à tona toda essa discussão perante o judiciário: a necessidade em preservar a intimidade do falecido. Se a premissa é a preservação da privacidade e intimidade, por qual motivo o perito e o magistrado (que são estranhos ao de cujus) poderiam ter acesso a essas informações íntimas relevantes? Não há justificativa plausível para que os herdeiros sejam privados da mesma transparência. Afinal, o patrimônio em questão não pertence ao inventariante, tampouco ao juiz, mas sim ao conjunto da sucessão, à família.

É contraditório buscar proteger a privacidade de um falecido em relação a assuntos íntimos se, ao mesmo tempo, permitirmos que pessoas estranhas a ele tomem conhecimento desses fatos.

A melhor alternativa para esse imbróglio seria a manifestação de vontade do falecido expressamente redigida em testamento ou outro instrumento válido, no sentido de que bens digitais de caráter estritamente pessoal - como conversas privadas e arquivos íntimos - sejam mantidos em sigilo. Dessa forma, garante-se que tais conteúdos sejam excluídos ou mantidos inacessíveis, evitando que herdeiros ou terceiros tenham acesso a informações que possam violar a intimidade do de cujus.

Importante frisar que foi apresentado na Câmara dos Deputados o PL 4066/25 (apensado ao PL 3050/20) que, conforme ementa, visa dispor sobre a sucessão de bens digitais, estabelecer procedimentos para o acesso, gestão e transmissão desses bens e criar a figura do inventariante digital. O mesmo, quando aprovado, deve trazer mais pontos de solução e também de discussão sobre a matéria.

Portanto, entendemos que a figura do inventariante digital só se justifica se acompanhada de mecanismos claros de auditoria, fiscalização e disponibilização dos documentos às partes, garantindo que o acesso não se torne privilégio exclusivo, mas sim instrumento de justiça e equidade no inventário.

_______

Referência

1 Ponto 40 do voto do Acórdão do Resp 2.124.424/SP - “O inventariante digital não se confunde com o inventariante expressamente previsto no CPC, nomeado no processo de inventário para representar o espólio e cuidar da partilha. Por isso, o inventariante digital não se submeterá à ordem de preferência prevista no art. 617 do CPC. O profissional deverá ter especial expertise digital e ser da confiança do juiz. Haverá, pois, dois inventariantes, com encargos específicos, porque as funções são diferenciadas, devendo haver respeito aos limites de atividade de cada um.”

Anelise Roberta Belo Bueno Valente
Advogada e gestora da equipe Smart Law no escritório Rücker Curi Advocacia e Consultoria Jurídica. Pós-graduada em Direito Processual Civil Aplicado pela Escola Brasileira de Direito. Mediadora e árbitra pela Câmara Nacional de Esportes.

Thaynara Andretta
Advogada no escritório Rücker Curi Advocacia e Consultoria Jurídica.

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