1. Introdução
Caros leitores, imagem uma cena em que, dentro de um ônibus, um homem profere um xingamento a quem lhe acompanha, ao seu lado, atribuindo-lhe característica que afeta um atributo pessoal seu, de maneira súbita. Esta pessoa reage afirmando ter sido ofendida. O autor do som, porém, explica que é portador de Síndrome de Tourette e que aquele tique vocal ocorre de forma totalmente involuntária, sem intenção de ofender ou de se dirigir a alguém.
O Direito Penal solucionaria isto? Mais que isso: resolveria de maneira dogmaticamente correta? A ver.
A teoria do delito, em sua construção dogmática clássica, tem na conduta humana voluntária o ponto de partida para toda a estrutura de imputação penal. O juízo de tipicidade pressupõe a existência de ação dotada de consciência e vontade, dirigida a um fim, sem a qual o fato não ingressa no campo de relevância jurídica. O Direito Penal, por sua própria natureza, não se ocupa de movimentos corporais desprovidos de sentido volitivo, mas apenas de comportamentos humanos passíveis de controle e orientação normativa ( e sim: estar-se a falar de Hans Welzel, na alemanha em 1930).
A Síndrome de Tourette, enquanto distúrbio neuropsiquiátrico caracterizado por tiques motores e vocais involuntários, coloca em evidência essa fronteira dogmática. Em determinadas manifestações, o portador da síndrome realiza movimentos ou emite sons de forma totalmente involuntária, sem qualquer possibilidade de controle. Estas manifestações suscitam a questão central do qual se ocupa este ensaio: é possível atribuir relevância penal a atos desprovidos de vontade? O presente artigo parte da premissa de que, em tais hipóteses, não há ação humana em sentido penal, mas simples evento natural, motivo pelo qual o fato é atípico desde a origem.
A análise, de natureza dogmática, buscará demonstrar que a ausência de vontade não desloca o problema para o campo da culpabilidade, mas encerra a discussão no plano da tipicidade, onde se reconhece a inexistência de conduta penalmente relevante. Essa conclusão preserva a coerência interna da teoria do delito e assegura os limites do poder punitivo, reafirmando que o Direito Penal incide apenas sobre comportamentos voluntários.
2. Fundamentos médico-psicológicos da Síndrome de Tourette
O Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders - Fifth Edition (DSM-5) define a Síndrome de Tourette como um transtorno do neurodesenvolvimento caracterizado pela presença de múltiplos tiques motores e, pelo menos, um tique vocal, persistentes por período superior a um ano e com início antes dos dezoito anos1. Essas manifestações resultam de descargas neurológicas automáticas, de natureza involuntária, imprevisíveis e, na maioria das vezes, incontroláveis2. O sujeito pode, em certos casos, antever a ocorrência do tique por meio de sensações corporais prévias, mas não possui capacidade de evitar ou suprimir o movimento.
Do ponto de vista médico, estes episódios não decorrem de ato de vontade (eis o ápice da vexata quaestio!), mas de disfunções neurobiológicas que produzem respostas motoras automáticas. Em termos jurídicos, isso se traduz em ausência de domínio do ato e de autodeterminação consciente. O fenômeno situa-se, portanto, fora do âmbito da ação humana em sentido penal, sendo relevante apenas no campo da causalidade natural.
3. Localização dogmática: Deslocamento do problema para a tipicidade
A análise dogmática do comportamento humano exige distinguir ausência de conduta e exclusão de culpabilidade. A culpabilidade é sempre um juízo posterior, que pressupõe a verificação de um fato típico e ilícito. Quando não há ação voluntária, o processo analítico do delito se interrompe na tipicidade, uma vez que inexiste conduta capaz de integrar o suporte fático da norma penal.As manifestações involuntárias da Síndrome de Tourette não são expressão de vontade nem de domínio da ação. Trata-se de movimentos fisiológicos, automáticos, destituídos de sentido normativo. Sob a perspectiva fisiológica a natureza involuntária do ato não demonstra incapacidade de compreensão do ilícito, mas inexistência de controle motor. O problema, portanto, não se situa na culpabilidade, mas antes dela, no plano da tipicidade. Daí porque é essencial “localizar-se dogmaticamente”.
A distinção tem consequências dogmáticas relevantes. A inimputabilidade, prevista no art. 26 do CP, pressupõe comportamento voluntário praticado por sujeito que, embora aja, não pode ser censurado. Na Síndrome de Tourette, durante o episódio involuntário, não há sequer conduta, de modo que o fato é atípico. O deslocamento do eixo para a tipicidade impede o uso indevido da inimputabilidade como categoria residual e preserva o conceito jurídico de ação.
