Migalhas de Peso

Entre vozes, silêncios e coragens - Liderança feminina na advocacia

Mais do que números: O poder das mulheres na advocacia está reescrevendo narrativas, desafiando estruturas e revelando novas formas de liderar.

15/12/2025
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Durante muitos anos, a advocacia brasileira foi um território em que as vozes femininas ecoavam mais baixo, mesmo quando carregavam a mesma competência, preparo e dedicação.

Quando assumi a presidência de uma comissão de gestão e inovação jurídica dentro da OAB, fui a primeira mulher naquele espaço, a sensação era a de entrar em um campo em que ainda havia mato alto, caminhos pouco trilhados e uma expectativa silenciosa pairando no ar. Não era dito, mas era sentido: “Será que ela dá conta?” É curioso perceber como essas perguntas, algumas vezes sem som, têm o poder de atravessar o corpo inteiro. Ali, diante de uma mesa predominantemente masculina, eu entendia que o desafio não era apenas técnico. A dificuldade real estava em sustentar a própria voz em ambientes que nem sempre foram pensados para acolher mulheres, e menos ainda para vê-las liderar.

A ironia é que, em números, já somos maioria. O estudo Perfil ADV, primeiro estudo demográfico completo da advocacia brasileira, realizado pela FGV - Fundação Getulio Vargas para o Conselho Federal da OAB, mostra que o país tem hoje mais advogadas do que advogados. Apesar do avanço numérico das mulheres na advocacia, essa presença ainda não se traduz em ocupação proporcional dos espaços de comando. As eleições mais recentes para as presidências das Seccionais da OAB evidenciaram isso de forma clara: entre as 27 unidades do país, apenas seis elegeram mulheres para o cargo, um resultado que reforça a distância entre participação e poder efetivo dentro da estrutura institucional (dados compilados pelo Migalhas a partir do pleito de novembro de 2024).

Pesquisas recentes revelam que, mesmo em organizações que avançam em diversidade, as mulheres continuam sub-representadas nos cargos estratégicos, sobretudo em posições de decisão. Não é a competência que falta, é a estrutura que não acompanha. Como apontam autores como Renner e Meyer, a desigualdade de gênero é histórica, construída por camadas simbólicas, culturais e organizacionais que se reforçam mutuamente ao longo do tempo. Ou seja: a porta se abre, mas os móveis lá dentro continuam dispostos para acomodar apenas um tipo de corpo, de voz, de trajetória.

E é exatamente nessa ambiguidade, entre avanço e resistência, que a liderança feminina se torna tão necessária. A cada mulher que ocupa um espaço de autoridade, algo na arquitetura do sistema se desloca. Ao assumir minha posição na OAB, percebi que estava, ao mesmo tempo, inaugurando um percurso pessoal e contribuindo para uma transformação coletiva. Mas essa travessia não é simples. Ela passa por interrupções constantes da fala, pela deslegitimação velada de ideias, pela necessidade recorrente de provar algo que muitos colegas nunca precisaram demonstrar. É a sensação contínua de caminhar em terreno inclinado, onde o esforço para se manter de pé é sempre um pouco maior. E, mesmo com o trabalho concluído, ecoa a sensação de um apagamento contínuo, castigo velado por ter ousado abrir caminhos onde antes não havia trilha.

Essas violências, por vezes sutis, moldam trajetórias. E não falo apenas da violência explícita, o assédio moral aberto, a hostilidade direta, mas também daquela violência elegante, que se esconde atrás de comentários disfarçados de preocupação, do rigor seletivo, direcionado sempre a nós, e do padrão estético-comportamental que exige das mulheres uma performance constante, impecável e emocionalmente regulada. Liderar, nesse contexto, é resistir enquanto se entrega; é criar espaço onde antes não havia; é aprender a não silenciar a própria voz para caber em expectativas que nunca nos pertenceram.

Essa realidade foi o que me levou a trabalhar mais intensamente com lideranças femininas na advocacia. Ao longo dos anos, tive o privilégio de acompanhar mulheres que carregavam uma força enorme, mas que, por dentro, enfrentavam batalhas silenciosas. Lembro de uma mentorada brilhante que havia sido promovida a gerente jurídica e que, ainda assim, chegava às sessões dizendo que não merecia estar ali. Falava como se tivesse enganado o mundo inteiro, como se a qualquer momento alguém fosse descobrir uma falha fatal. Era a síndrome da impostora em sua forma mais cruel: aquela que se instala precisamente nas mulheres mais capazes. O trabalho com ela foi o de reconstruir narrativas internas, resgatar a própria legitimidade, aprender a ocupar sem pedir permissão. E foi transformador vê-la, meses depois, conduzir seu time com firmeza e suavidade, sem anular sua identidade para parecer mais dura ou mais “adequada”.

