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Civil em pauta

Questões práticas cotidianas do Direito Civil, com precedentes recentes, teorias novas e teses úteis.

Flávio Tartuce e Carlos Eduardo Elias de Oliveira
1. Introdução Neste artigo, trataremos da adoção intuitu personae, adoção dirigida ou adoção direta. Embora ela seja nula, o fato é que seu feito prático (o vínculo jurídico de filiação) é mantido por outro fundamento em muitas situações. Trata-se de aplicação da substituição do fundamento de ato de vontade, uma das formas de aplicação do princípio da conservação do ato jurídico1.  2. Cabimento  A adoção intuitu personae, adoção dirigida ou adoção direta dá-se quando os adotantes são escolhidos diretamente pelos anteriores pais, sem respeitar a fila do cadastro de adoção. É dita "adoção intuitu personae", porque os adotantes são escolhidos diretamente pelos pais. Lembra-se que, em regra, a adoção intuitu personae é vedada, porque é preciso seguir a ordem do cadastro de adoção (art. 50, ECA). Quando ocorre fora dos casos legais, ela também é chamada de "adoção à brasileira", porque envolve um "jeitinho" de burlar as regras formais de adoção. Adoção à brasileira é um ato ilegal de alguém que, mentindo, reconhece um filho alheio com a prática dos pertinentes atos registrais. Cuida-se de informalidade destinada a contornar as "burocracias" próprias do procedimento legal de adoção.  Há, porém, hipóteses legais de dispensa de observância da fila do cadastro de adoção, hipóteses essas que se costuma chamar apenas de adoção intuitu personae ou dirigida, e não de "adoção à brasileira" por conta da ideia de irregularidade própria desta última. As principais hipóteses legais estão § 13 do art. 50 do ECA2, que dispensa o cadastro de adoção em alguns casos. Outra hipótese legal é na adoção internacional quando o Brasil será o país de destino da criança estrangeira a ser adotada e quando o procedimento de adoção tiver de ocorrer no Brasil, conforme art. 52-D do ECA3. A doutrina e a jurisprudência também tendem a admitir a adoção intuitu personae quando, no caso concreto, isso se revelar compatível com o melhor interesse da criança. A ideia é a de que a ordem do cadastro de adoção não é absoluta. Trata-se, porém, de situações excepcionalíssimas. Geralmente os casos concretos que se encaixam em um dos seguintes grupos: (1) de adoções unilaterais informal, sem formalização judicial; ou (2) os de adoções intuitu personae acompanhada de longo tempo de convivência da criança com os adotantes. Esses dois casos são, inicialmente, irregulares; são adoções à brasileira. Todavia, por conta do contexto, podem vir a ser tolerados juridicamente. Em relação à primeira hipótese (adoções unilaterais informal), é comum a adoção à brasileira em situações em situação de mães solteiras que conhecem um novo amor. Esse novo amor, em muitas hipóteses, declara falsamente ser o pai biológico e obtém o registro civil. A rigor, trata-se de ato que configura crime (art. 242, Código Penal4). Lembramos que estamos a tratar da adoção unilateral informal. É que a adoção unilateral formal é plenamente lícita, ocorrida mediante decisão judicial. Em relação à segunda hipótese, essa prática acontece fora do contexto de novos relacionamentos. É o caso de uma mãe gestante que, logo após o parto, entrega o filho para os "adotantes".  Nesses casos, o "pai adotante" mente ao Cartório, registra o filho como próprio e assume, de fato, a guarda da criança com sua esposa. Essa esposa (pretensa "mãe adotante") nem sempre consegue o registro, pois a gestante acaba figurando no registro pelo fato de a Declaração de Nascido Vivo ser expedida pela maternidade indicando-a como a parturiente, o que é levado em conta no Cartório. Essa situação de irregularidade costuma persistir até que, anos depois, o casal adotante tenta alguma forma de inserir a "mãe adotante" no registro público e eventualmente retirar o nome da mãe biológica do registro. Em princípio, os dois tipos de adoções à brasileira acima são nulos. Todavia, caso, após esse ato, seja verificada a formação de um vínculo socioafetivo de filiação, o registro público pode vir a ser mantido incólume por esse outro fundamento (substituição do fundamento de ato de vontade5). A filiação é mantida não por conta do ato ilícito, e sim por causa da socioafetividade e do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Em casos de adoções unilaterais informais (ex.: padrasto registrado como pai), a jurisprudência tende a negar que o pai adotivo tente anular posteriormente o registro (o que costuma ser feito quando ele vem a divorciar-se da mãe biológica e pretende esquivar-se de pagar pensão alimentícia ao filho). Um dos principais argumentos é o de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza. Em outros casos de adoções intuitu personae (ex.: entrega da criança a um casal), a jurisprudência tende a tolerar a manter a situação se já tiver sido consolidada no tempo. Afinal de contas, os danos seriam muito maiores para a criança, se esta fosse retirada do seio da família adotiva para ser submetida à fila do cadastro de adoção e ficar em acolhimento institucional ("abrigos"). O princípio do melhor interesse da criança prevalece no caso concreto. Veja, por exemplo, estes julgados:  CIVIL. HABEAS CORPUS. FAMÍLIA. AÇÃO DE GUARDA DE MENOR. POSSÍVEL ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. WRIT UTILIZADO COMO SUCEDÂNEO DE RECURSO ORDINÁRIO. NÃO CABIMENTO. PRECEDENTES. EXAME DA POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. DETERMINAÇÃO JUDICIAL DE ACOLHIMENTO DE CRIANÇA DE TENRA IDADE EM VIRTUDE DE BURLA AO CADASTRO DO SISTEMA NACIONAL DE ADOÇÃO E DE INOBSERVÂNCIA DO RITO DE ADOÇÃO. INEXISTÊNCIA DE INDÍCIOS DE RISCO À INTEGRIDADE FÍSICA E PSÍQUICA DO INFANTE SOB OS CUIDADOS DA FAMÍLIA ACOLHEDORA HÁ MAIS DE 1 (UM) ANO E 7 (SETE) MESES. CADASTRO DE ADOTANTES DEVE SER SOPESADO COM O PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. FORMAÇÃO DE SUFICIENTE VÍNCULO AFETIVO ENTRE O INFANTE E A FAMÍLIA SUBSTITUTA. PRIMAZIA DO ACOLHIMENTO FAMILIAR EM DETRIMENTO DA COLOCAÇÃO EM ABRIGO INSTITUCIONAL. PRECEDENTES DO STJ. ILEGALIDADE DO ACÓRDÃO DE ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA DE OFÍCIO, EXCEPCIONALMENTE, CONFIRMANDO A LIMINAR JÁ DEFERIDA. 1. Não é admissível a utilização de habeas corpus como sucedâneo ou substitutivo do cabível recurso ordinário. Possibilidade excepcional de concessão da ordem de ofício. Precedentes. 2. Por expressa previsão constitucional e infraconstitucional, as crianças e os adolescentes têm o direito de ver assegurado pelo Estado e pela sociedade o atendimento prioritário do seu melhor interesse e garantida suas proteções integrais, devendo tais premissas orientar o seu aplicador, principalmente, nas situações que envolvam abrigamento institucional. 3. A jurisprudência desta Eg. Corte Superior, em observância a tal princípio, consolidou-se no sentido da primazia do acolhimento familiar em detrimento da colocação de menor em abrigo institucional, salvo quando houver evidente risco concreto à sua integridade física e psíquica, de modo a se preservar os laços afetivos eventualmente configurados com a família substituta. Precedentes. 4. A ordem cronológica de preferência das pessoas previamente cadastradas para adoção não tem um caráter absoluto, devendo ceder ao lema do melhor interesse da criança ou do adolescente, razão de ser de todo o sistema de defesa erigido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, que tem na doutrina da proteção integral sua pedra basilar (HC nº 468.691/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Quarta Turma, DJe de 11/3/2019). 5. Ordem de habeas corpus, excepcionalmente, concedida de ofício, confirmando a liminar já deferida. (HC n. 878.386/ES, relator Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 2/4/2024, DJe de 11/4/2024.)  HABEAS CORPUS. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE (ECA). MEDIDA DE PROTEÇÃO. BUSCA E APREENSÃO DE MENOR. SUSPEITA DE ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. ENTREGA DA CRIANÇA PELA MÃE AOS PAIS REGISTRAIS DESDE O NASCIMENTO. "ADOÇÃO À BRASILEIRA". MEDIDA PROTETIVA EXCEPCIONAL. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL. OFENSA AO MELHOR INTERESSE DO MENOR. ORDEM CONCEDIDA. 1. É pacífico o entendimento desta Corte no sentido de permitir, em situações excepcionais, a superação do óbice da Súmula 691 do STF em casos de flagrante ilegalidade ou quando indispensável para garantir a efetividade da prestação jurisdicional. 2. O Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA, ao preconizar a doutrina da proteção integral e prioritária do menor, torna imperativa a observância do melhor interesse da criança. 3. Esta Corte Superior tem entendimento assente de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional em detrimento do familiar. 4. Nessa senda, o afastamento da medida protetiva de busca e apreensão atende ao princípio do melhor interesse da criança, porquanto, neste momento, o maior benefício à menor é mantê-la com os pais registrais, até ulterior julgamento definitivo da ação principal. 5. Ordem de habeas corpus concedida, com liminar confirmada. (HC n. 597.554/PR, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 24/11/2020, DJe de 2/12/20206)  HABEAS CORPUS. LIMINAR. MENOR. ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E MEDIDA PROTETIVA. AÇÃO DE DESTITUIÇÃO DE PODER FAMILIAR CUMULADA COM ANULAÇÃO DE REGISTRO DE NASCIMENTO. SUSPEITA DE ADOÇÃO INTUITU PERSONAE. ENTREGA DA CRIANÇA PELA MÃE AO PAI REGISTRAL DESDE O NASCIMENTO. PATERNIDADE BIOLÓGICA AFASTADA. MENOR PORTADOR DE GRAVES PROBLEMAS DE SAÚDE. INTERNAÇÃO HOSPITALAR. PREVALÊNCIA DO MELHOR INTERESSE DO MENOR. MEDIDA LIMINAR DEFERIDA. 