I. Introdução - Gérson, North e as Instituições Brasileiras
Por que pessoas trapaceiam? A resposta é intuitiva: porque (i) o benefício esperado é superior ao custo caso seja pego no ato e (ii) acreditam que não serão descobertas.
Ambos os elementos estão vinculados ao conceito de instituições adotado por Douglass C. North, co-ganhador do Prêmio Nobel de economia em 1993. “Instituições incluem”, escreveu, “qualquer forma de limitação que seres humanos criam para moldar interações humanas”1.
“Elas são perfeitamente análogas às regras do jogo em um esporte coletivo competitivo. Isso é, elas consistem em regras formais escritas, bem como de códigos de conduta tipicamente não escritos que contextualiza e suplementa as regras formais, tal como não lesionar propositalmente um jogador chave do time adversário. E como essa analogia implica, as regras formais e informais às vezes são violadas e punições são aplicadas. Assim, uma parte essencial do funcionamento das instituições é o custo de se identificar violações e a severidade da punição"2.
Ele prossegue com a analogia apontando que alguns times são bem-sucedidos como consequência de violarem constantemente as regras, traduzido em um adágio tradicionalmente vinculado com o beisebol nos Estados Unidos: “if you’re not cheating, you’re not trying”, que podemos traduzir como “se você não está trapaceando, você não está tentando (vencer)”.
No Brasil, há algo parecido na famosa (ou infame) lei de Gérson, originada de uma campanha publicitária da marca de cigarros Vila Rica estrelada pelo ex-jogador da Seleção Brasileira que disse: “O importante é levar vantagem em tudo, certo?”.
No léxico popular, e a despeito dos protestos do garoto-propaganda, a lei de Gérson veio a representar os conceitos do jeitinho e da malandragem, características que, justa ou injustamente, não raramente são atribuídas à cultura brasileira.
Nesta breve exposição, buscamos explorar a leniência com que aquele devedor pego no cometimento de fraudes é tratado e, ao fim, questionar se há um desvio na maneira como determinados conceitos tradicionais do direito são aplicados.
II. - As regras: Abuso de Direito, desconsideração da personalidade jurídica e a dignidade da Justiça
Toda interação social é regida por um conjunto de regras a que estão, todos os participantes do sistema, vinculados como condição de pertencimento. Os negócios jurídicos, realizados sob a jurisdição do direito brasileiro, estão sujeitos geralmente às leis do ordenamento pátrio.
São as instituições formais a que se refere North e que, como apontou o economista, são mais eficientes quando existem ao lado de um sistema de convenções sociais (instituições informais) que incentive o indivíduo a cumprir suas obrigações.
Partimos da premissa de que estas constrições sociais não possuem a eficácia necessária para impedir a deturpação de institutos legais em afronta aos parâmetros da boa-fé. Como aponta Marco Aurélio Fernandes Garcia3, em sua dissertação acerca das sanções reputacionais, a figura do comerciante individual foi a pedra angular de praticamente toda história comercial.
O autor relata o caso do comerciante Lucas4, ocorrido em 1292, como exemplo de sanção reputacional informal: uma dívida de 31 pounds incorrida de forma sub-reptícia na feira de Lynn, e seguida na recusa formal ao pagamento, resultou na negativa dos demais mercadores a negociar com o infrator até que a dívida fosse paga.
Em situação análoga e contemporânea, a jurisprudência do TJ/SP reiteradamente declarou que a liberdade de contratar garante a instituições financeiras o direito de rejeitar a contratação com indivíduos reputados como maus pagadores com base em seus registros internos, desde que a eles não tenha dado publicidade5.
Entretanto, a vedação ao compartilhamento público de informações desta natureza impede que o registro interno adquira a qualidade dissuasiva que North vincula às instituições informais.
Outrossim, a facilidade com que se abrem novas empresas no Brasil6 permite que a reputação do empresário se perca num oceano de firmas de fachada, abertas em nome de laranjas e imunes ao alcance da lei.
