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Notas sobre arbitragem de construção

A arbitragem de construção encerra diversos desafios para os árbitros, desde a identificação da matriz de risco do negócio, até a condução da prova pericial abrangendo sofisticadas questões técnicas.

17/12/2025
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Nos últimos anos, a arbitragem vem se sobressaindo como o principal método de resolução de disputas envolvendo contratos de construção. Especialmente em obras de grande porte, duas razões se destacam para essa escolha das partes.

Uma delas é o fato de que o litígio será decidido por árbitros com experiência nesse tipo de disputa, ao invés de ser submetido a juízes togados que tendem a ser generalistas, na medida em que julgam uma ampla variedade de demandas, grande parte delas de menor complexidade.

Outra é a possibilidade de a prova pericial ser conduzida por técnicos altamente especializados em diferentes e complexas questões envolvidas na disputa.

Como os contratos de construção possuem dois elementos essenciais - o tempo de execução do projeto e o custo envolvido1 - é usual que as arbitragens de construção girem em torno da combinação de problemas decorrentes de custo e prazo.

O ponto de partida para a análise de uma disputa envolvendo um contrato de construção é o exame de como a alocação dos riscos foi estabelecida pelas partes no contrato ou qual a previsão legal aplicável conforme o tipo contratual escolhido.

Em relação à forma de remuneração do empreiteiro, a empreitada se classifica como a preço global ou fixo (marché à forfait) ou por medida (marché sur dévis).2

Se o contrato é de empreitada a preço global, a regra legal é que o empreiteiro assume a execução da obra por um preço total, previamente definido, sem direito a exigir acréscimo no preço.3

Se houver variação dos custos reais, sem estipulação em sentido contrário, compete ao empreiteiro assumi-la, ou seja, eventual incremento dos custos está na álea do risco assumido pelo construtor na empreitada global. O empreiteiro experiente calcula o preço global levando em consideração possíveis variações de custo ao longo da obra de forma a preservar sua remuneração no patamar inicialmente projetado.

De todo modo, nada impede que as partes pactuem cláusula contratual prevendo a possibilidade de reajustamento do preço caso haja variação no custo de material e/ou mão de obra, mediante critérios previamente definidos. Como esclarecem Gustavo Tepedino, Nelson Konder e Paula Bandeira, “tal reajuste não se confunde com a correção monetária, que permite corrigir as distorções causadas pela inflação e que sempre será devida por força de lei, independentemente de previsão contratual.”4

Se forem introduzidas modificações no projeto por iniciativa do empreiteiro sem autorização por escrito do dono da obra, ele não pode pretender cobrar acréscimo do preço, a não ser que fique comprovado ter havido autorização tácita, tendo o dono da obra acompanhado in loco a sua execução, verificando, sem oposição, durante as visitas que realizou, as alterações que estavam sendo implementadas5. Nessa hipótese, o ônus compete ao empreiteiro de demonstrar a autorização tácita do dono da obra às alterações que respaldam a pretensão de aumento do preço global ajustado.

Por outro lado, com o objetivo de manter o equilíbrio contratual, o art. 620 do CC6 prevê a possibilidade de revisão parcial do preço em favor do dono da obra se ocorrer diminuição do valor da matéria prima e/ou da mão de obra em patamar superior a 1/10 (um décimo) do preço global ajustado. Se isso ocorrer, competirá ao dono da obra comprovar a diminuição de custo na proporção indicada na disposição legal a fim de fazer jus à diminuição do preço global acordado.

Além disso, se houver situação de comprovado desequilíbrio contratual, estando presentes os requisitos da onerosidade excessiva, a parte prejudicada poderá requerer a rescisão do contrato de empreitada, nos termos do art. 478 do CC7, garantindo o art. 625, II, do mesmo Código especificamente essa possibilidade ao empreiteiro se surgirem dificuldades imprevisíveis durante a execução da obra e o dono da obra não aceitar a revisão do preço.8

Se a empreitada é a preço unitário, o valor devido é calculado com base nas quantidades efetivamente medidas e executadas multiplicadas pelos preços unitários contratados, devendo ser pago proporcionalmente ao que foi efetivamente executado e medido9. Por essa razão, nessa espécie de empreitada as medições são fator de grande relevância, pois se há uma variação de quantidades o custo final aumenta, cabendo ao dono da obra arcar com essa variação. Por outro lado, compete ao empreiteiro arcar com os riscos de produtividade e de variação dos preços unitários.

Tendo em vista a importância das medições nesse tipo de empreitada, é comum as partes regularem detalhadamente no contrato os critérios para realização da medição e de eventual impugnação de seu resultado pelo dono da obra.