4. Ausência de conduta e distinção em relação à inimputabilidade e à total incapacidade
A ausência de conduta, a inimputabilidade e a total incapacidade se diferenciam tanto quanto seus fundamentos quanto por seus efeitos.
Na inimputabilidade, o agente realiza uma ação voluntária, mas, em razão de doença mental ou desenvolvimento mental incompleto, não possui plena capacidade de compreender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se conforme esse entendimento. Há conduta, mas falta imputabilidade. O fato é típico e ilícito, mas o agente não é culpável.
Na ausência de conduta, como ocorre nos episódios involuntários da Síndrome de Tourette, não há comportamento voluntário. O movimento é resultado de uma espécie de “automatismo fisiológico”, não de vontade. O fato é atípico porque falta o primeiro elemento do delito: a ação humana (tecnicamente: conduta).
O totalmente incapaz, embora sem discernimento, realiza atos voluntários em termos físicos, mas sem possibilidade de autodeterminação racional. Já o portador de Tourette, durante o episódio involuntário, não é sequer sujeito apto à sofrer imputação, eis que o fenômeno não constitui ação em sentido jurídico.
Cuida-se, portanto, de distinção ontológica e normativa: o incapaz é sujeito de imputação, mas isento de pena; o portador de Tourette não ingressa na esfera da imputação penal. Confundir estas categorias significa subverter a lógica do sistema do delito e violar o princípio da intervenção penal mínima.
5. A conduta como pressuposto da tipicidade penal
A dogmática penal, desde a formulação finalista (década de 30, é válido o registro), compreende a conduta como o núcleo essencial do fato típico. A ação é definida como comportamento humano voluntário dirigido a uma finalidade. Onde inexiste vontade, não há ação; e onde não há ação, não há crime.
O movimento corporal destituído de voluntariedade, portanto, não possui relevância penal porque falta o elemento normativo de direção consciente.
É dizer: atos reflexos, automatismos patológicos, estados de inconsciência e força física irresistível não constituem conduta penalmente relevante. Nesses casos, o movimento é natural, mas não normativo.
O Direito Penal, enquanto sistema de imputação, não descreve fenômenos fisiológicos, mas atribui sentido a comportamentos humanos. A ausência de domínio do ato impede o juízo de tipicidade formal e, por consequência, qualquer juízo subsequente de ilicitude ou culpabilidade.
6. Voluntariedade, dolo e culpa
O dolo e a culpa, enquanto formas de imputação subjetiva, pressupõem a existência de conduta voluntária. O dolo representa a vontade consciente de realizar o tipo penal; a culpa, a violação de um dever de cuidado em ação voluntária. Ambas as figuras exigem controle sobre o movimento corporal e capacidade de autodeterminação.
Nos episódios involuntários da Síndrome de Tourette, estes requisitos estão ausentes. O ato não é doloso nem culposo, porque não há vontade nem possibilidade de previsão. O evento não se emerge no âmbito da ação humana e, portanto, é penalmente irrelevante.
A doutrina penal estrangeira, especialmente a alemã, adota o termo Nicht-Handlung para designar condutas que, embora materialmente perceptíveis, não são ações em sentido jurídico (simplificando: é a não ação). O mesmo raciocínio aplica-se aos automatismos patológicos: não há dolo, culpa ou fato típico, mas mero acontecimento fisiológico.
7. Conclusão
A análise dogmática da Síndrome de Tourette evidencia a necessidade de reafirmar o papel da tipicidade como limite de imputação penal. O Direito Penal não reage a fenômenos naturais, mas a condutas voluntárias. A ausência de vontade impede a constituição do fato típico e torna o comportamento juridicamente neutro.
O deslocamento do problema para o campo da tipicidade, e não da culpabilidade, preserva a coerência interna do sistema e evita confusões conceituais que ampliam indevidamente o poder punitivo. Nos episódios involuntários da Síndrome de Tourette, não há ação em sentido penal, e, portanto, não há crime. É, em verdade, uma manifestação fisiológica, desprovida de vontade e incapaz de fundar um juízo de reprovação.
A distinção entre ausência de conduta, inimputabilidade e total incapacidade é fundamental para a manutenção da racionalidade do sistema do delito. O reconhecimento da atipicidade nesses casos reafirma o caráter garantista do Direito Penal e a centralidade da liberdade como pressuposto da responsabilidade.
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Referências
1 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM-5). 5th ed. Arlington, VA: American Psychiatric Publishing, 2013. Disponível aqui: https://www.psychiatry.org/psychiatrists/practice/dsm?utm_source.
2 CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION (CDC). Tourette Syndrome. Atlanta, GA: U.S. Department of Health and Human Services, 2024. Disponível aqui: https://www.cdc.gov/tourette-syndrome/index.html.