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A pena de 50% da lei do distrato

A penalidade é majorada quando a incorporação está submetida ao patrimônio de afetação.

21/11/2025
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Em artigos publicados anteriormente, estes autores apresentaram diversos obstáculos observados na aplicação da lei dos distratos (lei 13.786/18)1 2 que implementou regras matemáticas para as consequências da resolução em contratos de aquisição de imóveis em loteamentos, desmembramentos e incorporações, quando ocorrida por culpa do adquirente.

Embora já decorrido vários anos desde o início de sua vigência, ainda observamos controvérsia na aplicação de alguns de seus dispositivos pelo Poder Judiciário.

Uma dessas controvérsias está ligada a majoração da pena estabelecida no § 5º do art. 67-A implementado na Lei 4.591/64 que incide quando a incorporação está submetida ao regime do patrimônio de afetação.

Como ensina Celso Maziteli Neto3:

"O instituto do patrimônio de afetação não é específico à incorporação imobiliária. Trata-se de modalidade de segregação de ativos, dentro do acervo de uma universalidade, com o fito de vincular esses ativos segregados a um determinado propósito, purgando-o de responsabilidade para com as demais obrigações da universalidade, garantindo-se, assim, os interesses contratuais de quem vinculado a tal finalidade." (Neto, 2020).

Essa afetação também foi possibilitada no âmbito das incorporações imobiliárias no art. 31-A da lei 4.591/64, com a seguinte previsão:

Art. 31-A. A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes.

A discussão que vem à tona está ligada ao momento da extinção do patrimônio de afetação e consequentemente da majoração da pena.

Ocorre que alguns julgados têm se posicionado de forma oposta à previsão legal, estabelecendo uma análise simplória à finalidade da lei, determinando que a referida pena majorada deve ser aplicada somente até a entrega das obras, o que ocorreria com a expedição do habite-se ou documento equivalente.

Nesse sentido, recente julgado do E. TJ/SP:

Compromisso de compra e venda. Gratuidade deferida aos autores, para o recurso. Ambos idosos e acometidos por moléstias graves, cuja renda é substancialmente comprometida em razão de despesas essenciais com saúde. Aplicabilidade do CDC. Dissolução por iniciativa dos adquirentes. Percentual de restituição que de fato não se pode limitar a 50%, devendo-se majorar a 75%, pois firmado o contrato já sob a vigência do art. 67-A, II da lei 4.591/64, introduzido pela lei 13.786/18. Percentual de 50% do art. 67-A, §5º, da lei 4.591/1964 que, porém, não se aplica ao caso. Incontroverso que o empreendimento se sujeite ao regime de patrimônio de afetação, mas estando a obra já concluída e entregues as unidades quando da resolução do contrato. Intepretação teleológica da norma. Percentual majorado de retenção que tem a finalidade de assegurar a consecução do empreendimento, e que não se justifica após a sua entrega, como no caso. Precedentes. Requisitos para a extinção formal do patrimônio de afetação do art. 31-E da lei 4.591/64 que não se confundem com a finalidade da multa mais alta estabelecida no art. 67-A, § 5º, do mesmo diploma. Sentença parcialmente revista. Recurso parcialmente provido.

(TJ/SP. Acórdão. Processo 1017612-32.2023.8.26.0032. Órgão Julgador: 1ª Câmara de Direito Privado. Relator (a): Claudio Godoy. Data do julgamento: 21/4/2025.)

Com o devido respeito aos entendimentos diversos, a lei não extingue a afetação com a simples entrega da obra, mas a vincula a outras obrigações que fazem prevalecer para além dela.

O art. 31-E é claro nesse sentido:

Art. 31-E. O patrimônio de afetação extinguir-se-á pela:

I - averbação da construção, registro dos títulos de domínio ou de direito de aquisição em nome dos respectivos adquirentes e, quando for o caso, extinção das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento;

II - revogação em razão de denúncia da incorporação, depois de restituídas aos adquirentes as quantias por eles pagas (art. 36), ou de outras hipóteses previstas em lei; e

III - liquidação deliberada pela assembléia geral nos termos do art. 31-F, § 1o.

§ 1º Na hipótese prevista no inciso I do caput deste artigo, uma vez averbada a construção, o registro de cada contrato de compra e venda ou de promessa de venda, acompanhado do respectivo termo de quitação da instituição financiadora da construção, importará a extinção automática do patrimônio de afetação em relação à respectiva unidade, sem necessidade de averbação específica.

§ 2º Por ocasião da extinção integral das obrigações do incorporador perante a instituição financiadora do empreendimento e após a averbação da construção, a afetação das unidades não negociadas será cancelada mediante averbação, sem conteúdo financeiro, do respectivo termo de quitação na matrícula matriz do empreendimento ou nas respectivas matrículas das unidades imobiliárias eventualmente abertas.

§ 3º A extinção no patrimônio de afetação nas hipóteses do inciso I do caput e do § 1º deste artigo não implica a extinção do regime de tributação instituído pelo art. 1º da lei 10.931, de 2 de agosto de 2004.

§ 4º Após a denúncia da incorporação, proceder-se-á ao cancelamento do patrimônio de afetação, mediante o cumprimento das obrigações previstas neste artigo, no art. 34 desta lei e nas demais disposições legais.

