1. Introdução
A discussão acerca da imunidade tributária concedida às organizações do terceiro setor ocupa espaço crescente na literatura jurídica contemporânea, em razão do papel fundamental desempenhado por essas instituições na concretização de direitos fundamentais e na execução de atividades de interesse público. Segundo Machado (2022), a imunidade prevista no art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal tem por finalidade proteger atividades essenciais desenvolvidas por entidades sem fins lucrativos, garantindo-lhes condições materiais para o desempenho de suas funções sociais. Nesse contexto, compreender os limites, requisitos e implicações dessa imunidade revela-se elemento indispensável para a adequada compreensão do regime jurídico dessas organizações.
Além disso, como afirma Carrazza (2021), a imunidade tributária é instrumento de caráter eminentemente constitucional, que não se limita à condição de simples benefício fiscal, mas se configura como verdadeira garantia institucional, destinada a impedir que o Estado inviabilize, por meio da tributação, atividades privadas que realizam finalidades de relevância coletiva. Ao assegurar que instituições educacionais, assistenciais e de saúde possam atuar com menor carga fiscal, o constituinte buscou promover o equilíbrio entre o setor público e as iniciativas privadas voltadas à promoção social, reconhecendo o Terceiro Setor como colaborador do Estado na efetivação de políticas públicas.
Em complemento, Torres (2020) destaca que a análise jurídico-contábil da imunidade tributária permite compreender de que forma as obrigações formais, a transparência e a gestão adequada dos recursos influenciam diretamente no reconhecimento e na manutenção desse benefício constitucional. Dessa forma, o estudo do tema exige abordagem interdisciplinar que contemple, simultaneamente, o Direito Constitucional, o Direito Tributário e a Contabilidade aplicada ao terceiro setor, especialmente diante da complexidade dos mecanismos de controle e fiscalização estatais.
Nesse cenário, emerge a seguinte problemática que orienta a presente investigação: como a imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal é aplicada às organizações do terceiro setor, e quais desafios jurídicos e contábeis influenciam sua efetividade prática? Parte-se da hipótese de que a fruição dessa imunidade depende não apenas do atendimento formal aos requisitos constitucionais e legais, mas também da adoção de práticas contábeis transparentes e de governança institucional capazes de comprovar a finalidade não lucrativa e o interesse público das atividades desempenhadas.
Diante disso, justifica-se a presente pesquisa pela necessidade de aprofundar a compreensão dos fundamentos, limites e requisitos que condicionam a aplicação da imunidade tributária às organizações do terceiro setor, especialmente em um contexto de crescente expansão dessas entidades e de intensificação dos mecanismos de controle estatal. Assim, o objetivo deste trabalho consiste em analisar os aspectos jurídicos e contábeis relacionados à aplicação da imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal, examinando seus fundamentos constitucionais, seus requisitos normativos e seus impactos na gestão das entidades do terceiro setor.
Capítulo 1 - Fundamentos constitucionais da imunidade tributária no terceiro setor
A imunidade tributária prevista no art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal constitui um limite expresso ao poder de tributar, funcionando como garantia institucional destinada a preservar atividades essenciais desenvolvidas por entidades sem fins lucrativos. De acordo com Carrazza (2021), a imunidade é mecanismo criado para impedir que o Estado utilize a tributação como instrumento de asfixia econômica, especialmente em setores cuja atuação é complementar às políticas públicas. Nesse sentido, a compreensão constitucional dessa proteção é imprescindível para avaliar sua correta aplicação no contexto jurídico brasileiro.
Inicialmente, observa-se que o constituinte originário elevou determinadas atividades do terceiro setor à condição de interesse público constitucionalmente relevante, o que justificou sua inclusão no regime de imunidades. Como afirma Machado (2022), o objetivo dessa proteção não é privilegiar instituições privadas, mas assegurar condições para que elas desempenhem funções essenciais ligadas à educação, saúde e assistência social. Assim, a imunidade opera como instrumento de equilíbrio entre Estado e iniciativa privada atuante em áreas sensíveis.
Segundo Torres (2020), a imunidade tributária deve ser interpretada sistemicamente, levando em consideração o conjunto de direitos fundamentais que ela busca proteger. A atuação das entidades do terceiro setor está intimamente ligada à efetivação dos direitos sociais previstos no art. 6º da Constituição Federal, o que reforça a necessidade de se compreender a imunidade como ferramenta de concretização constitucional. Dessa forma, a norma imunizante integra o núcleo duro da ordem social.