Se a má-fama “na praça”, representativa das instituições informais que deveriam coexistir com aquelas formalmente estabelecidas pelo estado, já não representa um incentivo suficiente para dissuadir o fraudador, resta-nos voltar os olhos para a hipótese em estudo sob o prisma normativo.
“Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. O texto do art. 186 do CC, para os fins da reflexão que propomos, deve ser lido em conjunto com o art. 187.
“Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”
Este artigo integra ao ordenamento o conceito de abuso de direito que, para Rosenvald e Netto7, viabilizou “a fragmentação da ilicitude em uma ilicitude formal e de uma ilicitude material com autonomia científica, mas com identidade substancial de consequências jurídicas, gerando convergência de efeitos sancionatórios nos planos preventivo e repressivo”.
Os professores, observando a relevância do instituto como instrumento para que a jurisprudência imponha “vedações às condutas caprichosas ou arbitrárias” e possa “[realizar], adequadamente, os fins sociais do direito”, invocam o trabalho do francês Louis Josserand:
“Sobressai, no ponto, o trabalho de JOSSERAND. Aduz o jurista que o verdadeiro critério do abuso do direito é retirado do desvio do direito de seu espírito, isto é, de sua finalidade ou função social, segundo um conteúdo valorativo. Todos os direitos subjetivos devem permanecer no plano da função a que correspondem, sob pena de abuso do direito. A concretização do critério se daria pela aferição do motivo legítimo do ato, confrontando a sua motivação individual com a missão do direito exercido”8.
Estes artigos não se encerram em hipóteses de consequência à violação de deveres ou sistema estrito de reparação de danos, mas manifestam a opção do legislador pela eleição de institutos normativos estruturais ao redor dos quais é construído e interpretado o sistema jurídico brasileiro.
A boa-fé, na lição de Judith Martins-Costa9, configura um modelo jurídico completo e prescritivo. Um modelo jurídico “porque o significado e as eficácias do ‘comportamento segundo a boa-fé’ não resultam de uma norma isolada, mas de uma estrutura normativa que articula, finalisticamente, normas provindas de mais de uma das fontes” que é prescritivo “porque é dotado da possibilidade de impor ações, condutas, vedações, sanções” e “não apenas recomendações ao aplicador do direito”.
Mais do que definições, são aspirações que remetem a ideais populares de integridade e honra que coexistem com a lei de Gérson no universo cultural brasileiro. O legislador reforçou a incidência deste vetor comportamental ao estabelecer o dever de cooperação insculpido no art. 6º do CPC.
A medida da boa-fé não está, contudo, nas intenções, mas nos atos praticados em sociedade e em relação à intricada teia de direitos e deveres correlacionados. Por essa razão, o abuso de direito se configura pelas ações e não nos desejos do indivíduo. Ou, como brilhantemente expõe a autora, são “os elementos fático-contextuais que permitem descobrir, por detrás de uma atuação formalmente adequada, a ilicitude, no exercício, vale dizer: um modo de exercerem direitos, poderes ou faculdades contrário aos vetores axiológicos fundamentais do sistema jurídico”10.
Os professores José Miguel Garcia Medina11 e Fábio Ulhoa Coelho12, a este respeito, convergem: nosso ordenamento optou pela formulação objetiva do abuso, independente da demonstração do intuito da fraude.
Concluímos, portanto, que o exercício de um direito para fins diversos daqueles razoavelmente esperados configura um ato abusivo. O termo ganha especial relevância quando voltamos os olhos ao instituto da desconsideração da personalidade jurídica.
A lei de liberdade econômica (lei 13.874/19) alterou a redação do art. 50 do CC, mantendo o início de seu caput: “[e]m caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial”. Inovou, contudo, ao delimitar o alcance da desconsideração até “[os] bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso”.
O elemento nuclear da desconsideração é, como se vê, o abuso da personalidade. A implicação lógica é de que, enquanto espécie do gênero abuso de direito, os atos descritos nos parágrafos do art. 50 do CC constituem ilícitos civis e geram um liame de responsabilização direcionado ao agente da violação.