Outra história que me marcou foi a de uma advogada que atuava como coordenadora em um escritório predominantemente masculino. Ela era competente, estratégica, respeitada pelos clientes, mas invisibilizada dentro do próprio ambiente. Sofria interrupções, ironias, pequenas desautorizações cotidianas. Era o tipo de assédio moral que não deixa marcas visíveis, mas que corrói lentamente a autoestima profissional. Nosso trabalho foi de construir autoridade emocional, fortalecer limites, aprimorar estratégias de comunicação e, sobretudo, devolver a ela o direito de não encolher diante de ambientes que tentavam restringir a sua potência. Com o tempo, sua postura transformou o espaço ao redor, e ela passou a ser reconhecida como referência técnica e comportamental.

Esses casos ilustram algo essencial: liderar como mulher não é apenas sobre competência. É sobre coragem. Coragem de se expor, como diz a autora Brené Brown, mesmo sem qualquer garantia de resultado. Coragem de existir plenamente em ambientes que ainda nos testam mais do que acolhem. Coragem de transformar a cultura com pequenas rupturas diárias, com escolhas conscientes, com presença.

E essa coragem, como bem aponta Patricia Dalpra em O Código Feminino da Liderança, não é performática. Ela nasce de valores, significado e sentido. As organizações do futuro, e eu diria, do presente, precisam de lideranças capazes de integrar empatia, estratégia, colaboração e visão sistêmica. Precisam de modelos que não se sustentam na força da imposição, mas na força da influência. E isso as mulheres fazem com naturalidade, apesar de tantas vezes terem sido ensinadas a duvidar de si.

A advocacia está mudando, e esse movimento não é uma concessão, é uma necessidade. Um ambiente diverso decide melhor, inova mais, erra menos. E, sobretudo, cria condições para que as pessoas floresçam. As mulheres não ocupam a advocacia apenas em número; ocupam em profundidade, em qualidade, em perspectiva. Falta, agora, que as estruturas reconheçam isso.

Escrever sobre liderança feminina é, de certo modo, escrever sobre minha própria trajetória. Sobre as vezes em que precisei respirar fundo antes de entrar em uma sala. Sobre as vezes em que tive que repetir uma frase para que ela fosse ouvida. Sobre as violências silenciosas que precisei nomear para que deixassem de me atravessar. Mas também é escrever sobre tudo o que conquistamos: sobre as mulheres que hoje lideram equipes, departamentos, escritórios, projetos; sobre aquelas que decidiram não se desculpar por ocupar espaço; sobre as que entenderam que talento não precisa se justificar.

No fim das contas, lutar contra um mundo desigual não é responsabilidade apenas das mulheres. É compromisso de todos, homens e mulheres, que desejam uma advocacia mais ética, mais humana e mais inteligente. Porque diversidade não é pauta identitária; é pauta estratégica. Não é um convite à delicadeza; é um convite à excelência.

E, enquanto sigo trabalhando com lideranças femininas, sigo acreditando no mesmo princípio que me ajudou a atravessar os corredores da OAB no dia da minha posse, em 2016, como a primeira presidente de uma comissão de gestão: mulheres não precisam de permissão para liderar. Precisam apenas de espaço. E, quando não existe espaço, elas aprendem a construir o próprio, até que ninguém mais se atreva a fechá-lo.

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BROWN, Brené. A coragem para liderar: Trabalho duro, conversas difíceis, corações plenos. Rio de Janeiro: Sextante, 2019.

DALPRA, Patricia. O código feminino da liderança: O futuro das organizações e de seus líderes. São Paulo: Editora Gente, 2022.

FARIAS GOMES, Ana; RENNER, Juliana; MEYER, Marcela. Liderança feminina e desigualdade de gênero: um estudo sobre programas brasileiros de liderança. Cadernos EBAPE.BR, v. 21, n. 1, p. 1–18, 2023. Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2025.

FGV; OAB NACIONAL. Perfil da Advocacia Brasileira. Brasília, 2023.

FONTENELE, Ísis P. Liderança e Cultura Organizacional na Advocacia. São Paulo: [insira a editora], 2024.

MIGALHAS. Apenas seis seccionais da OAB elegeram mulheres para a presidência. Migalhas, 21 nov. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/420834/apenas-seis-seccionais-da-oab-elegeram-mulheres-para-presidencia. Acesso em: 5 dez. 2025.

PLÖGER, André. A liderança feminina será o norte em sociedades em transformação. Latin Trade Magazine, 2023. Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2025.

SILVA, Bruna C.; SILVA, Maria L. Liderança feminina nas empresas brasileiras: competências de um novo modelo de gestão. Revista de Administração e Inovação, v. 19, n. 4, p. 1–15, 2022. Disponível em: . Acesso em: 5 dez. 2025.

Autor

Ísis P Fontenele Consultora, autora e professora. Foi presidente da Comissão de Gestão da OAB/GO (2016-2021) é reconhecida por ter criado o primeiro curso de pós-graduação em gestão para advogados no Brasil.

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