A realização da COP30 em Belém colocou o Brasil no centro de um debate cuja urgência é inegável: a proposta brasileira e o Roteiro Baku-Belém defenderam uma NCQG - Nova Meta Coletiva Quantificada com um piso de US$ 1,3 trilhão por ano para responder aos desafios climáticos. Mas a história recente recomenda cautela: a meta de US$ 100 bilhões, acordada em 2009, só se materializou com atraso e sob forte disputa política e técnica. A ambição de multiplicar esse montante por treze exige, portanto, não apenas metas políticas, mas instrumentos credíveis e canais que funcionem na prática, algo que hoje falta em grande medida.1
A raiz do problema não é apenas a escassez nominal de recursos, mas a assimetria na sua alocação. Ao longo da última década, os fluxos privados e grande parte do financiamento internacional favoreceram a mitigação. Relatórios recentes do UNEP estimam que a necessidade de adaptação para países em desenvolvimento alcançará dezenas e depois centenas de bilhões de dólares por ano nas próximas décadas, enquanto o fluxo internacional de recursos públicos para adaptação segue reduzido em termos reais. Essa discrepância transforma a adaptação em um passivo social crescente: quanto mais se posterga, maiores e mais caros serão os danos a corrigir.2
Se esses números são impressionantes, o problema prático é ainda mais prosaico: como converter um plano estadual ou municipal de adaptação em uma proposta bancável para fundos multilaterais e investidores? A resposta revela o gargalo jurídico. Mecanismos internacionais como o GCF - Green Climate Fund impõem requisitos de acreditação, padrões fiduciários, normas ambientais e sociais e exigências de gênero e transparência que são legítimas para prevenir desvios e resultados ineficazes. Mas esse mesmo conjunto de salvaguardas (quando aplicado sem uma ponte de capacidade técnica e jurídica) cria barreiras de entrada para entes subnacionais e organizações locais que não dispõem de equipes de due diligence e capacidade de gestão financeira. O resultado é que o capital permanece disponível em teoria, mas inacessível em prática.
Há, no entanto, caminhos claros para destravar esses fluxos, e é aí que o direito deixa de ser apenas reflexivo e torna-se estrutural. Primeiro, é preciso impulsionar a preparação de projetos e estruturar o fluxo de recursos. Estruturar o fluxo exige mais do que instrumentos financeiros: exige arcabouço jurídico que torne os projetos suportáveis em litígios, auditorias e avaliações de impacto. É preciso contratos bem desenhados para concessões e PPPs climáticas que incorporem cláusulas de revisão climática, métricas de resiliência e mecanismos de remediação; quadros regulatórios claros sobre licenciamento ambiental e direitos territoriais; e governança corporativa e pública que permita rastreabilidade dos recursos e resposta rápida a achados de auditoria. Sem esse lastro jurídico, fundos multilaterais e agentes privados continuarão apontando para "risco institucional" como razão para não desembolsar, mesmo quando a urgência humanitária é patente.
Há também um imperativo político: as metas internacionais precisam vir acompanhadas de disciplina operacional. Exigir que uma nova meta global seja ambiciosa é correto; exigir, porém, que ela se traduza em metas internas (planos estaduais de adaptação dotados de cronogramas, projetos prioritários e alocação orçamentária) é condição para que o dinheiro chegue ao campo. O Brasil, ao lançar, durante a COP30, o seu primeiro Plano Nacional de Adaptação Climática para a Saúde, sinaliza o caminho correto, mas sem pipelines de projetos concretos e juridicamente viáveis, o discurso da ambição se transformará em papelada diplomática, sem efeito prático.3
É aqui que a advocacia climática tem papel estrutural e urgente. Ao juntar competências em direito público, finanças sustentáveis, contratos e compliance ESG, escritórios especializados podem prestar três serviços decisivos: estruturar operações financeiras (por exemplo, frameworks para emissões sustentáveis e instrumentos de blended finance), capacitar entes públicos e consórcios em acreditação e preparação de projetos junto a fundos multilaterais, e desenhar mecanismos contratuais que tornem projetos resistentes a riscos regulatórios e litígios. Essas funções não são meramente consultivas: são precondições para que o capital internacional identifique contrapartes confiáveis no Brasil e para que a adaptação deixe de ser um problema de escritório técnico e passe a ser programa de investimento viável. Estudos setoriais e a evolução do mercado de dívida sustentável no Brasil mostram que a combinação de credibilidade técnica e instrumento financeiro pode acelerar emissões e mobilizar recursos privados quando há sinalização regulatória e fiscal clara.4
Ressalta-se que crítica não é ao rigor dos requisitos internacionais, esses existem por boas razões. A crítica é ao fosso entre norma e execução. A COP30 pode aprovar números impressionantes, mas sem uma estratégia prática de preparação de projetos, capacitação institucional, garantia legal e integração de instrumentos domésticos e internacionais, os trilhões permanecerão inacessíveis. O Brasil precisa, portanto, de uma agenda dupla: pressionar por metas globais ambiciosas e, ao mesmo tempo, implementar uma política doméstica de project-readiness, garantias e estruturação jurídica que leve a ambição de Belém até as prefeituras ribeirinhas e às comunidades mais vulneráveis. É nesse esforço de transformação da ambição em compromisso estrutural que se revela o Estado da Arte do engajamento brasileiro na COP30.
Neste ponto, destaca-se que o avanço estrutural do comprometimento brasileiro na COP30 já se manifesta em duas frentes complementares: adaptação e mitigação com governança ESG. No setor público, o lançamento do Plano de Ação de Saúde de Belém, por exemplo, inaugura um modelo concreto ao destinar US$ 300 milhões para a adaptação climática do SUS, fortalecendo a resiliência de hospitais e unidades de saúde frente a eventos extremos. No campo da mitigação, iniciativas Federais de padronização da governança de carbono, que padroniza métricas de emissões e estabelece metas de neutralidade institucional até 2030, mostram que o país começa a consolidar ferramentas de governança de carbono comparáveis às melhores práticas internacionais. Esse conjunto de avanços define hoje o estado da arte da ação climática brasileira: um arcabouço que combina planejamento setorial, padronização técnica e início de integração entre políticas públicas e instrumentos financeiros.5
Mas para que a transição justa deixe de ser slogan e se converta em investimento executável, o país precisa transformar esse arcabouço emergente em capacidade de entrega. Isso implica equipes jurídicas e técnicas capazes de traduzir planos em contratos, contratos em garantias, e garantias em confiança para financiadores. É justamente nessa interseção, entre direito, finanças e governança, que reside a diferença entre ambição diplomática e proteção efetiva.
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1 https://cop30.br/pt-br/noticias-da-cop30/presidentes-da-cop29-e-cop30-apresentam-mapa-do-caminho-de-baku-a-belem-para-mobilizar-us-1-3-trilhao-em-financiamento-climatico
2 https://www.unep.org/resources/adaptation-gap-report-2024
3 https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2025/novembro/brasil-lanca-plano-de-acao-em-saude-de-belem-para-enfrentar-impactos-climaticos-e-fortalecer-sistemas-de-saude-globais
4 https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/noticias/2025/novembro/brasil-lanca-primeiro-plano-nacional-de-adaptacao-as-mudancas-do-clima-na-saude