A partir da entrega das etapas que foram sendo medidas e recebidas pelo dono da obra, os riscos passam a ser dele, presumindo-se a partir do pagamento correspondente que ele aceitou o que foi executado.10

A medição também é um marco importante porque, a partir de sua realização, o dono da obra tem 30 (trinta) dias para denunciar eventuais vícios ou defeitos aparentes11. A doutrina classifica esse prazo como decadencial.12

Nos grandes contratos de infraestrutura, de que são exemplos os de construção de usinas hidrelétricas, plantas petroquímicas, terminais logísticos, portos e terminais marítimos, dentre diversos outros13, é usual a adoção do modelo de contrato EPC turn key. Neste modelo de contratação, compete ao empreiteiro entregar a obra pronta para operação por um preço global previamente determinado, assumindo a obrigação de elaborar os projetos e indicar as especificações de todas as frentes envolvidas (civil, mecânica, elétrica e outras)14; fornecer os materiais e equipamentos15; e executar a obra16. A obra é entregue pronta para uso, bastando “girar a chave.” Nesse modelo de contratação a transferência de riscos para o empreiteiro é integral, oferecendo ao contratante uma maior certeza de custos e prazos.

Na lição de Gustavo Tepedino, Nelson Konder e Paula Bandeira, trata-se de empreitada “de natureza jurídica controversa, ora definida pela doutrina como contrato atípico, ora como forma especial de contrato de empreitada, ao qual se associam numerosas cláusulas que lhe conferem características funcionais peculiares.”17

Justamente por sua sofisticação e pela diversidade de matérias que são usualmente discutidas em disputas envolvendo contratos EPC turn key, é usual a utilização da arbitragem como meio de solução de controvérsias.

Em contratos turn key em que a divergência entre as partes pode abranger a execução da obra civil e o fornecimento de equipamentos, envolvendo os impactos de atrasos, greves, sobrecustos, mudanças de projetos, defeitos construtivos, dentre diversos outros fatores, a arbitragem possibilita que os exames periciais sejam realizados em várias frentes distintas, englobando os múltiplos temas técnicos em discussão e sendo conduzidos por profissionais especializados em cada uma das áreas pertinentes.

Assim, uma das grandes vantagens da utilização da arbitragem nas disputas de construção é a fase pericial, pois além da expertise dos técnicos que vão realizar a prova, sua modelagem poderá ser desenhada conforme as especificidades que o caso exigir.

Um exemplo é a apresentação de pareceres técnicos pelas partes, sem a indicação de um perito de confiança pelo tribunal, técnica incorporada em arbitragens domésticas tendo como exemplo a prática da arbitragem internacional. De um lado, essa modalidade de prova pericial pode ter como vantagem uma economia, na medida em que evita a duplicação de custos com a contratação do perito do tribunal e de assistentes técnicos indicados pelas partes. De outro, os árbitros deverão ser capazes de compreender de forma aprofundada temas técnicos de alta complexidade a partir de pontos de vista opostos apresentados pelos assistentes técnicos, sem poder contar com a posição imparcial do perito de sua confiança.

Há quem defenda que outra vantagem de a prova ser conduzida exclusivamente a partir de pareceres técnicos apresentados pelas partes é garantir que a compreensão e efetiva decisão sobre as questões técnicas serão dos árbitros, e não de um perito por eles indicados. Sobre esse aspecto, uma crítica comum às perícias judiciais é que muitas vezes o juiz “homologa” o laudo pericial sem compreender integralmente o que está sendo discutido, o que seria, em última análise, uma “terceirização” da sua decisão para o perito. Uma vantagem da arbitragem nessa seara é o compromisso do árbitro diligente de mergulhar no debate das questões técnicas para bem compreendê-las e poder decidir com independência, qualquer que seja o formato adotado na prova pericial.

Quando a prova pericial é montada a partir de pareceres apresentados pelas partes, os árbitros podem se utilizar da técnica do hot tubbing, também importada da arbitragem internacional, para melhor compreensão das questões técnicas apresentadas sob pontos de vistas opostos dos assistentes técnicos indicados pelas partes.

hot tubbing é a oitiva conjunta dos assistentes técnicos de cada parte, na qual são debatidos os pontos técnicos controvertidos. Antes da audiência marcada para esse fim, é importante que haja a predefinição de tais pontos controvertidos, devendo os árbitros estarem preparados para fazer perguntas que lhes permitam bem compreender as posições técnicas divergentes para, após, serem capazes de decidir com segurança as questões técnicas. Os peritos também poderão comentar as posições divergentes, cabendo ao tribunal conduzir as discussões, sendo capaz de identificar os pontos de convergência e compreender, ao final da sessão, as razões das divergências de modo que possa decidir o litígio com segurança.