Ora, é possível constatar que o patrimônio de afetação se extingue não só com a entrega das obras, mas também com o registro de todos os títulos junto ao respectivo Registro de Imóveis, devidamente quitados, além da extinção das obrigações do empreendedor em face de sua financiadora.

Essas demais obrigações são tão importantes quanto a própria entrega da obra, visto que, sem elas, o empreendimento perde a sua completude que se daria somente com a existência dela, com a quitação de suas dívidas por quem a financiou e a entrega, após quitação, dos respectivos títulos de domínio aos adquirentes.

A garantia, vinculação e proteção dada pela afetação também visou proteger referidas obrigações acessórias que exigem a preservação financeira da incorporação para efetivá-las.

Diante disso, a pena majorada do § 5º do art. 67-A da lei 4.591/64 que aqui se traz como problemática em sua aplicação por alguns julgados persiste enquanto a extinção total da afetação não ocorrer, nos termos do seu art. 31-E.

Referido parágrafo prescreve que:

§ 5º Quando a incorporação estiver submetida ao regime do patrimônio de afetação, de que tratam os arts. 31-A a 31-F desta lei, o incorporador restituirá os valores pagos pelo adquirente, deduzidos os valores descritos neste artigo e atualizados com base no índice contratualmente estabelecido para a correção monetária das parcelas do preço do imóvel, no prazo máximo de 30 (trinta) dias após o habite-se ou documento equivalente expedido pelo órgão público municipal competente, admitindo-­se, nessa hipótese, que a pena referida no inciso II do caput deste artigo seja estabelecida até o limite de 50% (cinquenta por cento) da quantia paga.

Nota-se que a lei não limita a majoração da pena até a entrega das obras, pelo contrário, a vincula totalmente aos arts. 31-A a 31-F da lei, dentre eles o próprio referido art. 31-E que determina quando a afetação se extingue e, consequentemente, até quando a multa é majorada.

Vale destacar a informação contida no § 2º do referido artigo, que reforça essa compreensão ao dispor que, após cumpridas todas as obrigações vinculadas à afetação (entrega da obra + registro dos títulos + cumprimento das obrigações em face do financiador), as unidades ainda não negociadas, serão excluídas do patrimônio de afetação. Consequentemente, não subsistirão sobre elas as garantias próprias do regime afetado, tampouco a incidência da pena majorada para fins de cálculo de distrato ou resolução contratual.

Diante disso, entendemos que, enquanto não cumpridas integralmente as obrigações do art. 31-E da lei 4591/64, persistirá o patrimônio de afetação e consequentemente a majoração da multa prevista em seu art. 67-A, § 5º, por expressa disposição legal.

Não se desconsideram os princípios da vulnerabilidade e do equilíbrio nas relações de consumo; contudo, mostra-se plenamente acertado o dispositivo legal que majora a penalidade nos distratos de incorporações submetidas ao patrimônio de afetação, pois o faz no momento adequado e por fundamento legítimo. Tal previsão não incide quando as unidades remanescentes têm por finalidade apenas a apuração do lucro da incorporação, mas sim quando o produto da comercialização das unidades é indispensável à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do patrimônio afetado.

A medida busca desestimular distratos capazes de comprometer a estabilidade do empreendimento, resguardando o interesse coletivo dos adquirentes, a função social do contrato e a própria finalidade do regime de afetação, que é garantir não apenas a conclusão da obra, mas também o cumprimento das obrigações correlatas, como o pagamento de financiamentos, a execução de contrapartidas, o atendimento a condicionantes ambientais e demais deveres necessários à entrega das unidades autônomas livres de quaisquer ônus.

Como exposto nos artigos anteriores, a segurança jurídica e a previsibilidade devem orientar as relações jurídicas em nosso País.

No caso em exame, tais valores assumem especial relevância tanto para o empreendedor, que opta de forma facultativa, porém carregada de deveres pela adoção do patrimônio de afetação, quanto para o consumidor, que, embora protegido em sua condição de parte vulnerável, também assume o ônus de conhecer e aceitar os riscos e penalidades decorrentes de eventual inadimplemento no negócio jurídico firmado para a aquisição de imóvel em incorporação imobiliária.

Dessa forma, esperamos que nossos Tribunais apliquem integralmente o texto legal no que tange ao tema aqui exposto, sem distorções a ele, uma vez que a recente Lei 13.786/18 foi elaborada exatamente com o fim de trazer segurança jurídica e previsibilidade a essas relações.

__________

1 https://www.migalhas.com.br/depeso/427760/inseguranca-juridica-na-aplicacao-da-lei-13786-18-nos-loteamentos

2 https://www.migalhas.com.br/depeso/442777/fruicao-sobre-lote-nao-edificado--lei-13-786-18

3 NETO, Celso. Capítulo 3. Incorporação Imobiliária e Real Estate Development In: NETO, Celso et al. Condomínio e Incorporação Imobiliária. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2020. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/condominio-e-incorporacao-imobiliaria/1279985105. Acesso em: 29 de Outubro de 2025.

Autores

Vitor Duarte Gonzaga Advogado e sócio do escritório Duarte & Escolástico Advogados. Especialista em Direito Imobiliário. E-mail: dr.vitor@duarteescolastico.com.br

André Luis Escolastico Técnico em Transações Imobiliárias, Administrador, Advogado e Pós-Graduado em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (EPD).

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