1. Esta Corte Superior tem entendimento assente de que, salvo evidente risco à integridade física ou psíquica do menor, não é de seu melhor interesse o acolhimento institucional em detrimento daquele em família substituta. Precedentes. 2. Na hipótese, o afastamento liminar da determinação de acolhimento institucional aparenta melhor atender ao princípio da prevalência do interesse da criança, porquanto, neste momento, o estado de saúde do menor inspira cuidados e mantê-lo sob as atenções e desvelos personalizados e individualizados proporcionados pela família substituta se mostra preferível, ao menos até o julgamento definitivo da ação principal, diante da necessidade de acompanhamento médico constante, de duvidoso alcance na via institucional. 3. Medida liminar deferida. (HC n. 683.962/SP, relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 10/8/2021, DJe de 18/8/2021.)  A propósito, o STJ, apesar de reconhecer a ilegalidade da adoção à brasileira, entendeu que o Ministério Público (MP) não teria interesse processual para pleitear indenização por dano moral coletivo contra um casal que havia tentado realizar a adoção intuitu personae. Entendeu que o caminho de punir o casal com a indenização por dano moral coletivo não era útil processualmente, até porque a adoção intuitu personae, apesar de ser ilegal e de não dever ser incentivada, acaba sendo uma realidade social (STJ, REsp 2.126.256/SC, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe de 10/6/2024). Consideramos incensurável a jurisprudência, porque, no final das contas, as regras de Direito da Criança e do Adolescente não é um fim em si mesmo. Elas servem aos mirins, e não o contrário. Portanto, se, no caso concreto, uma situação irregular vier a ser mais adequada ao bem-estar do pequeno, não há o que fazer senão curvar-se ao verdadeiro senhor do Direito da Criança e do Adolescente: o princípio do melhor interesse do mirim. Deve-se, porém, evidentemente sempre evitar irregularidades e prestigiar a fila do cadastro de adoção. Mas, infelizmente, a informalidade é uma realidade contra a qual o Direito nem sempre consegue vitórias. __________ 1 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2025, p. 309. 2 Art. 50, § 13, ECA.  Somente poderá ser deferida adoção em favor de candidato domiciliado no Brasil não cadastrado previamente nos termos desta Lei quando:  I - se tratar de pedido de adoção unilateral;  II - for formulada por parente com o qual a criança ou adolescente mantenha vínculos de afinidade e afetividade;  III - oriundo o pedido de quem detém a tutela ou guarda legal de criança maior de 3 (três) anos ou adolescente, desde que o lapso de tempo de convivência comprove a fixação de laços de afinidade e afetividade, e não seja constatada a ocorrência de má-fé ou qualquer das situações previstas nos arts. 237 ou 238 desta Lei.  § 14.  Nas hipóteses previstas no § 13 deste artigo, o candidato deverá comprovar, no curso do procedimento, que preenche os requisitos necessários à adoção, conforme previsto nesta lei.  3 Art. 52-D.  Nas adoções internacionais, quando o Brasil for o país de acolhida e a adoção não tenha sido deferida no país de origem porque a sua legislação a delega ao país de acolhida, ou, ainda, na hipótese de, mesmo com decisão, a criança ou o adolescente ser oriundo de país que não tenha aderido à Convenção referida, o processo de adoção seguirá as regras da adoção nacional.  4 Parto suposto. Supressão ou alteração de direito inerente ao estado civil de recém-nascido Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981) Pena - reclusão, de dois a seis anos. (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981) Parágrafo único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza: (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981) Pena - detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena. (Redação dada pela Lei nº 6.898, de 1981) 5 OLIVEIRA, Carlos E. Elias de; COSTA-NETO, João. Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense/Método, 2025, p. 309. 6 Segue excerto do voto do relator detalhando o caso concreto: Na hipótese, noticiam os autos que a menor J V O N é uma bebê de origem paraguaia, que foi acompanhada desde a gestação pelo casal J.O. e R.N.S. e entregue a eles pela sua mãe biológica logo após seu nascimento, os quais registraram-na como filha ainda no consulado brasileiro, em Salto Del Guairá - Paraguai (fls. 53-54), e ratificaram o registro no Brasil (fl. 181). O Ministério Público do Estado do Paraná ajuizou medida protetiva e busca e apreensão, alegando que, em razão de denúncia anônima de suposta adoção irregular por parte de "um casal habilitado para adoção", apuraram-se indícios fortes de adoção irregular da criança, também pelo fato de que o referido casal já estava em processo de adoção naquela comarca. O Juízo natural determinou o acolhimento da criança em Casa-Abrigo. Impetrado writ perante o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, a liminar foi indeferida pela d. Relatora (...) Ante o cumprimento da ordem de busca e apreensão da criança e o acolhimento em abrigo, foi impetrado o presente habeas corpus, com pedido de liminar, sustentando o impetrante a ilegalidade e a impertinência da medida extrema determinada initio litis. A liminar foi deferida pelo em. Ministro Presidente do STJ, que, prestigiando o princípio do melhor interesse da criança, determinou a "imediata entrega da menor J. V. O. N. aos pais registrais, J. O. e R. N. S., afastando, por ora, o recolhimento institucional até o julgamento final do presente habeas corpus". (...) Ante o exposto, concede-se a ordem de habeas corpus para, confirmando a liminar deferida às fls. 1.305-1.310, determinar que a paciente J. V. O. N. permaneça na guarda e responsabilidade dos seus pais registrais, até o julgamento definitivo da ação de anulação de registro civil de nascimento aviada pelo Ministério Público estadual.
1. Introdução Como ficam os direitos sucessórios de quem foi adotado antes, durante e depois do Código de Menores de 1979? É em torno dessa indagação que gira o presente artigo, enfrentando um problema de direito intertemporal que ainda hoje frequenta os tribunais.  2. Definição da adoção na atualidade  A adoção é ato jurídico por meio de qual uma pessoa (adotado) recebe o estado civil de filho em relação ao adotante, com rompimento do anterior vínculo jurídico de filiação. O filho adotivo passa a ter todos os direitos dos filhos naturais (filhos biológicos), inclusive os decorrentes de vínculos com os parentes dos pais biológicos. É vedada qualquer discriminação entre os filhos por conta da origem (biológica ou adotiva), conforme art. 227, § 6º, CF1 e art. 41 do ECA2. Essa é a chamada adoção plena, a única atualmente admitida no Brasil.  3. O problema de direito intertemporal da antiga adoção simples e da mais antiga adoção standard do CC/1916  Atualmente, não se admite mais a antiga adoção simples (também chamada de adoção restrita), que se distinguia da adoção plena por três principais características: 1 não rompia o vínculo jurídico de filiação anterior; 2 não formava vínculo com os parentes do adotante, mas apenas com o adotante; 3 o poder familiar passava do pai biológico ao pai adotivo. Nesse tipo de adoção, o filho seguia com vínculo jurídico de filiação com os pais biológicos. A adoção simples coexistia com a adoção plena após a entrada em vigor do Código de Menores de 19793, quando ainda vigia o CC/1916. A CF/1988, o ECA (que revogou o antigo Código de Menores) e o CC/2002 rejeitaram a adoção simples, porém4. Essa mudança legislativa, porém, não prejudica as adoções simples até então ocorridas, porque novas leis devem respeitar atos jurídicos perfeitos (art. 6º, LINDB5). As adoções simples não se transformam automaticamente em adoções plenas com as novas leis, porque é preciso respeitar o ato jurídico perfeito. Antes do Código de Menores de 1979, só havia uma espécie de adoção, disciplinada pelo CC/1916. Chamamo-la de adoção standard do CC/1916. Daí se seguem algumas consequências práticas de direito intertemporal. Uma delas é a de que, no caso de adoção simples (aquela ocorrida na vigência do Código de Menores de 1979), o adotado segue com direito sucessório em razão da morte de seus pais biológicos, com quem ainda mantém vínculo de filho. Nesse sentido, o STJ reconheceu que uma pessoa que havia sido adotada, de modo simples, pelos avós tinha direito hereditário por ocasião da morte de seu pai biológico após a entrada em vigor do CC/2002. Confira-se:  CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE CUMULADA COM PETIÇÃO DE HERANÇA. ADOÇÃO SIMPLES. PARENTESCO ENTRE ADOTANTE E ADOTADO. INEXISTÊNCIA DE DIREITO SUCESSÓRIO. MANUTENÇÃO DO PARENTESCO NATURAL, EXCETO PODER FAMILIAR. ATO JURÍDICO PERFEITO, SE CUMPRIDOS OS REQUISITOS, FORMA E CONTEÚDO VIGENTES À ÉPOCA. DIREITO ADQUIRIDO AO REGIME SUCESSÓRIO EXISTENTE AO TEMPO DA ADOÇÃO. INOCORRÊNCIA. MERA EXPECTATIVA DE DIREITO. DIREITO HEREDITÁRIO REGIDO PELA LEI VIGENTE AO TEMPO DA ABERTURA DA SUCESSÃO. SUPERVENIÊNCIA DE NOVA ORDEM CONSTITUCIONAL E LEGAL. