Migalhas de Peso

A superação do dolo eventual e a reconstrução da imputação penal

Neste artigo, trata-se da superação do dolo eventual, propondo uma reconstrução da imputação penal com base em critérios significativos, mais claros e objetivos, que garantem maior segurança jurídica.

22/12/2025
Publicidade
Expandir publicidade

Chegamos ao ponto culminante desta série: propor a superação definitiva do dolo eventual como categoria válida no Direito Penal e consolidar uma alternativa teórica e prática que resgate a legitimidade da imputação penal a partir da linguagem comum e dos critérios verificáveis que lhe são inerentes. Tudo o que foi desenvolvido nos artigos anteriores, da crítica à linguagem privada à afirmação da gramática profunda da ação significativa, converge para uma única e clara conclusão: não há nada oculto nas condutas humanas que justifique a manutenção de ficções dogmáticas que distorcem o sentido da imputação.

A figura do dolo eventual, como amplamente demonstrado, é um erro conceitual sustentado por um equívoco gramatical e por uma prática dogmática que, ao longo das últimas décadas, preferiu ignorar os limites constitucionais da imputação penal para se render à subjetividade de juízos presuntivos sobre a “assunção do risco”. A jurisprudência e a doutrina, de modo geral, passaram a operar com expressões vazias como “contar com o resultado”, “indiferença do agente” ou “aceitação implícita do risco”, todas elas sem lastro objetivo, sem critérios, e sem correspondência real com os fundamentos do Estado de Direito.

Ao proceder dessa forma, o Direito Penal compromete sua própria função garantidora. A imputação deixa de ser um juízo técnico baseado em fatos e normas e passa a ser um exercício de interpretação subjetiva a partir de signos frágeis. A consequência mais grave é a insegurança jurídica, pois uma mesma conduta pode ser compreendida ora como dolosa, ora como imprudente, conforme a inclinação valorativa do julgador. Em suma, o dolo eventual se converteu numa espécie de caixa de Pandora dogmática, onde cabe tudo o que a lógica penal deveria recusar.

A teoria significativa da imputação propõe a superação desse modelo. Em seu lugar, oferece uma estrutura baseada em critérios significativos, extraídos da linguagem ordinária, da filosofia da linguagem e da teoria da ação. Esses critérios não são suposições sobre o que o agente pensou ou quis em seu íntimo, mas elementos objetivos e verificáveis a partir do comportamento humano observado no contexto social.

Dessa perspectiva, a imputação penal se reconstrói a partir de dois grandes grupos: as condutas dolosas e as condutas imprudentes. No primeiro caso, o critério essencial é a intenção significativa de lesar o bem jurídico, expressa por condutas que revelam decisão consciente de realizar o tipo penal. No segundo, a ausência dessa intenção não significa ausência de responsabilidade, mas exige uma gradação normativa baseada na previsibilidade e na aceitação do resultado.

Assim, a imprudência consciente é subdividida em três níveis:

  • Gravíssima, quando há certeza do resultado e ele é aceito;
  • Grave, quando o resultado é previsto e ignorado com indiferença;
  • Leve, quando o agente apenas prevê, mas não aceita nem se importa com o que possa ocorrer.

Essa classificação não é apenas uma alternativa técnica mais precisa. Ela representa uma nova ética da imputação penal: uma forma de respeitar o imputado como sujeito de direitos e não como objeto de presunções. Ao mesmo tempo, permite ao sistema penal operar com clareza, segurança e coerência, pois o juiz, em vez de tentar “entrar na cabeça do agente”, passa a verificar, por meio de critérios gramaticalmente consistentes, se os caracteres significativos do dolo ou da imprudência estão ou não presentes.

Outro avanço decisivo da teoria é o reconhecimento de que o dolo não é um gênero da imputação, mas uma espécie, assim como a imprudência. Esta última, por sua vez, se desdobra em modalidades conscientes e inconscientes. Essa distinção elimina a confusão tradicional entre dolo eventual e imprudência consciente, pois reconhece que a assunção de risco, por si só, jamais pode equivaler a uma vontade típica. O que deve ser analisado é a presença ou não de um querer significativo de lesar o bem jurídico, e isso só pode ser aferido com base em critérios externos.

Para isso, é essencial abandonar o paradigma mentalista e adotar o modelo dos jogos de linguagem. Como ensina Wittgenstein, nossas certezas não decorrem de acessos privilegiados ao interior do sujeito, mas da gramática das formas de vida. A certeza sobre o dolo ou a imprudência de alguém, portanto, só pode ser extraída daquilo que é visível, público, compartilhável. É na ação significativa, e não no interior do agente, que reside o fundamento da imputação.

A teoria significativa da imputação, assim, não é apenas uma crítica à doutrina tradicional. É um projeto de reconstrução. Ela oferece aos operadores do Direito Penal, juízes, promotores, advogados e professores, uma nova ferramenta, mais racional, mais justa e mais constitucional. Um modelo que não pretende resolver tudo por meio de fórmulas mágicas, mas que convida à análise cuidadosa da conduta humana a partir da linguagem que todos nós usamos desde a infância.

Encerrar a série com essa proposta não é fechar um ciclo, mas abrir um novo caminho. Um caminho onde a imputação penal deixa de ser um território nebuloso de interpretações voláteis e se torna, novamente, o que deve ser: um juízo técnico, criterioso e garantidor. Porque, afinal, como nos ensina Wittgenstein, não há nada oculto. Só precisamos aprender a ver com mais clareza aquilo que já está diante de nós: a linguagem da vida.

_______

Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).

Autor

Antonio Sanches Sólon Rudá Ph.D. student (Ciências Criminais na Fac de Dir da Universidade de Coimbra); Membro da Fundação Internacional de Ciências Penais; Advogado. Autor da Teoria Significativa da Imputação.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos