Nos primeiros anos da República norte-americana, entre 1796 e 1805, o jovem país assistiu a uma disputa institucional que mudaria para sempre o modo como o mundo compreenderia as tensões entre os Poderes. John Adams, segundo presidente dos Estados Unidos, e Thomas Jefferson, seu sucessor e adversário político, travaram embates que ultrapassaram a arena eleitoral e alcançaram diretamente a Suprema Corte. Nesse ambiente ainda experimental, no qual a separação de poderes era mais uma promessa filosófica do que uma prática consolidada, a Corte já se tornava palco de disputas que definiriam a própria natureza do constitucionalismo moderno.
O episódio dos chamados midnight judges, em 1801, ilustra esse processo histórico com rara precisão. Derrotado nas urnas, Adams aproveitou as últimas horas de seu mandato para preencher cargos judiciais recém-criados, numa tentativa de preservar sua visão federalista no Judiciário. Jefferson, ao assumir, enxergou na manobra uma tentativa de congelamento ideológico e procurou desmontar o que considerava uma “armadilha” institucional criada pelo governo anterior. A tensão não era trivial, pois dizia respeito à própria composição de um Poder que deveria ser o guardião da Constituição. A disputa se intensificou até desembocar na célebre decisão Marbury v. Madison (1803), redigida por John Marshall, também nomeado por Adams.
Marshall realizou ali uma operação intelectual e institucional notável. Afirmou o poder de revisão judicial — lançando as bases do judicial review —, mas simultaneamente evita um confronto direto com o Executivo, que possivelmente ignoraria uma ordem judicial à época. A decisão, ao mesmo tempo incisiva e prudente, consolidou o Judiciário como poder independente e demonstrou que tensões bem administradas não destroem democracias. A figura do “juiz incômodo”, representada por Marshall, evidencia que a vitalidade constitucional depende de magistrados capazes de contrariar expectativas políticas sem romper o tecido institucional.
Ao observar esse início republicano, torna-se evidente que disputas entre Poderes nunca foram sintomas de colapso institucional, mas parte orgânica do funcionamento constitucional. O arranjo norte-americano incorporou tensões desde o berço, não por falha, mas por design. Hamilton, no Federalista n.º 78, já antecipava que o Judiciário seria o “menos perigoso” dos Poderes, justamente por não dispor de força nem vontade própria, apenas de julgamento. Mas advertia que esse julgamento, quando exercido no controle horizontal, naturalmente geraria desconfortos. O juiz que decide contra a maioria, contra a conjuntura ou contra a preferência de um governo será sempre visto como obstáculo — e é exatamente esse incômodo que preserva a Constituição.
No Brasil, país de alta pluralidade social e baixa continuidade institucional, esse tipo de tensão ainda é frequentemente interpretado como desordem. A sociedade e parte das lideranças políticas associam divergências entre os Poderes a crises profundas, como se o funcionamento ideal fosse um sistema sem atritos. A experiência histórica revela outra realidade. As Constituições não foram feitas para eliminar conflitos, mas para canalizá-los de forma civilizada. Quando bem administradas, tensões produzem aperfeiçoamento institucional, não ruptura.
A atuação contemporânea da Suprema Corte brasileira se insere exatamente nesse desenho. Com o passar do tempo, o Judiciário passou a exercer o papel de superação de divergências que o Legislativo e o Executivo, por razões políticas, estruturais ou conjunturais, não conseguiram resolver. Direitos fundamentais, crises éticas-políticas, estabilização de políticas públicas e limites da ação estatal migraram para a arena judicial porque os demais Poderes deixaram lacunas decisórias. Esse deslocamento — longe de ser um fenômeno tipicamente brasileiro — é observado em democracias consolidadas. Quando o debate político não alcança a maturidade necessária para formular sínteses, o Judiciário é provocado a agir. E, ao agir, torna-se alvo das expectativas e críticas que emergem da polarização social.
É nesse ambiente que a figura do “juiz incômodo” volta a ganhar centralidade. O ministro que decide questões sensíveis, que contraria forças momentâneas ou que aplica a Constituição em contextos de alta tensão política, inevitavelmente se torna símbolo — ora de resistência democrática, ora de desconfiança ideológica. Mas esse é o destino natural de quem exerce controle horizontal em sociedades polarizadas. Decisões judiciais passam a ser interpretadas como movimentos partidários, e não como exercícios de jurisdição constitucional. A radicalização transforma ministros em personagens, e não em intérpretes. Esse fenômeno distorce o papel institucional da Corte, que deixa de ser vista como mediadora e passa a ser vista como protagonista de disputas políticas.
O Brasil vive hoje esse dilema. Ao mesmo tempo em que a Suprema Corte exerce uma função estabilizadora, é acusada de interferência política; ao mesmo tempo em que protege direitos fundamentais, é interpretada como alinhada a determinados grupos; ao mesmo tempo em que garante freios e contrapesos, é vista como contrária à vontade popular. A polarização — quase radicalização — alimenta essa narrativa. A Corte não é analisada pelo conteúdo jurídico das decisões, mas pela impressão política que provocam. Isso gera um ambiente em que sua legitimidade é contestada por percepções imediatistas, e não por argumentos constitucionais.
Contudo, assim como nos tempos de Adams e Jefferson, é preciso compreender que a legitimidade da Suprema Corte não nasce da ausência de conflitos, mas da capacidade de administrá-los. Ministros são escolhidos pelo presidente da República, aprovados pelo Senado e investidos para exercer, com independência e estabilidade, o papel de guardiões constitucionais. Há, portanto, uma legitimidade política de origem e uma legitimidade jurídica de atuação — ambas indispensáveis para que possam ocupar posições incômodas quando necessário. O desconforto que produzem não é defeito, mas um mecanismo que impede que maiorias circunstanciais rompam limites constitucionais.
O episódio recente envolvendo o ministro Gilmar Mendes se insere nesse panorama histórico mais amplo. Ele não inaugura tensões entre os Poderes; apenas revela, mais uma vez, que democracias constitucionais dependem de atritos bem administrados. Assim como Marshall e Jefferson, os Poderes precisam visualizar espaços de diálogos constitucionais, em que cada agente político compreenda seu papel constitucional e isso, naturalmente, passa, também, pela autocontenção dos ministros da Corte Suprema.
A separação dos poderes é um dos principais filtros constitucionais no que fiz respeito às tensões institucionais, a evitar um choque estrutural insustentável, apesar da linha tênue de interpretação. O Brasil assiste hoje a debates que revelam a dificuldade de lidar com divergências organizacionais.
Mas é preciso maturidade para lhe dar com os Poderes. Daí que o princípio da justeza, correção funcional ou conformidade funcional não permite que a interpretação da norma constitucional possa chegar a um resultado que subverta ou perturbe o esquema organizatório-funcional constitucionalmente estabelecido.
Uma perspectiva mais “madura" da norma constitucional seria chegarmos à separação e diálogo entre os poderes.
A história revela que a paz institucional não nasce da ausência de tensões, mas da capacidade de convertê-las em estabilidade por meio de boa administração. De 1801 até os debates contemporâneos do STF e das Constituições brasileiras, o fio que une Jefferson, Adams e nossos próprios desafios permanece evidente, rogando por democracias sólidas que não suprimem o conflito, mas lhe dão forma constitucional. E, quando seus juízes exercem o controle horizontal com firmeza e prudência, o incômodo que produzem deve permanecer dentro dos limites de sua função, evitando incursões em esferas próprias de outros Poderes. Nos cenários cinzentos, é na Constituição que se encontra não apenas a separação, mas também o necessário diálogo entre os Poderes.