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Exercício ilegal da medicina e cirurgião-dentista: Crime inexistente

Uma análise sobre a imunidade penal do cirurgião-dentista e a futilidade das denúncias por exercício ilegal da medicina diante da soberania das leis federais.

23/12/2025
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A atipicidade penal do cirurgião-dentista na harmonização orofacial e cirurgias da face

1. Atipicidade e a soberania da lei federal 5.081/66

A pretensão punitiva estatal sob o art. 282 do CP, em face de cirurgiões-dentistas, revela gritante ausência de tipicidade. O Direito Penal, regido pela fragmentariedade, atua como ultima ratio. Na odontologia, os limites profissionais são definidos pela lei federal 5.081/66, norma de hierarquia superior que confere competência técnica baseada em conhecimento científico, e não em restrições anatômicas arbitrárias.

O art. 6º, I, da referida lei, é taxativo: compete ao dentista praticar todos os atos pertinentes à odontologia decorrentes de conhecimentos adquiridos em curso regular ou pós-graduação. Opera-se a tipicidade conglobante: o Estado não pode considerar típica uma conduta incentivada e autorizada por norma de Direito Público. Se o profissional atua amparado por pós-graduação reconhecida, exerce um direito previsto em lei federal. Inexistindo violação da norma de integração, falece o fato típico e a justa causa para a persecução.

2. A cláusula de exclusão na lei do ato médico (lei 12.842/13)

É alarmante a omissão deliberada, por entidades médicas denunciantes, do art. 4º, § 6º, da lei 12.842/13. O legislador foi categórico: "O disposto neste artigo não se aplica ao exercício da odontologia". Trata-se de cláusula de barreira intransponível que respeita a autonomia da lei 5.081/66.

Ocultar esse parágrafo em notícias-crime configura desinformação processual. Se a lei que define o ato médico exclui sua incidência sobre a odontologia, qualquer tentativa de enquadramento penal por "invasão de ato médico" é um contrassenso jurídico. A persistência nessas denúncias evidencia perseguição institucional e instrumentalização indevida do Estado.

3. Natureza do crime habitual e a inépcia por atos isolados 

A doutrina uníssona — de Nelson Hungria e Damásio de Jesus — classifica o art. 282 como crime habitual. A tipicidade reclama sucessão de atos que revelem rotina de usurpação. Atos isolados por cirurgiões-dentistas configuram o exercício da odontologia moderna, e não a mimetização da medicina. Sem prova de habitualidade delitiva e do animus de usurpar, a conduta é irrelevante penalmente, ferindo a reserva legal qualquer tentativa de criminalização.

4. Ausência de dolo e o erro de tipo essencial 

Sob a teoria do delito, o dolo exige consciência e vontade de "exceder limites". O dentista atua sob o amparo de normas do CFO, que detém presunção de legitimidade. Convicto de sua competência legal, o profissional opera em Erro de Tipo Essencial (Art. 20, CP). Inexistindo conhecimento da transgressão, o dolo é excluído. Como o art. 282 não admite modalidade culposa, a conduta é atípica. Punir a confiança nas normas autárquicas seria consagrar a responsabilidade penal objetiva, repelida pelos Tribunais Superiores.

5. Intervenção mínima e a lei de abuso de autoridade (lei 13.869/19) 

O conflito de competências entre "ato médico" e "ato odontológico" é tema de alta complexidade técnica, pendente de pacificação no STJ/STF, devendo ser dirimido na esfera cível-administrativa. O uso da máquina repressiva fere a ultima ratio. A persecução açodada pode transbordar para o campo do art. 27 da lei 13.869/19, que veda investigações sem indícios mínimos de crime. O Direito Penal não pode ser "longa manus" de associações para reserva de mercado.

6. Instrumentalização judiciária e Denunciação Caluniosa 

A "publicidade terrorista" induz o Judiciário a erro para proteger interesses econômicos. Essa estratégia gera a disfuncionalidade da máquina pública e o "processo como pena", destruindo a reputação do profissional. O Direito Penal possui antídotos: instaurar investigações omitindo a legalidade do ato profissional pode caracterizar Denunciação Caluniosa (art. 339, CP). É dever do Estado coibir a má-fé institucional daqueles que usam o aparelho estatal para perseguir competências legais de outrem.

7. Conclusão 

A criminalização de atos odontológicos amparados pela lei 5.081/66 e ressalvados pela lei 12.842/13 é um anacronismo dogmático. Primeiro, pela unidade do ordenamento: o Estado não pode punir o que autoriza. Segundo, pela barreira legal: a própria lei do ato médico exclui a odontologia de seu crivo. Terceiro, pela função do direito penal: disputas de mercado não possuem dignidade penal.

Impõe-se ao Judiciário e ao MP o dever de vigilância contra o uso da máquina pública para fins corporativistas. Onde a lei outorga a prerrogativa, o Direito Penal deve silenciar, sob pena de converter o Estado em instrumento de injustiça.

Autor

Lorran Serrano Lorran Serrano é palestrante, advogado especialista em Direito Odontológico e fundador do escritório Lorran Serrano Advogados Associados. Atua em todo o Brasil na defesa de cirurgiões-dentistas.

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