"Quando um juiz se deixa levar pela cólera ou por qualquer outra paixão, sua sentença recebe necessariamente a marca disto" - Aristóteles
Vez ou outra, o mundo jurídico se depara com sentenças "fora do script".
Recentemente, Migalhas noticiou decisão de um magistrado que encerrou o documento listando títulos conquistados pelo Flamengo, em um processo que não guardava qualquer relação com o esporte.
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Além da homenagem ao time do coração, o magistrado também recorreu a passagens bíblicas para justificar a autoridade estatal:
"Porque os magistrados não são para temor, quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela, visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem."
O episódio citando religião não foi isolado.
O mesmo juiz provocou controvérsia ao recorrer a referências religiosas e a uma linguagem simbólica incomum em outra sentença, no âmbito de ação de indenização por acidente de trânsito.
Ao abrir a decisão com extensa passagem da Carta aos Romanos, sobre a origem divina da autoridade, o juiz atribuiu à magistratura um papel diretamente associado a um desígnio superior.
"Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores; porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituída."
O trecho prossegue afirmando que a autoridade seria "ministro de Deus para teu bem" e que aqueles que resistem à autoridade estariam resistindo à "ordenação de Deus".
O processo não tinha qualquer relação com religião. Nele, um motociclista pleiteava indenização por danos materiais, morais e estéticos em razão de colisão causada por motorista que teria avançado a via preferencial. A ação foi proposta contra o condutor do veículo e contra a seguradora.
Ao analisar o conjunto probatório, o magistrado concluiu que o réu agiu de forma imprudente, ao realizar manobra de conversão sem observar o tráfego da avenida preferencial, reconhecendo a culpa exclusiva do motorista pelo acidente.
- Processo: 0008683-48.2021.8.16.0170
Veja a sentença.
Elementos "desviantes"
O uso de elementos considerados "desviantes" - como futebol, religião, memes ou opiniões pessoais - em decisões judiciais já foi registrado em outros episódios ao longo dos anos e, em alguns casos, motivou a atuação de corregedorias.
Futebol
Em 2012, na comarca de Cachoeiras de Macacu/RJ, o juiz de Direito André Luiz Nicolitt condenou a Sky ao pagamento de R$ 2 mil a um consumidor pela interrupção da transmissão de jogos do Brasileirão.
Flamenguista declarado, o magistrado escreveu que o dano moral era "atenuado" porque o autor pretendia assistir a uma partida do Vasco, clube que, segundo ele, já havia frequentado "a segunda ou terceira divisão".
Na sentença, Nicolitt ainda ironizou outros clubes:
"Se fosse o Fluminense, por ter jogado a terceira, valor ínfimo; o Vasco e Botafogo, por terem jogado a segundona, um pouco maior; já o glorioso Clube de Regatas do Flamengo, que jamais frequentou ou frequentará tais submundos, o dano seria expressivo."
No mesmo ano, o juiz do Trabalho Márcio Alexandre da Silva, da 2ª vara do Trabalho de Campo Grande/MS, abriu uma audiência prestando homenagem ao Corinthians pela conquista da Libertadores de 2012.
O magistrado citou jogadores e determinou o envio de ofício ao presidente do clube comunicando o gesto.
A repercussão levou o TRT da 24ª região a emitir nota oficial, afirmando que se tratava de "opinião pessoal" e que a corregedoria avaliaria eventuais providências.
Já em 2021, após o São Paulo vencer o Campeonato Paulista, o juiz do Trabalho Diego Petacci citou trechos do hino do clube em uma ata de audiência e participou da sessão por videoconferência vestindo a camisa tricolor.
O episódio resultou na abertura de processo administrativo disciplinar, cujo relator apontou "falta de decoro" e sugeriu a aplicação de pena de censura.
Meme
Outro exemplo ocorreu na Justiça Federal. Em despacho proferido em ação de desapropriação, a juíza Federal substituta Karina Dusse, da 1ª vara Federal de Volta Redonda/RJ, utilizou o meme do Homem-Aranha apontando para si mesmo para ilustrar uma confusão no envio de ofícios entre varas.
Limites da linguagem
Como visto, não são raros os casos em que magistrados utilizam o espaço da fundamentação não apenas para aplicar o Direito, mas também para expressar convicções pessoais, referências culturais ou visões de mundo.
Trata-se, porém, de uma linha tênue: entre o estilo e o excesso; entre o cuidado com a linguagem e o transbordamento do papel institucional. Humano, o juiz pode desejar conferir certo verniz retórico à decisão - seja para torná-la mais acessível, seja para imprimir traços de humanidade à judicatura.
Ainda assim, os limites éticos e institucionais desse exercício permanecem objeto de permanente debate, sobretudo quando a sentença se afasta do caso concreto e da fundamentação estritamente jurídica.