Em 2014, denunciei o “juridiquês” com ironia deliberada - “Data maxima vênia… blá, blá, blá” - para expor o absurdo de um discurso que mais confunde do que esclarece. A imagem é útil: quando o texto jurídico vira labirinto de latim e perífrases, ele deixa de ser mapa e torna-se armadilha; o leitor não encontra o caminho, perde-se em becos sem saída e abandona a travessia. Diferente da liturgia antiga, em que o fiel repetia “amém” sem entender, o processo exige compreensão ativa: o juiz não valida um pedido pela solenidade da forma, e o cidadão não exerce direito que não compreende. Clareza não é estilo - é garantia de que a mensagem será realmente compreendida.
Uma peça bem escrita deve funcionar como sinalização urbana bem projetada: indica o destino, sinaliza rotas alternativas e previne acidentes processuais. A decisão judicial é bússola calibrada, não um enigma hermético; a petição é roteiro objetivo, não catálogo de termos arcaicos. Essa clareza economiza tempo e recursos, reduz recursos por obscuridade e fortalece a legitimidade das decisões ao torná-las passíveis de controle público e de execução prática.
Hoje essas ideias deixaram de ser mero idealismo retórico e ganharam respaldo normativo e institucional. A Política Nacional de Linguagem Simples impõe à Administração Pública Federal padrões de comunicação objetiva, acessível e centrada nas pessoas - reconhecendo que informação incompreensível é exclusão. No âmbito do Judiciário, o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples, promovido pelo CNJ, traduz essa exigência em compromisso institucional: magistrados e tribunais devem adotar práticas que tornem decisões e comunicações inteligíveis a todos. Não se trata de moda; é reforma da governança comunicacional do Estado.
Para que a norma deixe de ser enunciado e torne-se prática, são necessárias ferramentas concretas: formação continuada de magistrados e servidores, revisão de modelos e rotinas, guias de redação e métricas de legibilidade. Mudar a cultura exige exemplos: decisões-modelo claras e fundamentadas, manuais de termos e checklists que priorizem a funcionalidade do texto. Sem implementação sistemática, a política pública corre o risco de permanecer retórica burocrática.
Defender a simplicidade não equivale a sacrificar o rigor técnico. Pelo contrário: a precisão jurídica se revela melhor quando articulada de modo que qualquer leitor informado consiga apreender o raciocínio. Traduzir complexidade em linguagem acessível é exercício de técnica - é transformar um argumento sofisticado em instruções claras, passo a passo, sem perder substância. Clareza, enfim, é a certeza prática de compreensão: quando a mensagem é clara, presume-se que será entendida e aplicável.
Retomo, portanto, o apelo de 2014 com maior robustez: escrever como se fala - com a mesma clareza e objetividade - é obrigação profissional e ato de cidadania. O combate ao juridiquês é investimento em eficiência, transparência e confiança pública. Governos e tribunais já começaram a construir as pontes; cabe a advogados, juízes e servidores pavimentá-las diariamente, até que a comunicação jurídica deixe de ser barreira e passe a ser instrumento real de acesso à justiça.
Este artigo é curto porque não poderia ser contraditório ao próprio propósito: A clareza exige concisão.