A narrativa da “resolução” que vira litigância
Nos últimos anos, proliferaram empresas que prometem ao consumidor “resolver” qualquer problema: reduzir parcelas de um financiamento, obter indenização por atraso de voo ou renegociar empréstimo consignado. O discurso é sedutor, rápido, simples e garantido.
Esse marketing não se limita a panfletos ou sites obscuros. Ele ocupa espaços nobres na TV aberta e se espalha por redes sociais, alcançando públicos de diferentes idades e perfis. A mensagem é sempre a mesma: contrate, assine e aguarde a solução.
Na prática, contudo, a realidade é outra. Sem qualquer tentativa séria de solução extrajudicial, essas empresas recorrem diretamente ao Judiciário, muitas vezes sem sequer informar o cliente. Para isso, exigem a assinatura de uma procuração digital, frequentemente obtida sem contato pessoal entre cliente e advogado. O consumidor, acreditando ter adquirido um serviço de “resolução”, transfere poderes amplos a um profissional que nunca viu.
Esse modelo expõe o risco de as procurações ultra vires, expressão latina que designa atos praticados além dos poderes conferidos. No processo eletrônico, a extrapolação do mandato se traduz em perda de autonomia do cliente, multiplicação de ações artificiais e aprofundamento da crise de confiança no sistema de Justiça.
A crise de confiança processual: Quando o mandato vira risco
O que deveria ser um instrumento de defesa, a procuração ad judicia, tem sido convertido em um cheque em branco. Em alguns casos extremos, o mandato permite que o advogado:
- Assine declaração de hipossuficiência em nome do cliente, atestando situação econômica que não lhe pertence;
- Desista da ação sem consulta prévia;
- E, no ápice da invasão digital, acesse o Gov.br do cliente e altere sua senha para “agilizar” o processo.
Essas práticas corroem a confiança processual e ampliam o risco de captura indevida da vida civil do consumidor. A representação em juízo é distorcida em instrumento de transferência de poderes que extrapolam, e muito, a esfera processual.
O prejuízo oculto para o consumidor
O dano ao consumidor é estrutural. Ele continua pagando o financiamento, o consignado ou o serviço contratado, mas passa a responder também por custos decorrentes de ações judiciais que não foram fruto de sua decisão consciente.
Honorários, custas, bloqueios indevidos, risco de condenação por má-fé: tudo recai sobre alguém que acreditava ter contratado apenas uma “solução”.
E os relatos são numerosos. Plataformas como Reclame Aqui registram queixas sobre práticas abusivas, litígios inesperados e prejuízos econômicos significativos. A promessa de “resolver problemas” transforma-se em ampliação do problema, corroendo a confiança do consumidor e desgastando a credibilidade do processo eletrônico.
O limite legal do mandato: O CPC como freio
O CPC estabelece limites claros ao poder de representação.
O art. 105 autoriza a procuração ad judicia para a prática da maior parte dos atos processuais. Porém, atos de maior impacto patrimonial - como desistir da ação, transigir, renunciar a direitos, receber valores, dar quitação ou reconhecer a procedência - exigem autorização expressa.
O §4º do art. 105 funciona como freio legal às outorgas indiscriminadas presentes em certos modelos de litigância em massa. Não se trata de formalidade: é salvaguarda da autonomia, da informação e do poder decisório do cliente.
O abuso ético: Hipossuficiência e a gestão digital da vida do cliente
Duas práticas merecem atenção especial:
- A declaração de hipossuficiência assinada pelo advogado.
- A outorga para acesso a sistemas como o Gov.br.
A hipossuficiência é benefício personalíssimo. Quando advogados a declaram em nome dos clientes, sobretudo em escala, produzem fraude, distorcem dados públicos, sobrecarregam a Justiça e geram prejuízo bilionário ao erário.
A “gestão digital” via Gov.br é ainda mais grave. Aqui o mandato ad judicia é indevidamente convertido em ad negotia. O advogado passa a gerenciar credenciais do cliente, o que viola ética profissional, LGPD, deveres de cuidado e de sigilo.
O Código de Ética da OAB é explícito ao vedar a mercantilização da profissão e exigir zelo, sigilo e probidade. Dar acesso irrestrito à vida digital do cliente é ultrapassar qualquer fronteira ética.
Quando a procuração vira produto: A indústria da representação
O fenômeno da procuração ultra vires não é acidental. Ele integra um modelo de negócio que transformou o mandato em produto comercializável.
Nos pacotes de “resolução de problemas”, a representação jurídica se converte em ativo de escala: quanto mais procurações colhidas, maior a capacidade de fabricar litígios.
Esse deslocamento substitui a advocacia baseada em confiança por pipelines automatizados, nos quais a assinatura digital se torna insumo para milhares de ações replicadas, ajuizadas sem contato humano e sem triagem individualizada.
Assim, o mandato deixa de ser relação de confiança e passa a ser matéria-prima de produção industrial de litígios. A digitalização potencializa o abuso: quanto mais digital o processo, maior a capacidade de automatizar violações.
A autonomia do cliente é diluída; as estatísticas processuais são distorcidas; a integridade do sistema eletrônico é fragilizada.
Conclusão: Integridade do mandato e sustentabilidade do sistema de Justiça
A procuração deveria ser instrumento de confiança e defesa. Quando usada para fabricar litígios, gerir a vida digital do cliente ou operar estratégias de massa, ela deixa de proteger - e passa a expor.
O alerta do CNJ para a litigância abusiva evidencia que o problema transcende o jurídico: é econômico, social e institucional. Procurações ultra vires ampliam riscos, geram prejuízos públicos, alimentam modelos de negócio opacos e corroem a confiança no processo eletrônico.
Preservar a integridade do mandato é preservar o próprio sistema de Justiça.
O advogado deve ser defensor de direitos, não gestor de riscos impedidos por lei; o consumidor deve ser protagonista de suas decisões; e o Judiciário deve ser instrumento de solução real, não de exploração comercial travestida de representação.