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A última fronteira da advocacia: A escuta ativa do cliente

Descubra como a escuta ativa revela riscos que não aparecem no briefing, fortalece a relação de confiança e transforma o advogado em parceiro estratégico.

4/12/2025

Nos últimos anos, a advocacia brasileira avançou em temas que antes pareciam distantes: inteligência artificial, analytics, gestão por indicadores, segurança da informação, experiência do usuário, cultura de dados. Escritórios profissionalizaram operações, digitalizaram fluxos e se tornaram protagonistas de uma transformação que já alcança a maior parte dos setores.

Mas existe uma fronteira que permanece pouco explorada e, ao mesmo tempo, é talvez a mais determinante de todas: a capacidade de escutar o cliente.

Não falo da escuta formal, protocolar, da reunião inicial. Falo da escuta real: aquela que entende o vocabulário da empresa, o que a trava, o que a pressiona, o que ela teme perder e onde ela realmente quer chegar. Aquela que identifica riscos antes que eles virem cláusulas. Aquela que enxerga oportunidades antes que elas virem litígios. Essa fronteira, curiosamente, não exige tecnologia de ponta. Exige apenas um de seus ativos mais valiosos como advogado: presença.

O hábito esquecido de ouvir

Pergunto com sinceridade: quando foi a última vez que você tomou um café com seu cliente para entender como ele está? Não para apresentar resultados. Não para entregar um parecer. Não para discutir honorários. Mas para perguntar: “O que está te tirando o sono? O que mudou no seu mercado? O que você está planejando para o próximo trimestre?”

Boa parte dos problemas jurídicos nasce no silêncio entre uma entrega e outra. O jurídico trabalha, entrega, avança, mas o negócio muda, a operação muda, a estratégia muda. Quando o escritório percebe, já existe um desalinhamento entre o que é contratado e o que é vivido. Não é falta de competência técnica. É falta de escuta.

No mundo corporativo, um contrato nasce de um contexto. E o contexto não está escrito em cláusula alguma. Está nas conversas informais, nos medos não declarados, na cultura da empresa, na pressão por metas, nos riscos que a liderança tenta evitar sem sequer verbalizar. Só quem escuta percebe isso.

A escuta como ferramenta de prevenção

Advogados têm sido historicamente treinados para resolver e não para prevenir. Mas a prevenção jurídica nasce de um diagnóstico que só é possível quando há escuta ativa.

Escutar o cliente revela:

E, ao contrário do que muitos pensam, clientes não querem apenas alguém que entenda de lei. Querem alguém que entenda deles.

A escuta ativa muda completamente a percepção de valor. Quando o advogado demonstra compreensão genuína sobre a realidade do cliente, ele deixa de ser fornecedor para se tornar parceiro estratégico.

A escuta como diferencial competitivo

Softwares de gestão, inteligência artificial e automações são fundamentais para reduzir retrabalhos, garantir rastreabilidade e liberar tempo. Mas não substituem a habilidade humana de compreender nuances, intenções e percepções. E essa habilidade tem se tornado o grande diferencial competitivo entre os escritórios.

Em um mercado saturado, onde quase todos se dizem especialistas, quem domina a escuta ativa:

Escutar é, paradoxalmente, o que mais fideliza.

Como resgatar a escuta ativa na rotina jurídica

Não se trata de agenda cheia de cafés, mas de intenção. E a intenção se traduz em prática. Separo a seguir algumas que funcionam:

1. Conversas periódicas sem pauta jurídica

Perguntas simples revelam mundos. “Como está sua operação?” costuma gerar respostas que nenhum contrato prevê.

2. Mapear o vocabulário do cliente

Cada setor tem sua própria gramática de risco. Quando o advogado adota essa linguagem, ele se aproxima do vocabulário do cliente.

3. Entender o que a empresa chama de ‘sucesso’

Para algumas, sucesso é reduzir risco. Para outras, sucesso é acelerar vendas. Escutar define essa métrica.

4. Observar as mudanças de comportamento

Se o cliente passou a pedir urgência em tudo, algo mudou internamente. Escutar também é perceber.

5. Manter uma postura curiosa, não conclusiva

A pergunta certa vale mais do que a solução imediata.

Escutar é estratégico e urgente

A advocacia pode e deve continuar avançando em tecnologia, eficiência e modernização. Mas nada substitui o ato humano de se conectar com a realidade de quem está do outro lado da mesa.

Na prática, escutar bem se tornou uma das competências mais valiosas do advogado contemporâneo. Porque a técnica protege. Mas a escuta transforma. E talvez seja justamente por isso que ela é a última fronteira: a mais simples, a mais humana e, paradoxalmente, a mais negligenciada.

Quando atravessamos essa fronteira, o jurídico deixa de reagir e passa a antecipar. Deixa de atender e passa a compreender. Deixa de entregar produtos e passa a construir relações. E, no fim das contas, é isso que sustenta a advocacia no longo prazo: gente que escuta gente.

Henrique Flôres
Cofundador da Contraktor. Formado em Direito e Sistemas para Internet, especialista em Administração e com MBA em Gestão Estratégica, IA e Marketing.

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