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE FILHOS E PLENITUDE DA ADOÇÃO. FILHOS DE SEGUNDA LINHAGEM. IMPOSSIBILIDADE. TRANSFORMAÇÃO AUTOMÁTICA DE ADOÇÃO SIMPLES EM ADOÇÃO PLENA. IMPOSSIBILIDADE. PLENITUDE ADOTIVA QUE SE CARACTERIZA NÃO APENAS DO PONTO DE VISTA JURÍDICO, MAS TAMBÉM FÁTICO. INEXISTÊNCIA NA HIPÓTESE EM EXAME. RELAÇÃO PATERNO-FILIAL COM AVÔ MATERNO QUE SE INICIOU E FINDOU À ÉPOCA DAS ADOÇÕES SIMPLES. AUSÊNCIA DE PLENITUDE ADOTIVA. DIREITO DE INVESTIGAÇÃO DA VERDADE BIOLÓGICA E ANCESTRALIDADE E DIREITO SUCESSÓRIO CONFIGURADOS. PRECEDENTE DA 3ª TURMA NO RESP 1.477.498/SP INAPLICÁVEL À HIPÓTESE DIANTE DAS PARTICULARIDADES FÁTICAS. OMISSÃO QUANTO À BASE DE CÁLCULO DOS HONORÁRIOS. INOCORRÊNCIA. QUESTÃO DECIDIDA. PRETENSÃO, SENTENÇA E ACÓRDÃO CONDENATÓRIOS. RECURSO ESPECIAL QUE DISCUTE PROVEITO ECÔNOMICO. CONCEITOS JURÍDICOS DISTINTOS. SÚMULA 284/STF. HONORÁRIOS RECURSAIS. CONFIGURAÇÃO. 1- Ação proposta em 8/5/2018. Recursos especiais interpostos em 24/3/2022 e atribuídos à Relatora em 18/7/2022. 2- Os propósitos recursais consistem em definir: (i) em relação ao recurso especial de ANTONIO e OUTROS, se a pessoa que havia sido adotada pelos avós de forma simples na vigência do CC/1916 pode participar, na qualidade de descendente, da sucessão de seu pai biológico, que fora aberta apenas na vigência da Constituição Federal de 1988, do Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 e do Código Civil de 2002, e se o Tribunal local, ao admitir essa possibilidade, dissentiu de precedente desta Corte; (ii) em relação ao recurso especial de POLIANA e OUTROS, se há omissões relevantes no acórdão recorrido e se os honorários advocatícios sucumbenciais foram arbitrados de maneira adequada, seja quanto à base de cálculo, seja quanto à majoração em virtude da atividade desenvolvida em grau recursal. 3- A adoção simples possuía, como características marcantes, o estabelecimento de parentesco somente entre adotante e adotado, a vedação de estabelecimento de direito de sucessão entre o adotado e os parentes do adotante e a ausência de extinção dos direitos e deveres que resultam do parentesco natural, exceto o poder familiar, que era transferido do pai natural para o adotivo. 4- A adoção simples realizada na vigência do CC/1916, se observados os requisitos, forma e conteúdo vigentes à época de sua prática, será considerado um ato jurídico perfeito e consumado, de modo que legislação superveniente não poderá exigir que esse mesmo seja novamente praticado em virtude da inexistência, na nova lei, da figura da adoção simples. 5- O ato jurídico perfeito de adoção simples não conduz à existência de um direito adquirido ao regime sucessório vigente ao tempo da consumação da adoção, pois, naquele momento, existia mera expectativa de direito que somente viria a se concretizar com o falecimento do autor da herança e que se se regerá pela lei vigente no momento da abertura da sucessão. 6- Examinada a questão sob diferente perspectiva, a superveniência de uma nova ordem constitucional e legal, que estabeleceu o princípio da igualdade entre os filhos e a plenitude da adoção, teve por finalidade afastar um antigo padrão social existente em nosso país até aquele momento histórico, mas que, ainda hoje, ainda se repete, felizmente em menor escala: a existência de filhos de segunda linhagem. 7- Nesse contexto, o princípio constitucional da igualdade entre os filhos é um freio, necessário e definitivo, a uma conduta social secular, preconceituosa, hipócrita e odiosa de discriminação e de diminuição humana, calcada simplesmente no fato de que o filho fora concebido fora da casta familiar e, por isso mesmo, seria indigno de frequentá-la. 8- De outro lado, a plenitude da adoção é tonificada com a máxima da desvinculação da família biológica enquanto meio e técnica de fortificação e de consolidação do vínculo familiar adotivo. Para que um vínculo filial originado de adoção seja igual ou mais forte do que um vínculo filial originado do laço sanguíneo, o passado não deve ser um assombro ou desassossego. 9- Para a transformação de uma adoção simples do regime anterior, cuja característica era a manutenção do vínculo com os pais biológicos, em adoção plena no ordenamento atual, com o imediato rompimento desse mesmo vínculo, não basta o reconhecimento jurídico de que o sistema provocou essa ruptura, mas, sim, é indispensável que se observe a existência da plenitude adotiva no mundo dos fatos, isto é, de que houve ruptura fática desse vínculo com a criação de um vínculo entre a adotada e o pai adotivo. 10- Na hipótese em exame, a autora foi adotada pelo avô materno em julho/1984 e ele veio a falecer em maio/1985, ambos os eventos ocorridos na constância da chamada adoção simples, de modo que não houve a transmudação da adoção simples em adoção plena pelo simples fato de, após esses eventos, ter havido uma ruptura constitucional e infraconstitucional para com o modelo adotivo anteriormente vigente. 11- Inexistente a transformação de adoção simples em adoção plena na hipótese em exame, é direito da autora não apenas investigar a sua verdade biológica e ancestralidade, mas também participar da sucessão de seu pai biológico, sob pena de ofensa à isonomia entre os filhos garantido pelo texto constitucional e de reavivar a sepultada ideia de que ainda existiriam filhos de segunda linhagem. 12- Não se aplica à hipótese a tese firmada no REsp 1.477.498/SP diante das diferentes particularidades fáticas existentes na hipótese em julgamento, seja porque a adoção simples se deu por membro da própria entidade familiar, seja porque o rompimento da relação paterno-filial entre adotante e adotado ocorreu imediatamente após a adoção e ainda na vigência da legislação revogada, circunstâncias não verificadas no precedente. 13- Não há que se falar em omissão quanto à base de cálculo dos honorários sucumbenciais quando a questão foi efetivamente examinada pelo acórdão recorrido. 14- Formulada pela parte pretensão de natureza condenatória julgada procedente pela sentença e mantida pelo acórdão, e tendo ambas as decisões judiciais fixado os honorários sucumbenciais, por equidade, porque ínfimo o valor atribuído à causa, não se conhece do recurso especial que impugna o acórdão ao fundamento de que, em verdade, os honorários deveriam ser arbitrados com base em proveito econômico, eis que condenação e proveito econômico são conceitos jurídicos distintos. Aplicabilidade da Súmula 284/STF. 15- Desprovida a apelação interposta pelos réus, os únicos a recorrem da sentença quanto ao mérito e os únicos a quem fora imposta a condenação sucumbencial, impõe-se a majoração da verba honorária em virtude da atividade desenvolvida em grau recursal pelos patronos da autora, na forma do art. 85, § 11, do CPC/15. 16- Recurso especial de ANTONIO e OUTROS conhecido e não-provido, com majoração de honorários; recurso especial de POLIANA e OUTROS parcialmente conhecido e, nessa extensão, parcialmente provido, a fim de majorar a verba honorária devida em virtude do desprovimento da apelação. (REsp n. 2.013.399/MG, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 3/10/2023, DJe de 9/10/2023.)  Outra consequência prática de direito intertemporal é que as regras sucessórias são aquelas vigentes ao tempo da morte (abertura da sucessão). Daí se segue que, no caso de sucessões abertas após a vigência do CC/2002, inexiste direito hereditário a filhos adotivos no caso de adoção simples (as ocorridas na vigência do Código de Menores de 1979). É irrelevante que, antes do CC/2002, a adoção simples gerasse direitos hereditários em relação aos pais adotivos, pois inexiste direito adquirido a regime jurídico sucessório. Com o CC/2002, só se defere direito hereditário a filhos adotivos na hipótese de adoção plena. Logo, mortes ocorridas na vigência do CC/2002 atraem a aplicação das regras hereditárias então em vigor. Não se pode considerar que as antigas adoções simples tenham sido convertidas automaticamente em adoções plenas com as mudanças legislativas, sob pena de violação a ato jurídico perfeito. Veja estes julgados do STJ: AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - HABILITAÇÃO EM INVENTÁRIO JUDICIAL - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE NEGOU PROVIMENTO AO RECLAMO. IRRESIGNAÇÃO DO AGRAVANTE. (...) 2. O regime jurídico que regula a legitimidade para suceder é aquele da data da abertura da sucessão. Devem ser aplicadas, portanto, no que couberem, as normas de direito de família vigentes ao tempo da abertura sucessão. Inteligência do art. 1787 do Código Civil de 2002. 2.1 O fato de a recorrida ter sido adotada deve ser interpretado à luz do regime vigente ao tempo abertura da sucessão, independentemente da adoção ter ocorrido sob a égide da legislação anterior, em 1972. Precedentes. 2.2 No caso concreto, ao tempo da abertura da sucessão sub judice (2006), o instituto da adoção estava submetido ao atual regime jurídico, que restringe a adoção à modalidade plena (adoção cria vínculo plenos, irrestritos do adotado com o adotante e seus familiares). Não seria possível, então, dar sobrevida à modalidade de adoção simples, própria do diploma civil revogado, para excluir os direitos sucessórios da recorrida. Súmula 83 do STJ. 3. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp n. 1.150.025/BA, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 14/2/2017, DJe de 22/2/2017.)  RECURSO ESPECIAL - PROCEDIMENTO DE INVENTÁRIO - SUCESSÃO LEGÍTIMA E TESTAMENTÁRIA - EXCLUSÃO DE NETAS BIOLÓGICAS - ADOÇÃO SIMPLES REALIZADA POR TERCEIRO SEM PARENTESCO COM A DE CUJUS - TRIBUNAL A QUO QUE MANTEVE A DECISÃO DE EXCLUSÃO ANTE A APLICAÇÃO DAS REGRAS ATUAIS QUANTO AO INSTITUTO DA ADOÇÃO - INSURGÊNCIA DAS EXCLUÍDAS. Hipótese: Discussão acerca da aplicação, à adoção realizada sob a vigência do Código Civil de 1916, do regime atual da adoção, que rompe completamente os vínculos com a família biológica, a inviabilizar a habilitação das adotadas como herdeiras legítimas da avó biológica. 