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Especial relevância: A fórmula vazia que arrasta as "demais provas" até a condenação

Diante da crescente supervalorização da palavra da vítima nos crimes de natureza sexual, impõe-se a adoção de critérios para assegurar maior racionalidade à atividade probatória.

9/12/2025
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Você caminha com um amigo durante o entardecer, quando vê, do outro lado da rua, um homem bastante excêntrico. Ele veste um terno italiano listrado, sapatos de bico fino e caminha lentamente, enquanto carrega consigo um certo ar de superioridade. De repente, seu amigo inclina-se discretamente sobre o seu ombro e sussurra:

- Está vendo aquele homem?

Você acena afirmativamente com a cabeça. Então ele completa:

- Ele é agiota.

A frase, como toda boa maledicência, não exige muitas provas. Segundos depois, quase como se a cidade estivesse encenando algo só para você, o homem de terno é discretamente abordado por um sujeito franzino que, com um aperto de mão rápido e movimentos cautelosos, lhe entrega um envelope amarelo e deixa o local de supetão.

Enquanto você continua observando atentamente as pequenas denúncias do gesto, como se assistisse um filme de suspense, o homem confere o volume contido no envelope com os dedos, coloca-o no bolso interno do paletó e segue o passo vagarosamente, lançando aos transeuntes um olhar oblíquo e dissimulado.

A cena, então, confirma imediatamente o boato. O boato confirma a sentença, e a imaginação, satisfeita, apossa-se da realidade.

“Sim, ele é agiota!”, você pensa.

Finalmente, o pensamento se acomoda, alegre, por ter nomeado o mundo. E isso é tudo quanto basta para que as palavras se grudem às coisas ou, com maior propriedade, às pessoas. Primeiro vem o rótulo; depois vem toda a realidade, que se encarrega, de forma humilde e diligente, de ajustar-se a ele.

Para nossa infelicidade, no âmbito do processo penal - especialmente no que diz respeito à valoração probatória nos crimes sexuais - esse mesmo fenômeno se repete rigorosamente: as palavras (ou declarações) também se grudam às coisas e às pessoas. E o resultado disso, facilmente observável no cotidiano forense, são as condenações erigidas quase inteiramente sobre a palavra da vítima.

- Mas a palavra da vítima não é sempre corroborada por outros elementos probatórios para que haja condenação?

Sem dúvida. Ao menos é assim que a fórmula se apresenta. O problema, porém, é mais sutil - e, por isso mesmo, mais perigoso. Em muitos casos, não são os elementos probatórios que corroboram a palavra da vítima; é a palavra supervalorizada da vítima que passa a arrastar consigo todo o conjunto probatório necessário à condenação.

Insisto: as palavras se grudam às coisas. E, uma vez grudadas, já não se sabe onde termina o fato e onde começa a interpretação. Os elementos deixam de ser examinados a partir daquilo que efetivamente são e passam a ser lidos exclusivamente sob a lente da narrativa acusatória, como se tivessem nascido já comprometidos com uma única versão dos acontecimentos.

O vizinho que “acha que viu, mas não sabe se viu, porque estava escuro” vira testemunha ocular. A pequena marca no braço - cuja origem poderia ser banal, cotidiana, irrelevante - converte-se em sinal inequívoco de violência. O policial que atendeu a ocorrência e constatou a vítima abalada - como se alguém não pudesse estar abalado por inúmeros outros motivos - transforma-se em chancela emocional da acusação.

Isso, somado à versão contraditória da vítima, é o suficiente para a condenação.

E é suficiente porque, uma vez aceito o ponto de partida - segundo o qual a palavra da vítima possui “especial relevância”, a ser medida pela subjetividade do julgador -, todo o restante passa a servir apenas como ornamento confirmatório. Já não se busca compreender; busca-se apenas confirmar. O processo deixa de ser um caminho em direção aos fatos e passa a ser um rito de validação da narrativa da vítima.

Como no caso do homem de terno ao entardecer, não foi o envelope que o tornou agiota. Foi a palavra sussurrada instantes antes do seu recebimento. O gesto apenas se acomodou ao rótulo que já o antecedia. No processo penal, tampouco é sempre a prova que constrói a condenação. Muitas vezes, é a narrativa eleita como prioritária que molda, desde o início, a leitura de tudo o que vem depois.

Dito isso, apesar das muitas pedras no caminho, a jurisprudência espanhola, tal como sistematizada por Ramírez Ortiz, nos termos em que é apresentada por Alexandre Wunderlich, aponta três vetores especialmente relevantes que podem redirecionar a rota da jurisprudência brasileira para uma maior racionalidade valorativa do depoimento da vítima de crimes sexuais.

O primeiro vetor diz respeito à credibilidade subjetiva, que consiste na análise das condições psíquicas da vítima, de eventual vulnerabilidade, das relações mantidas com o acusado e da existência de interesses paralelos capazes de influenciar o relato, como sentimento de vingança, a intenção de proteger terceiros ou disputas patrimoniais.

O segundo vetor refere-se à verossimilhança do depoimento, a ser aferida por meio da coerência interna da narrativa - isto é, sua lógica, consistência e plausibilidade -, bem como de sua coerência externa, mediante a compatibilidade com os dados objetivos extraídos dos autos, como documentos, perícias e demais elementos verificáveis.

O terceiro vetor, enfim, impõe a verificação da persistência no depoimento, entendida como a estabilidade da narrativa ao longo do tempo, com a ausência de contradições relevantes, de oscilações essenciais ou de zonas de nebulosidade capazes de comprometer a confiabilidade da versão apresentada.

Tais mecanismos, quando utilizados como verdadeiros instrumentos de racionalização da atividade probatória, são aptos a reduzir julgamentos obscuros e eivados de graves erros. Além disso, contribuem para resgatar o princípio do in dubio pro reo como expressão da presunção de inocência, instituto tão maltratado neste país.

Ah, antes que eu me esqueça: quanto àquele senhor do início, ele era apenas um velho corretor de imóveis.

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WUNDERLICH, Alexandre. Palavra da vítima e criação de presunção negativa: mitigação da defesa em casos de crime contra a mulher no ambiente doméstico. Boletim IBCCRIM, São Paulo, v. 32, n. 381, p. 18–20, ago. 2024. DOI: 10.5281/zenodo.12709311.

RAMÍREZ ORTIZ, José Luís. El testimonio único de la víctima en el proceso penal desde la perspectiva de género. Quaestio Facti: Revista Internacional sobre Razonamiento Probatorio, Madri, n. 1, p. 201–245, 2020. https://doi.org/10.33115/udg_bib/qf.i0.22288.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental no agravo em recurso especial n. 1.994.996/TO (2021/0322893-4). Relator: Ministro Messod Azulay Neto. Quinta Turma. Julgado em 14 mar. 2023. Diário da Justiça Eletrônico, Brasília, DF, 2023.

Autor

Rafael Sulzbacher Gerhard Advogado Criminalista, Pós-Graduando em Direito Penal e Criminologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Fundador do Escritório Sulzbacher Gerhard Advogados.

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