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Ilegitimidade ativa na transmissão de imóveis em SH/SFH sem anuência da instituição financeira

Análise do reconhecimento judicial em operações entre particulares após a quitação do financiamento e seus efeitos na relação contratual e securitária.

21/11/2025

O atual CPC/15 em seus arts. 17 e 18 prevê que a propositura de uma ação judicial somente poderá ocorrer por quem detenha interesse processual e seja parte legítima para tal, haja vista o impedimento legal de se pleitear direito alheio em nome próprio, salvo nas exceções previstas no ordenamento jurídico. Nos termos mencionados acima, a postulação em juízo far-se-á, via de regra, pelo indivíduo detentor do direito pretendido.

Aplicando esta regra aos processos judiciais que versem sobre Seguro Habitacional em contratos de financiamento vinculados ao SFH - Sistema Financeiro de Habitação, a legitimidade ativa da parte autora é elemento essencial à própria continuidade da lide e, quando não comprovada, pode ensejar a extinção da ação judicial amparada pelos arts. 330, II e 485, VI, do CPC/15.

Para melhor entendimento do exposto, importa compreender a finalidade a que se destina o Seguro Habitacional/SFH, tecendo um liame entre sua origem e utilidade na relação contratual.

O SFH - Sistema Financeiro de Habitação foi instituído pelo Governo Federal pela lei 4.380 de 1964, de modo a incentivar e propiciar à população de baixa renda, o acesso à casa própria. De modo concomitante, foi criado o BNH - Banco Nacional da Habitação e integrado ao contrato de financiamento, o SH - Seguro Habitacional, que se tornou obrigatório em 1966 (art. 20 do decreto-lei 73/66). Contudo, pela lei, o BNH estava impedido de oferecer tais serviços diretamente, uma vez que deveria funcionar “exclusivamente como órgão orientador, disciplinador e de assistência financeira” , conforme aduz o art. 17, parágrafo único da lei 4.380/1964, de forma que as seguradoras privadas foram trazidas para possibilitar a operação financeira, ficando a cargo do Fundo de compensação de valores salariais - FCVS, que é gerido atualmente pela CEF - Caixa Econômica Federal, a obrigação de responder pelas garantias previstas na apólice pública do SH/SFH. 

Em resumo, o SH/SFH nasceu com o intuito de viabilizar a operação do crédito imobiliário, protegendo as instituições financeiras que concediam o financiamento para o comprador do imóvel, denominado nesta relação como MUTUÁRIO, de forma a garantir a quitação do contrato de financiamento, por ocasião dos eventos previstos pela apólice, estando condicionado acessoriamente ao termo principal.

O objeto do SH/SFH nunca abrangeu a estrutura do imóvel, mas a operação do crédito imobiliário, portanto, quando encerrado o contrato de financiamento pela sua quitação, também será extinta a cobertura do respectivo Seguro.

Contudo, diante da intensa judicialização do tema, principalmente no que se refere às apólices públicas, ramo 66, as quais buscam indenização securitária por danos materiais sob a alegação de vícios construtivos/estruturais, verifica-se que muitas destas demandas são propostas por quem não detém legitimidade ativa para tanto, ou seja, por pessoa diversa do verdadeiro mutuário/comprador do imóvel e titular do contrato de financiamento ora avençado e, tal fato ocorre, sobretudo, pela transmissão do bem à terceiro.

Os contratos de financiamento firmados através de apólices públicas vinculadas ao SH/SFH tratam de imóveis adquiridos, na sua grande maioria, há décadas e que ao longo dos anos foram sendo comercializados, sem o conhecimento e mediação do Agente Financeiro ou até mesmo da CEF - Caixa Econômica Federal, na qualidade de gestora do FCVS, inclusive àqueles onde a quitação do referido contrato já havia ocorrido e, consequentemente, extinto o Seguro habitacional.

Sobre este tema, observa-se que a jurisprudência consolidada pelo STJ é pela necessidade de anuência do agente financeiro para cessão de eventuais direitos em contratos habitacionais celebrada após 25/10/1996, conforme decidido pelo REsp 1.150.429/CE, o qual deu origem aos Temas 520 a 523 do excelso Tribunal, que versam sobre a legitimidade do adquirente de imóvel vinculado ao SFH, por “contrato de gaveta” para, posteriormente, questionar cláusulas contratuais, sobretudo, quanto a obrigação adjacente que representa o seguro habitacional.

A lei 8.004/1990 já determinava em seu art. 1º, parágrafo único, que: “A formalização de venda, promessa de venda, cessão ou promessa de cessão relativas a imóvel financiado através do SFH dar-se-á em ato concomitante à transferência do financiamento respectivo, com a interveniência obrigatória da instituição financiadora. (Grifos nossos)”. Referido dispositivo foi alterado pela edição da lei 10.150/00, que, em seu art. 20, caput, previu a possibilidade de regularização das transferências efetuadas até 25/10/1996 sem a anuência da instituição financeira, desde que obedecidos os requisitos ali estabelecidos. - Manteve, contudo, a vedação à cessão de direitos sobre imóvel financiado no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação, sem a intervenção obrigatória da instituição financeira, realizada posteriormente àquela data.