1. Viabilidade de apreciação da violação ao artigo 6º da LINDB por via de Recurso Especial. Alegação de afronta ao direito adquirido por aplicação da lei ao caso concreto, e não por comando legal que determinasse a retroatividade da lei. Precedentes. 2. A capacidade para suceder e o direito à herança são aferidos conforme a lei do tempo da abertura da sucessão, nos termos do artigo 1.787 do Código Civil de 2002. Inexistência de direito adquirido à sucessão. 3. Inexistência de violação a ato jurídico perfeito. A adoção no caso concreto foi feita no intuito de acolher as recorrentes em nova família. Impossibilidade de realizar a adoção em outra modalidade que não a simples, uma vez que o adotante não tinha, em 1977, outra possibilidade legal, considerando as condições das adotadas. 3.1. Não há direito adquirido ao regime anterior de adoção. Conforme a doutrina e a jurisprudência pátrias, institutos ou conjunto de regras podem ser alterados pelo legislador, modificando os efeitos presentes e futuros de atos passados 3.2 Ocorrência da retroatividade mínima ou eficácia imediata das disposições constitucionais sobre Direito de Família. A Constituição determinou, por meio do artigo 227, § 6º, a igualdade entre filhos, mesmo que havidos por adoção. Eficácia imediata das normas constitucionais. 3.3 A aplicação do dispositivo constitucional impede que as recorrentes utilizem o regime anterior da adoção para figurarem como herdeiras da avó biológica. 4. Recurso especial DESPROVIDO. (REsp n. 1.116.751/SP, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 27/9/2016, DJe de 7/11/2016.)  Há, porém, uma advertência a ser feita. Trata-se de casos de adoção ocorridas antes do Código de Menores de 1979, ou seja, antes de ter sido criada a figura da adoção plena e da adoção simples. Nesses casos, só havia um tipo de adoção, que chamamos de adoção standard do CC/1916, a qual era a única devida. Essa adoção standard do CC/1916 não afastava os direitos hereditários em relação aos parentes biológicos, conforme os já revogados arts. 376 e 378 do CC/19166. Aproximava-se ao que o Código de Menores de 1979 veio a batizar de adoção simples, mas não deve ser considerada igual. Isso, porque, antes do Código de Menores de 1979, não havia duas opções de Adoção (a simples e a plena); só existia a adoção standard do CC/1916. Por essa razão, parece-nos correta a tendência do STJ em entender que a adoção standard do CC/1916 (anterior ao Código de Menores de 1979), por ser a única opção disponível à época, deve ser tradada como adoção plena para fins sucessórios no caso de morte dos pais biológicos ocorridas após a entrada em vigor do ECA e do CC/2002. Deve-se, pois, considerar que, após essas novas leis, teria havido uma ruptura do vínculo jurídico com a família biológica. Daí se segue que, no caso de morte dos parentes biológicos, não haverá direito hereditário ao filho que veio a ser adotado antes do Código de Menores de 1979. Seu direito hereditário repousa apenas no caso de falecimentos de parentes adotivos. Veja:  PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC. NÃO OCORRÊNCIA. CIVIL. ADOÇÃO OCORRIDA SOB A ÉGIDE DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 [ADOÇÃO OCORREU EM 1969, ANTES, PORTANTO DO CÓDIGO DE MENORES DE 1979]. FALECIMENTO DE ASCENDENTE BIOLÓGICO. DIREITO SUCESSÓRIO. LEI VIGENTE À ÉPOCA DA ABERTURA DA SUCESSÃO. APLICAÇÃO. EXCLUSÃO LEGÍTIMA DOS ADOTADOS. ART. 227, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE OS FILHOS. INTERPRETAÇÃO CONFORME. 1. Afasta-se a alegada violação do art. 535 do CPC quando o acórdão recorrido, integrado pelo julgado proferido nos embargos de declaração, dirime, de forma expressa, congruente e motivada, as questões suscitadas nas razões recursais. 2. A adoção constituída na vigência do Código Civil de 1916, consoante o disposto nos arts. 376 e 378, não extinguia o vínculo de parentesco natural, preservando, assim, o direito sucessório do adotado com relação aos parentes consanguíneos. 3. Não há direito adquirido à sucessão, que se estabelece por ocasião da morte, pois é nesse momento em que se dá a transferência do acervo hereditário aos titulares, motivo pelo qual é regulada pela lei vigente à data da abertura (art. 1.577 do Código Civil de 1916 e art. 1.787 do Código Civil de 2002). 4. In casu, quando do falecimento da avó biológica, vigia o art. 1.626 do Código Civil de 2002 (revogado pela lei 12.010/2009), segundo o qual a adoção provocava a dissolução do vínculo consanguíneo. Assim, com a adoção, ocorreu o completo desligamento do vínculo entre os adotados e a família biológica, revelando-se escorreita a decisão que os excluíra da sucessão porquanto, na data da abertura, já não eram mais considerados descendentes. 5. A interpretação do art. 227, § 6º, da Constituição Federal, que instituiu o princípio da igualdade entre os filhos, veda que, dentro da família adotante, seja concedido, com fundamento em dispositivo legal do Código Civil de 1916, benefício sucessório extra a determinados filhos que implique reconhecer o direito de participar da herança dos parentes adotivos e dos parentes consanguíneos. 6. Recurso especial desprovido. (REsp n. 1.477.498/SP, relator Ministro João Otávio de Noronha, Terceira Turma, julgado em 23/6/2015, DJe de 30/6/2015.)  Direito civil e processual civil. Recurso especial. Família. Adoção de menor. [ADOÇÃO OCORREU EM 1969, ANTES, PORTANTO DO CÓDIGO DE MENORES DE 1959].  Lei vigente. Aplicabilidade. Sucessão. Ordem de vocação hereditária. Legitimidade dos irmãos. - Nas questões que versam acerca de direito sucessório, aplica-se a lei vigente ao tempo da abertura da sucessão. - As adoções constituídas sob a égide dos arts. 376 e 378 do CC/16 não afastam o parentesco natural, resultante da consangüinidade, estabelecendo um novo vínculo de parentesco civil tão-somente entre adotante(s) e adotado. - Tem, portanto, legitimidade ativa para instaurar procedimento de arrolamento sumário de bens, o parente consangüíneo em 2º grau na linha colateral (irmão natural), notadamente quando, pela ordem de vocação hereditária, ausentes descendentes, ascendentes (naturais e civis), ou cônjuge do falecido. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 740.127/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 11/10/2005, DJ de 13/2/2006, p. 799.) __________ 1 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.  (...) § 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação. 2 Art. 41. A adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. § 1º Se um dos cônjuges ou concubinos adota o filho do outro, mantêm-se os vínculos de filiação entre o adotado e o cônjuge ou concubino do adotante e os respectivos parentes. § 2º É recíproco o direito sucessório entre o adotado, seus descendentes, o adotante, seus ascendentes, descendentes e colaterais até o 4º grau, observada a ordem de vocação hereditária. 3 O Código de Menores de 1979 (Lei nº 6.697/1979) criou a adoção simples e a adoção plena: os seus arts. 27 a 37 tratavam das duas figuras. Veja:  Subseção V Da Adoção Simples Art. 27. A adoção simples de menor em situação irregular reger-se-á pela lei civil, observado o disposto neste Código. Art. 28. A adoção simples dependerá de autorização judicial, devendo o interessado indicar, no requerimento, os apelidos de família que usará o adotado, os quais, se deferido o pedido, constarão do alvará e da escritura, para averbação no registro de nascimento do menor. § 1º A adoção será precedida de estágio de convivência com o menor, pelo prazo que a autoridade judiciária fixar, observadas a idade do adotando e outras peculiaridades do caso. § 2º O estágio de convivência poderá ser dispensado se o adotando não tiver mais de um ano de idade. Subseção VI Da Adoção Plena Art. 29. A adoção plena atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais. Art. 30. Caberá adoção plena de menor, de até sete anos de idade, que se encontre na situação irregular definida no inciso I, art. 2º desta lei, de natureza não eventual. Parágrafo único. A adoção plena caberá em favor de menor com mais de sete anos se, à época em que completou essa idade, já estivesse sob a guarda dos adotantes. Art. 31. A adoção plena será deferida após período mínimo de um ano de estágio de convivência do menor com os requerentes, computando-se, para esse efeito, qualquer período de tempo, desde que a guarda se tenha iniciado antes de o menor completar sete anos e comprovada a conveniência da medida. Art. 32. Somente poderão requerer adoção plena casais cujo matrimônio tenha mais de cinco anos e dos quais pelo menos um dos cônjuges tenha mais de trinta anos. Parágrafo único. Provadas a esterilidade de um dos cônjuges e a estabilidade conjugal, será dispensado o prazo. Art. 33. Autorizar-se-á a adoção plena ao viúvo ou à viúva, provado que o menor está integrado em seu lar, onde tenha iniciado estágio de convivência de três anos ainda em vida do outro cônjuge. Art. 34. Aos cônjuges separados judicialmente, havendo começado o estágio de convivência de três anos na constância da sociedade conjugal, é lícito requererem adoção plena, se acordarem sobre a guarda do menor após a separação judicial. Art. 35. A sentença concessiva da adoção plena terá efeito constitutivo e será inscrita Registro Civil mediante mandado, do qual não se fornecerá certidão. § 1º A inscrição consignará o nome dos pais adotivos como pais, bem como o nome de seus ascendentes. § 2º Os vínculos de filiação e parentesco anteriores cessam com a inscrição. § 3º O registro original do menor será cancelado por mandado, o qual será arquivado. § 4º Nas certidões do registro nenhuma observação poderá constar sobre a origem do ato. § 5º A critério da autoridade judiciária, poderá ser fornecida certidão para salvaguarda de direitos. Art. 36. A sentença conferirá ao menor o nome do adotante e, a pedido deste, poderá determinar a modificação do prenome. Art. 37. A adoção plena é irrevogável, ainda que aos adotantes venham a nascer filhos, as quais estão equiparados os adotados, com os mesmos direitos e deveres. 