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Critérios, gramática e conduta: A reconstrução da imputação penal

Neste artigo, exploro como critérios públicos, gramática da conduta e contexto permitem reconstruir a imputação penal, superando ficções e aproximando o Direito da vida real.

15/12/2025
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Por trás de toda imputação penal, há sempre uma tentativa de interpretação da conduta humana. Essa tentativa, no entanto, só pode ser legítima se for orientada por critérios claros, públicos e compartilháveis, critérios que não dependam de adivinhações sobre a mente do autor, mas de elementos verificáveis na sua ação. A teoria significativa da imputação parte desse pressuposto: toda imputação penal deve observar a gramática da conduta e ser ancorada em critérios significativos que possam ser demonstrados externamente.

Ao longo da tradição penal, a dogmática desenvolveu categorias baseadas em ficções e presunções. A principal delas, o dolo eventual, tornou-se símbolo de um modelo de imputação que ignora a linguagem ordinária e obscurece o juízo penal. A tentativa de identificar o dolo por meio de atitudes internas, como “assumir o risco”, “aprovar o resultado” ou “ficar indiferente”, tem se mostrado ineficaz, pois essas expressões, embora repetidas à exaustão nos manuais e sentenças, carecem de critérios identificadores. O resultado é um campo de incerteza e subjetivismo que favorece decisões penais arbitrárias.

Ludwig Wittgenstein, ao refletir sobre a linguagem, nos oferece uma chave para reorganizar esse cenário. Para ele, o significado de uma expressão não está em um suposto conteúdo mental, mas no seu uso nas práticas sociais. Aplicado ao Direito Penal, esse princípio exige que as categorias da imputação estejam enraizadas na linguagem ordinária e que os conceitos jurídicos sejam compreensíveis a partir da observação da conduta e do contexto em que ela ocorre. Isso não significa eliminar a complexidade, mas, ao contrário, reconhecê-la como algo que pode ser tratado com clareza a partir dos critérios adequados.

Critério, na perspectiva wittgensteiniana, é aquilo que nos permite identificar um estado mental ou uma disposição do agente com base em manifestações externas. Saber se alguém sente dor, por exemplo, não depende de um acesso privilegiado à sua mente, mas da observação de comportamentos significativos: expressões faciais, gestos, palavras, reações. O mesmo se aplica ao campo penal. Saber se alguém agiu com dolo não é uma questão de adivinhação psicológica, mas de verificação dos elementos de sua conduta que revelem a decisão de lesar o bem jurídico.

Essa concepção se opõe frontalmente à doutrina dominante, que insiste em tratar o dolo como um fenômeno interno, acessível apenas por inferência. Tal perspectiva conduz a um modelo de imputação contaminado pela presunção, em que a vontade do agente é presumida a partir de circunstâncias genéricas, como a previsibilidade do resultado. Com isso, viola-se o princípio da imputação pessoal e torna-se impossível distinguir de forma precisa entre dolo e imprudência.

A teoria significativa da Imputação propõe outra via. Em vez de inferir estados mentais a partir de presunções, propõe identificar caracteres significativos da ação, isto é, elementos objetivos, inseridos em um contexto de linguagem, que permitam descrever a conduta com rigor. Esses caracteres são verificados a partir de critérios extraídos do uso ordinário da linguagem, como a presença de uma finalidade, a aceitação consciente do resultado, a atitude de indiferença ou desprezo pelo bem jurídico, entre outros.

Por essa via, torna-se possível abandonar o conceito de dolo eventual, uma ficção que oscila entre o volitivismo e o cognitivismo sem oferecer segurança teórica ou aplicabilidade prática. Ao invés disso, a conduta até hoje descrita como dolo eventual deve ser reclassificada conforme sua natureza imprudente, a partir de critérios que distinguem com clareza a imprudência inconsciente, a imprudência consciente leve, grave ou gravíssima. Essa classificação, proposta em minha obra Fundamentos de la Teoría Significativa de la Imputación, permite ao juiz trabalhar com elementos verificáveis, em vez de supor intenções ocultas.

A gramática profunda da imputação, expressão que tomo emprestada de Tomás Salvador Vives Antón, diz respeito à estrutura das regras que dão sentido às nossas palavras e aos nossos juízos. Quando dizemos que alguém agiu com dolo, estamos utilizando uma gramática que associa a ação a determinados critérios: decisão, finalidade, aceitação do resultado. Essa gramática não pode ser arbitrária, nem manipulável conforme os interesses do momento. Ela deve refletir as práticas sociais e os jogos de linguagem que estruturam nossa convivência.

Nesse sentido, é preciso reconhecer que o Direito Penal não pode operar com conceitos que estejam desligados da vida. Wittgenstein ensinou que as palavras ganham sentido em seu uso, e é nesse uso que devemos buscar os fundamentos da imputação. O que distingue a conduta dolosa da imprudente é o modo como ela se apresenta no mundo: sua forma, seu contexto, sua gramática. Se alguém age com indiferença diante de um risco, isso não significa necessariamente que deseja o resultado. Pode significar que foi gravemente imprudente. Mas, para saber isso, não basta uma suposição: é preciso aplicar critérios.

Portanto, a reconstrução da imputação penal exige que abandonemos os resquícios do cartesianismo jurídico, essa crença na existência de estados mentais incognoscíveis, que precisam ser presumidos, e adotemos uma metodologia fundada na linguagem, na ação e nos critérios. Só assim será possível superar os impasses criados pela doutrina do dolo eventual e construir uma teoria da imputação compatível com os princípios do Estado Democrático de Direito.

A imputação penal não pode ser um exercício de imaginação. Ela deve ser uma operação técnica, transparente e verificável. É isso que a teoria significativa da imputação oferece: uma gramática jurídica orientada por critérios significativos, fundada na linguagem ordinária, comprometida com a justiça. Porque, afinal, como já advertiu Wittgenstein: não há nada oculto.

Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Autor

Antonio Sanches Sólon Rudá Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

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