Além disso, observa-se que a imunidade prevista no art. 150, VI, “c”, possui natureza objetiva, razão pela qual não depende de discricionariedade administrativa para sua aplicação. Conforme leciona Sabbag (2021), uma vez atendidos os requisitos constitucionais e legais, o ente tributante está impedido de exigir tributo, cabendo-lhe apenas verificar a adequação das condições impostas pela legislação infraconstitucional. Tal característica confere previsibilidade e segurança jurídica às entidades imunes.
Em complemento, Leandro Paulsen (2020) esclarece que a imunidade se distingue das isenções, pois decorre diretamente da Constituição e não pode ser suprimida por ato legislativo ordinário. Essa distinção é central para evitar confusões conceituais e para assegurar proteção adequada às instituições que atuam sem finalidade lucrativa. Assim, a natureza constitucional da imunidade reforça sua estabilidade no ordenamento jurídico.
Outra perspectiva relevante é apresentada por Ávila (2021), que destaca a função teleológica da imunidade tributária, cuja finalidade é evitar que tributos atrapalhem o desenvolvimento de atividades socialmente úteis. Para o autor, o sentido material da proteção constitucional deve prevalecer sobre interpretações restritivas que comprometam a realização de direitos fundamentais. Dessa forma, a imunidade assume caráter instrumental na promoção do bem-estar coletivo.
Por outra via, o estudo da imunidade tributária revela que sua correta aplicação demanda análise dos princípios constitucionais tributários, especialmente os da legalidade, isonomia e capacidade contributiva. Como aponta Greco (2019), a Constituição estabelece um sistema tributário baseado em limites ao poder estatal, e a imunidade do terceiro setor se insere nesse conjunto de garantias estruturantes. Assim, ela representa verdadeira limitação constitucional ao poder de tributar.
Também é importante reconhecer que a interpretação da imunidade tributária deve observar o princípio da solidariedade, que orienta a atuação do Estado e da sociedade na promoção de direitos fundamentais. Conforme argumenta Barroso (2020), a solidariedade aparece como princípio estrutural do Estado Social brasileiro, justificando mecanismos que viabilizem a atuação de entidades sem fins lucrativos que complementam a ação estatal. Nesse sentido, a imunidade possui fundamento ético-social.
Acrescenta-se ainda que, no campo doutrinário, há consenso de que as organizações do terceiro setor desempenham papel significativo na execução indireta de políticas públicas. Como explica Di Pietro (2021), a parceria entre Estado e entidades privadas sem fins lucrativos cria um modelo de cogestão social que amplia a capacidade administrativa estatal. Assim, a imunidade tributária funciona como incentivo constitucionalmente respaldado para fortalecer tais parcerias.
Outro ponto relevante diz respeito à interpretação histórica da norma imunizante. De acordo com Schoueri (2018), o constituinte buscou corrigir distorções históricas em que entidades filantrópicas enfrentavam excessiva carga tributária, o que comprometia sua capacidade de financiamento. A imunidade, portanto, surgiu como resposta a um cenário de insuficiência estatal e como reconhecimento da importância dessas organizações no desenvolvimento social.
Destaca-se que o STF tem papel fundamental na consolidação do entendimento acerca da imunidade tributária do terceiro setor, proferindo decisões que reforçam sua natureza protetiva e sua finalidade constitucional. Segundo Mendes e Branco (2020), a jurisprudência do STF tem priorizado a interpretação finalística da imunidade, assegurando às entidades o pleno exercício de suas atividades essenciais sem restrições indevidas por parte do Estado.
Outro aspecto essencial na análise da imunidade tributária diz respeito ao papel da Constituição como instrumento de limitação ao Estado, especialmente no âmbito fiscal. Como observa Bulos (2021), a Constituição opera como barreira normativa à atuação arbitrária do poder público, garantindo que sua atuação tributária seja compatível com os direitos fundamentais e com os valores estruturantes do Estado Democrático de Direito. Assim, a imunidade prevista no art. 150, VI, “c”, é expressão desse modelo constitucional de contenção.