4 O instituto da adoção do CC/1916 foi, ao longo da história, sendo flexibilizado, pois havia nascido com muito formalismo. Nasceu como uma adoção simples com muitas restrições. Houve até a criação da figura da "legitimação adotiva" pela lei 4.655/1965 nessa marcha de flexibilização. Mas foi só com o Código de Menores de 1979 que se desenhou a adoção plena, que substituiu a legitimação adotiva e que se contrapunha à adoção simples. A adoção simples era a regida pela lei civil e aplica-se a "menor em situação irregular" (art. 27 do revogado Código de Menores de 1979). Já. adoção plena era a que desligava o adotado do vínculo com seus parentes biológicos (art. 29 do revogado Código de Menores de 1979). Sobre o tema, veja este histórico de Hugo Nigro Mazzilli:  A adoção, por qualquer de suas atuais formas, é ficção jurídica que estabelece entre adotante e adotado uma relação de paternidade e filiação. Com as excessivas exigências originariamente previstas no Código Civil de 1916, estava fadada a ser instituto sem a penetração esperada (somente o maior de cinquenta anos sem descendentes legítimos ou legitimados, poderia adotar, e desde que fosse pelo menos dezoito anos mais velho que o adotado; cf. arts. 368 e s.). Mesmo com as modificações trazidas pela lei 3.133/57, ainda se ficou a meio caminho para uma real simplificação (a idade do adotante foi reduzida para trinta anos; a diferença de idades foi atenuada para dezesseis anos; permitiu-se a adoção mesmo se o adotante tivesse filhos legítimos, legitimados ou reconhecidos, mas sem envolver sucessão hereditária; estipulou-se que ninguém poderia adotar, sendo casado, senão decorridos cinco anos do casamento). Com a lei 4.655/65, pretendeu-se dar um passo maior, criando-se urna forma de adoção mais ampla, então chamada de "legitimação adotiva", pela qual o adotado ficava quase com os mesmos direitos e deveres do filho legítimo, salvo no caso de sucessão, se concorresse com filho legítimo superveniente à adoção. Foi ainda solução insatisfatória, porque muito formalista e de acanhada utilização. Foi com a lei 6.697/79, que instituiu o Código de Menores, que se trouxe maior progresso na matéria: a) afora a adoção do Código Civil, passou-se a admitir uma forma de adoção simples, autorizada pelo juiz e aplicável aos menores em situação irregular (arts. 27 e 28); b) substituiu-se com vantagem a legitimação adotiva pela adoção plena, com diversas alterações no instituto (arts. 29 a 37). (MAZZILLI, Hugo Nigro. Notas sobre a adoção in Revista Justitia. Ano 52. Vol. 149. Jan./Mar./1990. p. 67). 5 Art. 6º A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada. (Redação dada pela lei 3.238, de 1957) § 1º Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou. (Incluído pela lei 3.238, de 1957) § 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por êle, possa exercer, como aquêles cujo comêço do exercício tenha têrmo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem. (Incluído pela lei 3.238, de 1957) § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso. (Incluído pela lei 3.238, de 1957) 6 Art. 376. O parentesco resultante da adoção (art. 336) limita-se ao adotante e ao adotado, salvo quanto aos impedimentos matrimoniais, á cujo respeito se observará o disposto no art. 183, ns. III e V. (...) Art. 378. Os direitos e deveres que resultam do parentesco natural não se extinguem pela adoção, exceto o pátrio poder, que será transferido do pai natural para o adotivo.
1. Resumo Começamos por resumir, em tópicos, as ideias centrais deste artigo: 1. Discutimos, neste artigo, se condenação criminal por crime de gênero implica automaticamente a perda do poder familiar, da tutela ou da curatela bem como a perda de cargo público, à luz do art. 92, § 2º, III, do CP. Enfrentaremos o tema sob três diretrizes interpretativas: (a) tolerância zero com violência de gênero; (b) evitar o efeito reverso da repressão jurídica; e (c) interpretação restritiva para normas sancionadoras. 2. A perda do poder familiar ocorrerá automaticamente com a sentença penal condenatória apenas neste caso: condenações penais pelo cometimento doloso de um dos crimes gravíssimos previstos no parágrafo único do art. 1.638 do CC contra o outro genitor ou contra o filho menor de idade. Nos casos de tutela ou curatela, deve-se aplicar, por analogia, o parágrafo único do art. 1.638 do CC: a extinção automática da tutela ou da curatela só ocorrerá no caso de um dos crimes gravíssimos supracitados terem sido praticados contra a pessoa incapaz ou contra um dos seus genitores. Em qualquer uma dessas hipóteses, é de se admitir que, de modo extremamente excepcional, com olhos no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, o juízo criminal ou, em futura ação, o juízo cível afaste total ou parcialmente o referido efeito extrapenal (capítulo 3.3.). 3. Quando houver uma condenação por crime de gênero contra uma mulher, o condenado automaticamente fica impedido de ingressar em cargo ou função públicos ou eletivos (art. 92, § 2º, II III, do CP). Porém, o juiz poderá, a depender do caso concreto, afastar esse efeito automático, desde que o caso concreto assim o justifique com base no princípio da proporcionalidade ou em outros princípios do ordenamento. A perda do cargo ou função públicos ou eletivos não é automática com a condenação criminal (capítulo 3.3.). 2. Introdução Este artigo1 discute se a condenação criminal por qualquer crime de gênero (especificamente crimes em razão da condição do sexo feminino) implica inexoravelmente a perda, pelo criminoso, do poder familiar, da tutela ou da curatela bem como a perda do vínculo com o Poder Público. O debate gira em torno da correta interpretação de recente alteração legislativa promovida no CP - Código Penal pelo Pacote Antifeminicídio (lei 14.994/24), norma sobre a qual Rogério Sanches Cunha, Thimotie Aragon Heemann e Valéria Diez Scarance Fernandes escreveram detalhado artigo2. Referimo-nos ao art. 92, § 2º, III, do CP3, que prevê a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela e a vedação à assunção de cargo ou função públicos ou eletivos, como efeitos automáticos da condenação por crime contra a mulher em razão da condição do sexo feminino. Entende-se como crime contra a mulher em razão da condição do sexo feminino aquele praticado no que chamamos de ambiente de intimidade (violência doméstica ou familiar, a qual é bem definida no art. 5º da lei Maria da Penha - lei 11.340/06) ou aquele praticado por menosprezo ou discriminação à condição de mulher. É a definição do § 1º do art. 121-A do Código Penal4. A reflexão deste artigo é extremamente relevante para a prática. Citamos alguns exemplos hipotéticos de casos cotidianos que podem vir a levantar o debate. Um pai que xinga uma desconhecida com quem teve um entrevero no trânsito comete crime de injúria, sujeito a detenção de um a seis meses (art. 140, caput, Código Penal). Imagine que o juiz venha a entender que o xingamento ocorreu em contexto de "menosprezo ou discriminação à condição de mulher" (nas palavras do inciso II do § 1º do art. 121-A do CP), como na hipótese de uma estúpida associação do gênero à falta de destreza na direção de veículos. Suponha, ainda, que esse pai seja servidor público e tenha um filho de três anos de idade. Daí se indaga: sobrevindo uma sentença penal condenatória, esse pai perderá automaticamente o poder familiar sobre o filho, de modo que essa criança deverá ser colocada em família substituta (quiçá até em uma instituição de acolhimento institucional para adoção caso a criança não tenha nenhum outro familiar)? Indaga-se também: esse pai agressor também perderá automaticamente o cargo público, de modo a perder sua fonte de renda, além de ficar proibido a assumir qualquer função pública até o cumprimento da pena? Uma leitura indevida do art. 62, § 2º, III, do CP - a qual repelimos neste artigo - daria uma resposta positiva. Sob essa ótica equivocada, agressores de mulheres por razão de gênero não poderiam exercer o poder familiar nem qualquer função pública. Mas será essa a melhor interpretação da lei? Deve-se cortar o vínculo de uma criança com seu pai e, em decorrência disso, poder vir a sujeitá-la a adoção em qualquer hipótese de o pai ter xingado uma desconhecida por briga de trânsito em contexto de menosprezo ao gênero feminino? Trago outro caso hipotético (mas comum na prática). Imagine um alto servidor público que pague pensão alimentícia a seu filho, de anterior casamento, de R$ 6.000,00 (20% do seu salário) e pague uma pensão alimentícia à mãe (que lhe é ex-esposa) de R$ 2.000,00. Suponha que, em uma conversa acalorada com a ex-esposa, esse pai ameace agredi-la. Isso configura um crime de ameaça em contexto de violência doméstica, a atrair uma pena de 2 meses a 1 ano e 2 meses e uma ação penal pública sem necessidade de representação da mulher (art. 147, § 1° e 2°, CP). Daí indaga-se: caso sobrevenha uma sentença penal condenatória, esse pai, além de perder o poder familiar, automaticamente perderia o cargo público e, portanto, perderia a fonte de renda que respaldava o pagamento da pensão alimentícia? Uma leitura indevida do art. 62, § 2º, III, do CP daria uma resposta positiva. Esse pai perderia o emprego automaticamente, além de perder o poder familiar. Em consequência, ele não terá mais rendimento para pagar as pensões alimentícias ao filho e à ex-esposa, o que submeterá essas duas pessoas mais vulneráveis aos transtornos da brutal redução de renda. 