O dispositivo expandiu o texto anterior estabelecendo os “requisitos de desconsideração da personalidade jurídica” no intuito de “garantir que aqueles empreendedores que não possuem condições muitas vezes de litigar até as instâncias superiores possam também estar protegidos contra decisões que não reflitam o mais consolidado entendimento [do STJ]”13.
São os critérios para incidência da Teoria Maior da desconsideração da personalidade jurídica:
- o desvio de finalidade, definido como sendo a “utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza”;
- a confusão patrimonial, entendida como “a ausência de separação de fato entre os patrimônios” do devedor e da sociedade desconsideranda, trazendo dois exemplos e uma previsão aberta de outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.
Há uma crítica oportuna à definição do desvio de finalidade: tratando-se de ato de abuso de direito, o propósito do sujeito ativo não deve ser posto como elemento a ser comprovado pelo credor. A responsabilidade decorrente do exercício abusivo de um direito tem natureza objetiva, dispensando prova do animus do responsável.
O conceito, ademais, não está restrito à esfera de direitos materiais, mas encontra eco no conteúdo do art. 774 do CPC, que define os atos atentatórios à dignidade da justiça.
A norma define como atentatória à dignidade da justiça, “a conduta comissiva ou omissiva do executado que se opõe maliciosamente à execução, empregando ardis e meios artificiosos”, prevendo que, neste caso, o juiz “fixará multa em montante não superior a vinte por cento do valor atualizado do débito em execução, a qual será revertida em proveito do exequente”.
É, em essência, a deturpação do direito fundamental à ampla defesa e contraditório que se manifesta na má-fé processual da parte.
Por fim, o art. 927 do CC imputa ao autor do ilícito o dever de reparar o dano causado a outrem. Enfrentaremos, ainda, a opção legislativa pela natureza reparatória da indenização e sua influência no comportamento social.
Leia o artigo na íntegra.
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1 NORTH, Douglass C. Institutions, Institutional Change and Economic Performance, Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p.4 – tradução livre.
2 Idem.
3 FERNANDES GARCIA, Marco Aurélio. Sanções Reputacionais e Cumprimento dos Contratos, São Paulo, 2020, p. 134.
4 Ibid, p. 135.
5 TJSP; Apelação Cível 1005552-06.2025.8.26.0566; Relator: Alexandre David Malfatti; Órgão Julgador: 12ª Câmara de Direito Privado; Foro de São Carlos - 5ª Vara Cível; Data do Julgamento: 24/10/2025; Data de Registro: 24/10/2025.
6 O boletim Mapa de Empresas do 3º quadrimestre de 2024, compilado pela Diretoria Nacional de registro Empresarial e Integração, órgão do Ministério do Empreendedorismo, da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte indicou a existência de 22.004.843 (vinte e dois milhões, quatro mil, oitocentos e quarenta e três) empresas ativas no Brasil, com a criação de 4.254.903 (quatro milhões, duzentos e cinquenta e quatro mil, novecentos e três) novas empresas naquele ano e fechamento de 2.436.190 (dois milhões, quatrocentos e trinta e seis mil, cento e noventa).
7 ROSENVALD, Nelson; NETTO, Felipe Braga. Responsabilidade Civil – Teoria Geral, Indaiatuba, SP: Editora Focus, 2024, p. 496.
8 Ibid, p. 497.
9 MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação, 3ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p. 259.
10 Ibid, p. 714.
11 MEDINA, José; ARAÚJO, Fábio. Título III. Dos Atos Ilícitos In: MEDINA, José; ARAÚJO, Fábio. Código Civil Comentado. São Paulo (SP):Editora Revista dos Tribunais. 2022. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/codigo-civil-comentado/1620614633. Acesso em: 14/11/2025.
12 COELHO, Fábio. Capítulo 11 - Atos Ilícitos In: COELHO, Fábio. Curso de Direito Civil: Parte Geral. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2020. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/curso-de-direito-civil-parte-geral/1153087418. Acesso em 14/11/2025.
13 BRASIL, EMI n.º 00083/2019 ME AGU MJSP, Exposição de Motivos da Medida Provisória nº 881 de 30 de abril de 2019, posteriormente Lei de Liberdade Econômica, Brasília: 2019.