Além disso, a compreensão da imunidade exige atenção à distinção entre entidades beneficentes e demais organizações sem fins lucrativos, especialmente após a edição da LC 187/21. Para Amaral (2022), essa lei redefiniu critérios relacionados à certificação das entidades beneficentes, tornando ainda mais rigoroso o controle estatal sobre o gozo da imunidade. Embora necessária para evitar desvios, a regulamentação também trouxe desafios interpretativos relevantes.
Convém lembrar que o regime jurídico do terceiro setor no Brasil se consolidou a partir de um processo histórico de descentralização das políticas sociais, no qual o Estado passou a reconhecer oficialmente o papel complementar desempenhado pelas entidades privadas sem fins lucrativos. Nesse sentido, conforme destaca Oliveira (2020), a imunidade tributária não se configura como privilégio, mas como mecanismo de fortalecimento institucional dessas organizações.
Por força dessa estrutura, torna-se evidente que a imunidade tributária deve ser compreendida dentro de um contexto de colaboração público-privada. Como discute Meirelles (2019), as entidades do terceiro setor desempenham atribuições que muitas vezes extrapolam o limite da atuação estatal, suprindo lacunas e ampliando a capacidade de atendimento à população. Logo, a imunidade fiscal representa ferramenta constitucional de suporte a essas ações.
É igualmente relevante notar que a doutrina contemporânea tem enfatizado a relevância do controle contábil e financeiro das organizações imunes. Segundo Vieira (2021), a transparência na gestão é condição indispensável para assegurar credibilidade e demonstrar que os recursos deixados de ser recolhidos ao Estado são efetivamente aplicados em suas finalidades institucionais. Dessa forma, o cumprimento das obrigações acessórias integra o conjunto de requisitos para a fruição plena da imunidade.
Em outra linha de análise, o estudo de Ribeiro (2018) reforça que a imunidade tributária deve ser interpretada como garantia voltada à promoção da justiça fiscal, uma vez que sua aplicação impede que entidades vocacionadas ao interesse público sofram restrições financeiras incompatíveis com suas finalidades. Assim, a imunidade não apenas limita o poder de tributar, mas também reafirma o compromisso do Estado com a proteção das iniciativas sociais.
Por seu turno, Ferraz (2019) ressalta que a eficiência administrativa das entidades imunes depende diretamente da previsibilidade jurídica conferida pelo regime constitucional. A existência de regras claras permite planejamento institucional adequado, evitando litígios desnecessários e possibilitando melhor alocação dos recursos financeiros. Nesse sentido, a imunidade tributária atua como instrumento de estabilidade.
Ainda, é necessário sublinhar que a imunidade tributária possui caráter interpretativo restritivo, mas finalisticamente ampliativo, segundo entendimento consolidado pela jurisprudência. Como explica Costa (2020), o intérprete deve equilibrar rigor técnico e sensibilidade constitucional, garantindo que a proteção prevista pelo legislador constituinte não seja reduzida por interpretações burocráticas que contrariem sua finalidade social.
Também vale mencionar que a doutrina constitucionalista reconhece a imunidade como mecanismo que reforça o pluralismo social, princípio estruturante do Estado Democrático de Direito. De acordo com Sarlet (2021), a Constituição incentiva múltiplos atores sociais a atuarem na promoção de direitos fundamentais, e a imunidade tributária se insere exatamente nesse cenário de pluralidade institucional. Portanto, sua função extrapola a dimensão fiscal.
A análise dogmática da imunidade tributária evidencia que sua existência decorre de uma concepção solidária de Estado, que reconhece o valor público das atividades desenvolvidas por entidades sem fins lucrativos. Para Moraes (2021), a Constituição de 1988 adota modelo cooperativo em que a iniciativa privada pode assumir protagonismo em ações sociais, e a imunidade fiscal garante as bases para essa cooperação. Dessa forma, o instituto se revela essencial à conformação constitucional da ordem social brasileira.
Aprofundando a análise, observa-se que a jurisprudência do STF tem desempenhado papel fundamental na consolidação do alcance da imunidade tributária. De acordo com Mendes e Branco (2020), o STF tem reiterado que a imunidade prevista no art. 150, VI, “c”, deve ser interpretada de forma finalística, considerando o impacto social das instituições beneficiadas e evitando interpretações restritivas que inviabilizem sua atuação.