3. Interpretação adequada para a incapacidade para poder familiar, tutela e curatela 3.1. Diretrizes interpretativas É lugar comum que o ordenamento tem de ser enérgico e implacável contra os autores de violência de gênero, ainda mais no ambiente doméstico e familiar. A tolerância é zero. Todavia, a reação do Direito tem de ser feita com racionalidade e proporcionalidade, até porque o ordenamento jurídico conta com uma margem de erro (que estimamos ser pequena) na apuração dos fatos. Há casos de inocentes que são condenados por não terem conseguido produzir provas perante o juiz. Afinal de contas, ninguém anda com um gravador e uma câmera 24 horas por dia para fazer provas. Trata-se de um efeito colateral inerente ao sistema jurídico-processual, efeito colateral que infelizmente existe, embora tenha de ser sempre combatido mediante aprimoramento das regras processuais. Nesse sentido, a repreensão jurídica tem de ser enérgica, mas razoável. E mais: as sanções jurídicas têm de evitar o agravamento da situação da vítima, que, por vezes, pode vir a ser prejudicada indiretamente com alguma punição exagerada contra o infrator. De fato, em uma sociedade ainda manchada por estruturas sociológicas patriarcalistas, há ainda ex-esposas e filhos dependentes economicamente do homem autor da violência doméstica, sobrevivendo com pensões alimentícias.   Se esse agressor perder a fonte de renda, a pensão alimentícia teria de ser reduzida abruptamente, em total prejuízo indireto às vítimas que dependiam dela. Em uma palavra, deve-se evitar o efeito reverso da repressão jurídica. Por fim, há de atentar para o fato de que, por regra básica de hermenêutica, normas restritivas de direito devem ser objeto de interpretação restritiva. Afinal de contas, se o legislador se vale de uma redação legislativa dúbia ou escorregadia, não há como, pela via interpretativa, alargar semanticamente a norma para endurecer uma punição. Portanto, indicamos as seguintes diretrizes interpretativas a serem adotadas na interpretação do art. 92, § 2º, III, do CP: (1) tolerância zero com violência de gênero; (2) evitar o efeito reverso da repressão jurídica; e (3) interpretação restritiva para normas sancionadoras. 2.2. Adequada interpretação do art. 92, § 2º, III, do CP 2.1. Incapacidade para o poder familiar, a tutela ou a curatela O art. 92, § 2º, III, do CP prevê que, com a condenação por crime de gênero contra a mulher, o criminoso automaticamente sofre este efeito extrapenal: "a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela", nas palavras do inciso II do caput do art. 92 do CP. Em nenhum momento, o legislador referiu-se à "perda", à "destituição" ou à "extinção" do poder familiar, da tutela ou da curatela. Ele apenas aludiu a uma incapacidade para o exercício desses institutos civis de amparo à pessoa vulnerável. Por uma interpretação literal, isso, por si só, já demonstra que a perda do poder familiar, da tutela ou da curatela não está alcançada pelo dispositivo. O legislador, se quisesse a extinção do poder familiar, teria utilizado os verbetes usualmente empregados nas leis civis, como extinção, destituição ou perda (exemplos: arts. 23 e 24 ECA5). Uma interpretação sistemática caminha no mesmo sentido. De um lado, o § 2º do art. 23 do ECA é textual em afirmar o seguinte: Art. 23. (...) § 2º A condenação criminal do pai ou da mãe não implicará a destituição do poder familiar, exceto na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho, filha ou outro descendente. (Redação dada pela lei 13.715, de 2018) Especificando essa regra, o parágrafo único do art. 1.638 do CC estatui que a perda do poder familiar poderá ocorrer por ato judicial nos casos de determinados crimes gravíssimos cometidos contra o outro genitor ou contra o filho: Art. 1.638, Parágrafo único. Perderá também por ato judicial o poder familiar aquele que: (Incluído pela lei 13.715, de 2018)I - praticar contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar: (Incluído pela lei 13.715, de 2018)a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela lei 13.715, de 2018)b) estupro ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão; (Incluído pela lei 13.715, de 2018)II - praticar contra filho, filha ou outro descendente: (Incluído pela lei 13.715, de 2018)a) homicídio, feminicídio ou lesão corporal de natureza grave ou seguida de morte, quando se tratar de crime doloso envolvendo violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher; (Incluído pela lei 13.715, de 2018)b) estupro, estupro de vulnerável ou outro crime contra a dignidade sexual sujeito à pena de reclusão. (Incluído pela lei 13.715, de 2018) Veja que esses esses dispositivos foram incluídos em 2018, pela lei 13.715. Há, portanto, uma ligação umbilical entre eles. De outro lado, os arts. 155 e seguintes do ECA são expressos em disciplinar um procedimento especial para a perda do poder familiar, com prestígio a uma investigação aprofundada daquilo que condiz com o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente. Ora, se o Pacote Antifeminicídio quisesse que qualquer condenação no processo penal por crime de gênero ensejasse automaticamente a perda do poder familiar, ele teria alterado os supracitados artigos do Código Civil e do ECA. Não foi, porém, essa a finalidade da lei. No caso da destituição da tutela ou da curatela, deve-se aplicar, no que couber, o rito especial previsto nos arts. 747 a 763 do CPC - Código de Processo Civil, no que é chancelado pelo art. 164 do ECA. Apesar de os referidos dispositivos aludirem à designação de tutor ou curador, eles devem alcançar também a destituição desse munus. Isso, porque esses procedimentos são estruturados de modo a viabilizar uma investigação probatória voltada a identificar o que é melhor para a pessoa vulnerável. Ora, seria incoerente com o sistema jurídico subverter essa lógica especializada de procedimentos de destituição de poder familiar, de tutela e de curatela, que prestigia uma análise casuística e pontual com olhos no princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável. Essa subversão aconteceria se o juízo criminal, por uma lógica cartesiana e linear, em um procedimento de outros objetivos (que é o processo penal), pudesse extinguir o poder familiar, a cutela ou a tutela como efeito automático de uma condenação por crime de gênero contra a mulher. Uma interpretação teleológica deságua no mesmo sentido. A lei, em momento algum, objetiva automaticamente "cortar" o vínculo protetivo de pessoas vulneráveis (menores de idade e outras pessoas incapazes) com qualquer condenação criminal de gênero. E há dois motivos para tanto. Em primeiro lugar, o processo penal não é o espaço adequado para profundas investigações probatórias de direito civis das pessoas vulneráveis, com estudos psicossociais por equipes multidisciplinares especializadas no cuidado de menores de idade e de outras pessoas incapazes. A legislação civil dedica procedimentos específicos para tanto, a tramitar em varas especializadas no tema, especialmente nos casos de crianças e adolescentes, conforme já expusemos acima. Em segundo lugar, uma leitura linear, computadorizada e fria da lei com vistas a "cortar" o vínculo protetivo da pessoa incapaz contraria totalmente o princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável e poderia gerar um efeito reverso. Em uma situação mais extrema, uma criança poderia ser colocada para adoção pelo fato de o seu pai ter perdido o poder familiar em razão de um crime de injúria praticado contra uma colega de trabalho, o que seria um despropósito. Diante disso, indaga-se: como deve ser interpretado o art. 92, § 2º, III, do CP? Entendemos que o referido dispositivo deve ser interpretado em conjunto com as hipóteses legais de perda do poder familiar, especialmente os supracitados dispositivos civis (art. 23, § 2º, do ECA e art. 1.638, parágrafo único, CC). Isso significa que a perda do poder familiar ocorrerá automaticamente com a sentença penal condenatória apenas neste caso: condenações penal pelo cometimento doloso de um dos crimes gravíssimos previstos no parágrafo único do art. 1.638 do CC (homicídio, feminicídio, lesão corporal de natureza grave, crime contra a dignidade sexual) contra o outro genitor ou contra o filho menor de idade. Outros crimes de gênero (como uma injúria contra uma desconhecida em menosprezo à condição de mulher) não acarretam automática perda do poder familiar. Nos casos de tutela ou curatela, deve-se aplicar, por analogia, o parágrafo único do art. 1.638 do CC: a extinção automática da tutela ou da curatela só ocorrerá no caso de um dos crimes gravíssimos supracitados terem sido praticados contra a pessoa incapaz ou contra um dos seus genitores. Em qualquer uma dessas hipóteses, é de se admitir que, de modo extremamente excepcional, com olhos no princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, o juízo criminal ou, em futura ação, o juízo cível (que é mais especializado no tema) afaste total ou parcialmente o referido efeito extrapenal. Pense, por exemplo, na hipótese de uma criança que seja titular de um patrimônio extremamente complexo, que exige altíssima expertise na gestão e que esteja sob a tutela de uma pessoa extremamente técnica nessas questões e que tenha profundo afeto com a criança. Se, eventualmente, o tutor - em embriaguez - vem a atropelar mortalmente o pai biológico dessa criança - perpetrando homicídio doloso -, o juiz poderá eventualmente manter a tutela, ainda que apenas para fins de gestão patrimonial da criança, em atenção ao princípio do melhor interesse da criança. Em matéria de proteção das pessoas incapazes, não se pode adotar raciocínios cartesianos, frios e literais. A casuística é fundamental, sempre com atenção ao princípio do melhor interesse da pessoa vulnerável. 