Chegamos ao ponto culminante desta série: propor a superação definitiva do dolo eventual como categoria válida no Direito Penal e consolidar uma alternativa teórica e prática que resgate a legitimidade da imputação penal a partir da linguagem comum e dos critérios verificáveis que lhe são inerentes. Tudo o que foi desenvolvido nos artigos anteriores, da crítica à linguagem privada à afirmação da gramática profunda da ação significativa, converge para uma única e clara conclusão: não há nada oculto nas condutas humanas que justifique a manutenção de ficções dogmáticas que distorcem o sentido da imputação.
A figura do dolo eventual, como amplamente demonstrado, é um erro conceitual sustentado por um equívoco gramatical e por uma prática dogmática que, ao longo das últimas décadas, preferiu ignorar os limites constitucionais da imputação penal para se render à subjetividade de juízos presuntivos sobre a “assunção do risco”. A jurisprudência e a doutrina, de modo geral, passaram a operar com expressões vazias como “contar com o resultado”, “indiferença do agente” ou “aceitação implícita do risco”, todas elas sem lastro objetivo, sem critérios, e sem correspondência real com os fundamentos do Estado de Direito.
Ao proceder dessa forma, o Direito Penal compromete sua própria função garantidora. A imputação deixa de ser um juízo técnico baseado em fatos e normas e passa a ser um exercício de interpretação subjetiva a partir de signos frágeis. A consequência mais grave é a insegurança jurídica, pois uma mesma conduta pode ser compreendida ora como dolosa, ora como imprudente, conforme a inclinação valorativa do julgador. Em suma, o dolo eventual se converteu numa espécie de caixa de Pandora dogmática, onde cabe tudo o que a lógica penal deveria recusar.
A teoria significativa da imputação propõe a superação desse modelo. Em seu lugar, oferece uma estrutura baseada em critérios significativos, extraídos da linguagem ordinária, da filosofia da linguagem e da teoria da ação. Esses critérios não são suposições sobre o que o agente pensou ou quis em seu íntimo, mas elementos objetivos e verificáveis a partir do comportamento humano observado no contexto social.
Dessa perspectiva, a imputação penal se reconstrói a partir de dois grandes grupos: as condutas dolosas e as condutas imprudentes. No primeiro caso, o critério essencial é a intenção significativa de lesar o bem jurídico, expressa por condutas que revelam decisão consciente de realizar o tipo penal. No segundo, a ausência dessa intenção não significa ausência de responsabilidade, mas exige uma gradação normativa baseada na previsibilidade e na aceitação do resultado.
Assim, a imprudência consciente é subdividida em três níveis:
- Gravíssima, quando há certeza do resultado e ele é aceito;
- Grave, quando o resultado é previsto e ignorado com indiferença;
- Leve, quando o agente apenas prevê, mas não aceita nem se importa com o que possa ocorrer.
Essa classificação não é apenas uma alternativa técnica mais precisa. Ela representa uma nova ética da imputação penal: uma forma de respeitar o imputado como sujeito de direitos e não como objeto de presunções. Ao mesmo tempo, permite ao sistema penal operar com clareza, segurança e coerência, pois o juiz, em vez de tentar “entrar na cabeça do agente”, passa a verificar, por meio de critérios gramaticalmente consistentes, se os caracteres significativos do dolo ou da imprudência estão ou não presentes.
Outro avanço decisivo da teoria é o reconhecimento de que o dolo não é um gênero da imputação, mas uma espécie, assim como a imprudência. Esta última, por sua vez, se desdobra em modalidades conscientes e inconscientes. Essa distinção elimina a confusão tradicional entre dolo eventual e imprudência consciente, pois reconhece que a assunção de risco, por si só, jamais pode equivaler a uma vontade típica. O que deve ser analisado é a presença ou não de um querer significativo de lesar o bem jurídico, e isso só pode ser aferido com base em critérios externos.
Para isso, é essencial abandonar o paradigma mentalista e adotar o modelo dos jogos de linguagem. Como ensina Wittgenstein, nossas certezas não decorrem de acessos privilegiados ao interior do sujeito, mas da gramática das formas de vida. A certeza sobre o dolo ou a imprudência de alguém, portanto, só pode ser extraída daquilo que é visível, público, compartilhável. É na ação significativa, e não no interior do agente, que reside o fundamento da imputação.
A teoria significativa da imputação, assim, não é apenas uma crítica à doutrina tradicional. É um projeto de reconstrução. Ela oferece aos operadores do Direito Penal, juízes, promotores, advogados e professores, uma nova ferramenta, mais racional, mais justa e mais constitucional. Um modelo que não pretende resolver tudo por meio de fórmulas mágicas, mas que convida à análise cuidadosa da conduta humana a partir da linguagem que todos nós usamos desde a infância.
Encerrar a série com essa proposta não é fechar um ciclo, mas abrir um novo caminho. Um caminho onde a imputação penal deixa de ser um território nebuloso de interpretações voláteis e se torna, novamente, o que deve ser: um juízo técnico, criterioso e garantidor. Porque, afinal, como nos ensina Wittgenstein, não há nada oculto. Só precisamos aprender a ver com mais clareza aquilo que já está diante de nós: a linguagem da vida.
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Este artigo se baseia no conteúdo desenvolvido em detalhes na obra Fundamentos de la teoría significativa de la imputación (Bosch, 2ª ed., 2025).