Algumas vantagens dessa técnica são: (i) trazer maior clareza para o árbitro em relação a questões técnicas altamente sofisticadas, possibilitando identificar consensos entre as posições antagônicas; (ii) reduzir o viés do “perito da parte”; (iii) possibilitar uma discussão mais técnica; (iv) reduzir o tempo, evitando oitivas individuais repetitivas.

hot tubbing exige peritos qualificados e experientes e um tribunal arbitral ativo e que saiba bem conduzir os debates.

Em síntese, o árbitro que atua em arbitragens de construção deve ser capaz de identificar a matriz de risco do negócio contratado entre as partes de modo a aplicar as regras adequadas, além de se debruçar sobre as questões técnicas de forma aprofundada, conduzindo a prova pericial para que esta etapa tão relevante do procedimento contribua, de fato, para a solução da disputa.

_______

1 MARCONDES, Fernando. A evolução da arbitragem de construção no Brasil. Revista Brasileira de Arbitragem nº 82, abr-jun/2024.

2 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos N.; BANDEIRA, Paula G. Fundamentos do Direito Civil – a Contratos, Vol. 3 - 6ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2025. p. 311.

3 Código Civil, Art. 619: “Salvo estipulação em contrário, o empreiteiro que se incumbir de executar uma obra, segundo plano aceito por quem a encomendou, não terá direito a exigir acréscimo no preço, ainda que sejam introduzidas modificações no projeto, a não ser que estas resultem de instruções escritas do dono da obra.”

4 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos N.; BANDEIRA, Paula G. Op. Cit. p. 316.

5 Código Civil, Art. 619, parágrafo único: “Ainda que não tenha havido autorização escrita, o dono da obra é obrigado a pagar ao empreiteiro os aumentos e acréscimos, segundo o que for arbitrado, se, sempre presente à obra, por continuadas visitas, não podia ignorar o que se estava passando, e nunca protestou.”

6 Código Civil, Art. 620: “Se ocorrer diminuição no preço do material ou da mão-de-obra superior a um décimo do preço global convencionado, poderá este ser revisto, a pedido do dono da obra, para que se lhe assegure a diferença apurada.”

7 Código Civil, Art. 478: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”

8 Código Civil, Art. 625: “Poderá o empreiteiro suspender a obra:

(...)

II - quando, no decorrer dos serviços, se manifestarem dificuldades imprevisíveis de execução, resultantes de causas geológicas ou hídricas, ou outras semelhantes, de modo que torne a empreitada excessivamente onerosa, e o dono da obra se opuser ao reajuste do preço inerente ao projeto por ele elaborado, observados os preços;”

9 Código Civil, Art. 614: Se a obra constar de partes distintas, ou for de natureza das que se determinam por medida, o empreiteiro terá direito a que também se verifique por medida, ou segundo as partes em que se dividir, podendo exigir o pagamento da proporção da obra executada.

10 Código Civil, Art. 614, § 1º: “Tudo o que se pagou presume-se verificado.”

11 Código Civil, Art. 614, §2º: “O que se mediu presume-se verificado se, em trinta dias, a contar da medição, não forem denunciados os vícios ou defeitos pelo dono da obra ou por quem estiver incumbido da sua fiscalização.”

12 “Assim, na data da medição de cada etapa da obra nasce o prazo decadencial de trinta dias para o dono da obra exercer o direito potestativo de denunciar (reclamar) os vícios ou defeitos da coisa, sejam eles ocultos ou aparentes. Aqui é excepcionada a regra geral do art. 445 do próprio Código Civil acerca da contagem do prazo para a verificação dos vícios redibitórios.” FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. Vol. 4. Contratos – Teoria Geral e Contratos em Espécie. 5ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 850.

13 Isso sem falar nos contratos de infraestrutura para a construção de obras públicas, que são regulados pela Lei nº 14.133/2021, que prevê expressamente em seu art. 151 a possibilidade de adoção de “meios alternativos de prevenção e resolução de controvérsias, notadamente a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem.”

14 É o “E”, de Engineering.

15 É o “P”, de Procurement.

16 É o “C”, de Construction.

17 TEPEDINO, Gustavo; KONDER, Carlos N.; BANDEIRA, Paula G. Op. Cit. pp. 319.

Autor

Flavia Cristofaro Mestre em Direito Internacional - UERJ. Advogada e Árbitra. Sócia de BSBC Advogados. Membro da Comissão de Arbitragem da OAB/RJ.

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