3.2. Proibição de assunção de cargo ou funções públicas ou eletivos A "perda" de cargo ou função públicos ou eletivos não é automática no caso de condenações criminais. Depende de determinação expressa e motivada na sentença penal condenatória. É o art. 92, I e § 1º, do CP. Hipótese diferente é a proibição de assunção de cargo ou função pública ou eletivas. Quando houver uma condenação por crime de gênero contra uma mulher, o condenado automaticamente fica impedido de ingressar em cargo ou função públicos ou eletivos. É o art. 92, § 2º, II III, do CP, o qual é textual em vedar apenas a assunção de cargo ou função públicas ou mandatos eletivos entre o trânsito em julgado e o efetivo cumprimento da pena infligida por crime de gênero. Em nenhum momento, esse dispositivo reporta-se à "perda" do cargo ou função públicos ou eletivos. Daí se segue que, se um servidor público comete um crime de gênero contra uma mulher, ele seguirá com o seu cargo público, salvo se o juiz motivadamente declarar a perda. Se, porém, um desempregado comete um crime de gênero contra uma mulher, ele não poderá assumir nenhum cargo ou função públicas enquanto não for cumprida a pena. Entendemos, porém, o juiz poderá, a depender do caso concreto, afastar esse efeito automático, desde que o caso concreto assim o justifique com base no princípio da proporcionalidade ou em outros princípios do ordenamento. Pense, por exemplo, que o referido desempregado tem um filho com deficiência intelectual que demanda investimentos financeiros elevados com saúde. Suponha que esse desempregado tenha passado em um concurso público. Antes, porém, da nomeação, ele vem a ser condenado, por ter, sob embriaguez, em uma festa, xingado uma mulher com menosprezo ao gênero dela. Suponha que o condenado, quando retornou à sobriedade, foi enfático em tentar se desculpar pela injúria perpetrada. Nesse caso, não nos parece razoável impedir a assunção, pelo desempregado, de um cargo público mediante aprovação em concurso público. Caberia ao juiz afastar esse efeito extrapenal da sentença penal condenatória. 1 Registramos nossos agradecimentos aos amigos e professores Rogério Sanches e Salomão Resedá pelas conversas que me levaram a amadurecer o tema tratado neste artigo. 2 CUNHA, Rogério Sanches; HEEMANN, Thimotie Aragon; FERNANDES, Valéria Diez Scarance. Novas medidas legislativas no enfrentamento à violência contra a mulher: análise da lei 14.994/24. Disponível aqui. Publicado em 10/10/24. 3 Código PenalArt. 92 - São também efeitos da condenação: I - a perda de cargo, função pública ou mandato eletivo: (Redação dada pela lei 9.268, de 1/4/96)a) quando aplicada pena privativa de liberdade por tempo igual ou superior a um ano, nos crimes praticados com abuso de poder ou violação de dever para com a Administração Pública; (Incluído pela lei 9.268, de 1/4/96)b) quando for aplicada pena privativa de liberdade por tempo superior a 4 (quatro) anos nos demais casos. (Incluído pela lei 9.268, de 1/4/96)II - a incapacidade para o exercício do poder familiar, da tutela ou da curatela nos crimes dolosos sujeitos à pena de reclusão cometidos contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar, contra filho, filha ou outro descendente, tutelado ou curatelado, bem como nos crimes cometidos contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A deste Código; (Redação dada pela lei 14.994, de 2024)III - a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. (Redação dada pela lei 7.209, de 11/7/84)III - a inabilitação para dirigir veículo, quando utilizado como meio para a prática de crime doloso. (Redação dada pela lei 7.209, de 11/7/84)§ 1º Os efeitos de que trata este artigo não são automáticos, devendo ser motivadamente declarados na sentença pelo juiz, mas independem de pedido expresso da acusação, observado o disposto no inciso III do § 2º deste artigo. (Incluído pela lei 14.994, de 2024)§ 2º Ao condenado por crime praticado contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A deste Código serão: (Incluído pela lei 14.994, de 2024)I - aplicados os efeitos previstos nos incisos I e II do caput deste artigo; (Incluído pela lei 14.994, de 2024)II - vedadas a sua nomeação, designação ou diplomação em qualquer cargo, função pública ou mandato eletivo entre o trânsito em julgado da condenação até o efetivo cumprimento da pena; (Incluído pela lei 14.994, de 2024)III - automáticos os efeitos dos incisos I e II do caput e do inciso II do § 2º deste artigo. (Incluído pela lei 14.994, de 2024) 4 Art. 121-A. Matar mulher por razões da condição do sexo feminino: (Incluído pela lei 14.994, de 2024)Pena - reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos. (Incluído pela lei 14.994, de 2024)§ 1º Considera-se que há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve: (Incluído pela lei 14.994, de 2024)I - violência doméstica e familiar; (Incluído pela lei 14.994, de 2024)II - menosprezo ou discriminação à condição de mulher. (Incluído pela lei 14.994, de 2024) 5 Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. (Expressão substituída pela lei 12.010, de 2009) VigênciaArt. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. (Expressão substituída pela lei 12.010, de 2009) Vigência
Resumo Começamos por resumir, em tópicos, as principais ideias deste artigo: Em regra, a causa virtual não tem relevância para responsabilizar o seu autor (relevância positiva) nem para isentar de responsabilidade o autor da causa real (relevância negativa da causa virtual). Logo, em regra, a teoria da causalidade virtual não é admitida no Direito brasileiro; Há, porém, exceções: Casos de disposição legal expressa (exs.: arts. 399, 862 e 1.218, CC); Seja como for, entendemos que a existência de causa virtual eventualmente pode influir no arbitramento da indenização a ser paga pelo autor da causa real, seja porque este só deve responder pelo dano efetivamente provocado, seja porque, excepcionalmente, pode vir a ser aplicável a redução equitativa do art. 944, parágrafo único, do CC; A perda de uma chance só é indenizável quando decorrer de uma causa real (o que abrange a chance séria, real e razoável), e não de uma causa virtual (que abrange o dano meramente hipotético). 1. Introdução Quem atira em uma pessoa que, minutos depois, é atropelada mortalmente responde ou não civilmente pela morte? Ou só responde pela lesão corporal, já que a morte decorreu do atropelamento. A resposta a essa questão e a outras similares passa por entender a teoria da causalidade virtual, também chamada de teoria da causalidade hipotética, a qual discute a relevância da causa virtual (ou causa hipotética). 2. Definição Causa virtual (ou causa hipotética) é a circunstância que potencialmente produziria o resultado que, de fato, decorreu de uma causa real posterior. Ex.: Enveneno uma pessoa que, perto de morrer de envenenamento, recebe um tiro fatal. A causa real da morte foi o tiro. Mas, sem ele, a morte certamente ocorreria pelo envenenamento. A causa real (= causa operante) interrompeu os efeitos da causa virtual: Há uma situação de causalidade interrompida. Outro exemplo: "Vamos supor que um homem esfaqueado em órgão vital seja morto por estrangulamento"1. 3. Relevância (ou não) da causa virtual para fins de responsabilidade civil 3.1. Regra geral: Irrelevância No Direito Penal, a regra é a irrelevância da causa virtual para fins de imputação penal, conforme art. 13, § 1º, do CP ("§ 1º A superveniência de causa relativamente independente exclui a imputação quando, por si só, produziu o resultado; os fatos anteriores, entretanto, imputam-se a quem os praticou."). Nos exemplos acima, quem envenenou ou esfaqueou não responde pelo crime de homicídio, mas só pelo de lesão corporal. O crime de homicídio é de quem atirou ou estrangulou. No Direito Civil, a tendência doutrinária é similar, especialmente para fins de responsabilidade civil. Salvo disposição legal em contrário, o autor da causa virtual só responde até a ocorrência da causa real. O autor da causa real responde pelo resultado, dada a irrelevância da causa hipotética para tal efeito. Nos exemplos acima, quem praticou o primeiro ato (envenenar ou esfaquear) só responde pela lesão corporal, ao passo que quem praticou o ato final (atirar ou estrangular) responde pela morte. A lógica é a de que a responsabilidade civil só recai, em regra, sobre quem efetivamente causou o dano. Afinal de contas, ninguém pode responder pelo que efetivamente não causou. Essa é a regra geral. Entendemos que, na quantificação da indenização, o juiz deverá levar em conta o dano efetivamente causado. Assim, nos exemplos citados - que envolve o assassinato de uma pessoa moribunda -, o valor da indenização pela morte por dano moral e o valor indenizatório pela lesão corporal antecedente poderão ser arbitrados em importe inferior ao que seria devido no caso de alguém que mata uma pessoa que não estava perto da morte. Além disso, excepcionalmente, pode vir a ser aplicável a redução equitativa do art. 944, parágrafo único, do CC2. Esse dispositivo estabelece que o juiz pode reduzir a indenização quando a extensão do dano for manifestamente desproporcional em relação ao grau de culpa. E lembramos que referido dispositivo também se aplica a