Em resumo: Sem a devida anuência do agente financeiro para a transmissão de propriedade do imóvel, não se opera a transferência de financiamento, tampouco do seguro habitacional que lhe é acessório, devendo ser extinta a ação judicial, pela flagrante ilegitimidade ativa do demandante.

Em recente decisão proferida nos autos do processo 0001902-59.2024.4.05.8313, através do Juízo Habitacional 4.0 - Seguro Habitacional do TRF da 5ª região, determinou-se a extinção do feito sob os seguintes argumentos: “No caso concreto, o repasse do imóvel para o ora requerente mediante escritura pública de compromisso de compra e venda se deu em 2020 (ID 89159548) e este não demonstrou ter havido a anuência da instituição financeira ao negócio, razão pela qual não tem legitimidade para figurar no polo ativo da demanda, ainda que se pleiteie, aqui, apenas a cobertura securitária, em decorrência de supostos vícios de construção.”.

Semelhante entendimento se aplica para a aquisição de imóvel financiado através do SFH, com contrato de financiamento já quitado ao tempo da transação. Nestes termos, inexiste qualquer cessão de direitos aos adquirentes, considerando que já fora extinta qualquer relação ou obrigação contratual pelo mutuário originário.

Trazemos a análise da legitimidade para o seguinte caso. Ora, uma vez extinto o contrato de financiamento pela sua quitação, falece também o Seguro Habitacional que lhe era acessório. Assim, consequentemente, ao comercializar o imóvel já quitado, inexiste qualquer vínculo deste com a apólice pública anteriormente firmada pelo verdadeiro mutuário. Ao novo proprietário, sucessor do mutuário originário, não caberá, portanto, pleitear quaisquer das garantias previstas pelo contrato já extinto, por finalizada a obrigação. 

A partir deste entendimento, em acertada decisão, o TRF da 3ª região negou provimento ao recurso de apelação cível 5001111-43.2023.4.03.6131, interposto pela parte autora, com as razões asseveradas pelo Ilustre desembargador Federal, dr. Antônio Marimoto, que consignou: “O apelante firmou contrato de compra e venda e cessão de direitos, para adquirir o imóvel financiado e já quitado, com os antigos proprietários, em 24/9/1999 (ID 294729695, p. 77/80). A participação da CEF no contrato de compra e venda apenas se justifica em razão da utilização de recursos de FGTS; não cuida da anuência de transferência de financiamento habitacional, dado que o contrato originário já estava até quitado. Assim, tenho que a parte apelante carece de legitimidade para figurar no polo ativo da presente demanda, pois não existe relação entre o apelante e as partes rés quanto ao imóvel objeto do contrato de compra e venda.”. 

No caso em tela, o autor pleiteou indenização securitária por supostos vícios construtivos, em imóvel cuja aquisição foi realizada mediante contrato de compra e venda firmado em 1999, com os antigos proprietários. Ocorre que, estes já haviam quitado todo o financiamento do imóvel em 1991, antes da comercialização.

O sucessor do mutuário originário, por sua vez, sob a pretensa ilusão de transferência de deveres e direitos sobre o imóvel, ajuizou tal ação judicial buscando auferir cobertura securitária prevista pela apólice pública, sem contudo, observar que a obrigação acessória acompanha a principal, conforme disposto no art. 184, do CC/02 e, nestes termos, findada a relação contratual, não há que se falar em transferência de Seguro habitacional, pois extinta também estará tal obrigação.

Por fim, a premissa fundamental ao reconhecimento da ilegitimidade ativa nas ações judiciais que versem sobre contratos firmados no âmbito do Seguro Habitacional/SFH reside na análise contratual, na observação quanto à titularidade da apólice pública, se houve cessão de direitos com a participação da instituição financeira e a vigência do contrato, sendo de suma importância a verificação desses requisitos para a própria continuidade da lide pois, ausente a relação contratual entre a Seguradora e o sucessor do mutuário originário, patente será a ilegitimidade ativa do demandante e, consequentemente, deve ser extinta a ação judicial que pleiteia quaisquer das garantias previstas na apólice pública.

Bruna Teixeira
Bacharel em Direito desde 2012. Advogada atuante no Contencioso Cível desde 2015, em diversas áreas do Direito Securitário e, desde 2018 especificamente, em demandas de Seguro Financeiro Habitacional, defendendo os interesses das Seguradoras, nas esferas administrativa e judicial, com tramitação tanto estadual quanto federal.

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