Em outra direção, estudiosos defendem que a imunidade tributária deve ser analisada a partir do princípio da proporcionalidade, especialmente quando se discute a necessidade de comprovação dos requisitos legais pelas entidades imunes. Como afirma Barcellos (2021), a razoabilidade deve orientar a atuação fiscalizatória estatal, de modo a evitar exigências que extrapolem os limites constitucionais e comprometam o funcionamento das organizações do terceiro setor.
A doutrina reforça que a imunidade deve estar em sintonia com o princípio da eficiência, previsto no art. 37 da Constituição Federal. Conforme destaca Di Pietro (2021), as entidades sem fins lucrativos cumprem papel descentralizador e inovador na prestação dos serviços sociais, o que demanda um ambiente normativo estável e juridicamente seguro. Por isso, a imunidade fiscal deve ser compreendida como um pilar estruturante dessa atuação.
Carrazza (2021, p. 118) sintetiza a importância constitucional da imunidade tributária ao afirmar:
“A imunidade não é uma liberalidade estatal, tampouco uma benesse concedida às entidades privadas. Trata-se de verdadeira garantia institucional destinada a impedir que o Estado, por meio de sua atividade tributária, dificulte ou inviabilize o exercício de atividades essenciais à sociedade, especialmente aquelas desenvolvidas por instituições sem fins lucrativos e voltadas ao interesse público.”
Na perspectiva comparada, verifica-se que diversos países adotam regimes fiscais similares ao brasileiro, reconhecendo o valor público das entidades do terceiro setor. Segundo James (2022), a desoneração tributária aplicada a organizações sem fins lucrativos constitui prática consolidada em democracias constitucionais, porque fortalece a participação social e amplia a oferta de serviços públicos não estatais.
Outro elemento relevante no estudo da imunidade tributária é a necessidade de controle do desvio de finalidade. Como observa Tavares (2020), a proteção constitucional só alcança entidades que comprovem, de forma clara e auditável, que suas atividades são efetivamente dirigidas a finalidades essenciais, sendo vedado qualquer tipo de distribuição de resultados a particulares. Esse controle é indispensável para a legitimidade da imunidade.
Além disso, os debates doutrinários sobre a extensão da imunidade às atividades meio das entidades imunes são recorrentes. Conforme explica Schoueri (2018), desde que as atividades acessórias estejam diretamente vinculadas à finalidade institucional, não há razão jurídica para excluir tais operações do alcance da imunidade, posição que também tem sido acolhida pela jurisprudência do STF.
Por outro lado, a atuação fazendária deve respeitar o caráter constitucional da imunidade, abstendo-se de formular interpretações restritivas que comprometam sua eficácia. Segundo Torres (2020), o Estado deve exercer sua função fiscalizatória sem descaracterizar o sentido protetivo da norma constitucional, preservando o equilíbrio entre interesse arrecadatório e proteção institucional.
Paulsen (2020, p. 231) reforça essa ideia ao afirmar:
“As imunidades tributárias são limites objetivos ao poder de tributar, inscritos diretamente no texto constitucional. Não se sujeitam a condicionamentos incompatíveis com sua natureza, tampouco podem ser restringidas por exigências administrativas que extrapolem o que o constituinte expressamente determinou. A função das imunidades é resguardar atividades essenciais, e não permitir ingerências burocráticas que as fragilizem.”
Evidencia-se que a imunidade tributária do terceiro setor deve ser analisada como parte de uma arquitetura constitucional mais ampla, voltada à proteção das entidades que colaboram com o Estado na concretização dos direitos fundamentais. Conforme sintetiza Moraes (2021), a proteção imunizante integra o regime jurídico das organizações sociais e garante sua estabilidade institucional.
Observa-se que o estudo dos fundamentos constitucionais da imunidade tributária revela a necessidade de interpretação harmônica entre princípios, jurisprudência e legislação complementar. Para Ferraz (2019), o caráter multifacetado da imunidade exige abordagem integrada, que considere aspectos constitucionais, administrativos e contábeis. Assim, encerra-se este capítulo demonstrando que a imunidade tributária constitui instrumento indispensável à sustentabilidade e ao fortalecimento das organizações do terceiro setor no Brasil.
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