dano, moral, conforme destacado por Flávio Tartuce (TARTUCE, Flávio. Responsabilidade Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 196). A solução jurídica é similar se a causa virtual for concomitante ou posterior à causa real: O autor da causa real responde pelo resultado, ao passo que o autor da causa virtual não responde por nada (por nada ter realizado). Há casos em que a causa virtual é posterior à causa real. Ex.1: Mato um cavalo a tiros (causa real), mas, minutos depois, surge um incêndio que ceifa a vida e todos os cavalos do local. O cavalo, se não fosse o tiro, muito provavelmente haveria de morrer de qualquer jeito por conta do incêndio (causa virtual). Ex.2: Há casos em que a causa virtual é concomitante à causa real. Ex.: No exemplo acima, o tiro (causal real) e o incêndio (causa virtual) ocorrem no mesmo momento, mas se consegue comprovar que a vítima já havia falecido com o incêndio quando o tiro a atingiu. Nesses casos, o incêndio (causa virtual) não afastará a responsabilidade do autor do tiro (causa real). Mas o valor indenizatório pode vir a ser inferior ao que seria devido se inexistisse a causa virtual, tudo conforme já expusemos. Assim, em regra, a causa virtual não tem relevância para responsabilizar o seu autor (relevância positiva) nem para isentar de responsabilidade o autor da causa real (relevância negativa da causa virtual), embora possa influir no valor da indenização. Não se confunda com casos de causalidade concorrente (duas ou mais causas que concomitantemente geram o resultado). Aí não há causa virtual, mas só causas reais. A hipótese aí será de responsabilidade solidária dos agentes por se tratar de uma coautoria (art. 942, parágrafo único, CC). Ex.: Vítima de tiro vem a falecer não apenas por causa do tiro, mas também pela conduta dolosa ou culposa do motorista da ambulância, que retardou a chegada da vítima ao hospital por ter preferido fazer uma parada para fazer um lanche no Mc Donald's. 3.2. Exceções Embora a regra seja a irrelevância da causa virtual para fins de responsabilização civil, há exceções. A primeira exceção é no caso de lei expressa nesse sentido. É o que se dá nos casos dos arts. 399, 862 e 1.218 do CC, conforme lembram Cristiano Chaves, Nelson Rosenvald e Felipe Braga Netto (FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 508). Exemplo: Art. 1.218 do CC. O possuidor de má-fé responde pelo perecimento fortuito da coisa, salvo se provar sua inevitabilidade mesmo se inexistisse a má-fé da posse. Pense em um carro que foi roubado (perecimento fortuito da coisa) e que estava sob a posse de um locatário que se recusara a devolver o bem no prazo contratual. O locatário estava de posse de má-fé. O carro provavelmente não teria sido roubado se tivesse sido devolvido no prazo contratual (a causa virtual). A causa virtual aí é levada em conta na responsabilização. A ideia é a de que, apesar de o resultado (perecimento) ter ocorrido por caso fortuito (causa real), ele poderia ter sido evitado se a coisa estivesse com o legítimo titular (causa virtual). As hipóteses dos arts. 399 e 862 do CC são similares: O devedor em mora ou o gestor de negócios que age contra a vontade manifesta ou presumível do interessado respondem por danos fortuitos, salvo se provar a sua inevitabilidade mesmo se não tivesse havido a irregularidade. 3.3. Situação da perda de uma chance A perda de uma chance é dano indenizável apenas se a chance for séria, real e razoável. Chances meramente hipotéticas não são indenizáveis. Nas palavras de Pablo Stolze  Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, na perda de uma chance, "como se trata da frustração de uma probabilidade concreta de ganho - mas sem que haja a certeza no acerto -, o valor indenizatório deve ser mitigado, ou seja, fixado por proporcionalidade". (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil. São Paulo: SaraivaJur, 2023, pp. 46-47). Por isso, não há falar em causa virtual ou hipotética no caso de perda de uma chance indenizável, mas sim de causa real. Ex.: Advogado perde prazo do recurso, o que impede que a parte tenha a chance de vencer o feito diante da existência de jurisprudência pacífica a seu favor. O dano sofrido pela parte é a chance de vitória no feito, e a sua causa é real: A não interposição de recurso consentâneo com a jurisprudência pacífica do tribunal. Se a jurisprudência do tribunal fosse contrária à tese do possível recurso, não haveria aí chance séria, real e razoável de êxito. Logo, o dano sofrido pela parte (a perda da chance de vitória no feito) decorrerá de uma causa hipotética ou virtual, razão por que não é indenizável. Afinal, a teoria da causalidade virtual não é admitida na responsabilidade civil, salvo lei expressa em contrário. 1 FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 506 2 É importante lembrar que concausas preexistentes não afastam a responsabilidade civil, embora possam influir na indenização. É a teoria da responsabilidade pelo resultado mais grave. Quem corta levemente uma pessoa hemofílica responderá pela morte desta. São irrelevantes a concausa preexistente (a hemofilia) e o fato de um leve corte não ser apto a matar uma pessoa não hemofílica. Poderá, porém, o juiz arbitrar um valor menor de indenização. O próprio art. 944, parágrafo único, do CC poderia ser invocado nesse sentido, por permitir reduzir a indenização quando houver manifesta desproporção entre a culpa e o dano (FARIAS, Cristino Chaves de; ROSENVALD, Nelson; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil, vol. 3: Responsabilidade Civil. Salvador: JusPodivm, 2022, p. 509).
Depois de tratar de que se pode chamar de uma propedêutica do Direito Civil Digital1 e dos direitos das crianças e adolescentes relacionados a tal temática2, no propomos, agora, a discorrer rapidamente sobre tema da maior importância, ligado à supressão e ocultação de dados pessoais, em especial nos ambientes digitais. Atualmente, os sistemas que utilizam tecnologias digitais dependem de dados em formato eletrônico, os quais são facilmente coletados, ocupam espaço mínimo e podem ser armazenados com custos cada vez mais reduzidos. Além disso, esses dados permitem replicação e transporte quase instantâneo. Esse cenário transforma a digitalização em um processo que não apenas facilita a coleta e o tratamento de informações, mas também possibilita sua utilização em escala crescente. Como resultado, grandes volumes de dados são coletados, processados e armazenados com uma velocidade antes inimaginável, popularizando expressões como mineração de dados e Big Data, entre outras. Enquanto no passado apenas fatos considerados relevantes eram registrados - primeiro em pedra, depois em madeira e, posteriormente, em papel -, os sistemas atuais capturam praticamente todos os eventos, por mais triviais ou aparentemente insignificantes que possam parecer. Cliques, chamadas, pagamentos, postagens, curtidas, consultas, compras, tempo de visualização e interações diversas são continuamente registrados. Esses dados, por sua vez, não apenas permanecem armazenados, mas tornam-se potencialmente analisáveis, interpretáveis e utilizáveis por sistemas de inteligência artificial e técnicas de mineração de dados cada vez mais avançadas, ampliando significativamente sua relevância e impacto na sociedade contemporânea. Assim, a era digital não apenas registra fatos, mas transforma o próprio conceito de registro, memória e informação. A consequência direta dessa transformação é a criação de um "memorial digital" permanente, onde praticamente nenhum detalhe se perde. Essa nova realidade traz imensos desafios jurídicos, éticos e sociais, especialmente no que concerne à proteção de dados pessoais. E um desses imensos desafios relaciona-se ao debate sobre a possibilidade de ocultar ou até mesmo excluir dados pessoais, trazendo à tona a complexa relação entre memória, identidade, liberdade e transformação.   Nesse ponto é bastante relevante o debate que vem sendo travado em relação ao denominado direito ao esquecimento, visto por parte da doutrina como verdadeiro direito fundamental implícito.3 Na sua essência, visa à definição de situações em que seria exigível, pelo titular, o apagamento de dados sobre sua pessoa que, de alguma forma, possam dificultar ou mesmo impedir o livre desenvolvimento da personalidade. É certo que está diretamente ligado ao direito à identidade, no sentido de sua autoconstrução, pois a divulgação de fatos passados sobre determinada pessoa pode negar-lhe a possibilidade de "[...] evoluir ao acorrentá-lo ao seu próprio passado".4 Assim, ligado ao direito à identidade, o direito ao esquecimento deve ser tido como o direito de ser diferente de si mesmo (tradução nossa),5 no sentido de ser diferente de uma versão anterior e, portanto, menos evoluída, da pessoa (na versão atual). Segundo Sartre, a identidade de uma pessoa não é fixa; ela é moldada continuamente através de escolhas ao longo da vida. Contudo, Sartre também fala sobre o conceito do "olhar do outro", onde a identidade de uma pessoa é fixada e limitada pela percepção dos outros.6 Na era digital, esse "olhar" pode ser entendido como a permanência de informações na internet que, uma vez publicadas, podem ser vistas e interpretadas por outros de maneira que cristalize a identidade de uma pessoa de forma negativa ou restritiva, impedindo a contínua construção da identidade e, consequentemente, de se tornar melhor, mais evoluído do que a versão anterior. Inúmeros outros filósofos poderiam ser citados. Contudo, pela brevidade necessária ao presente ensaio, cabe-nos ainda citar Nietzsche, que defende a ideia de "superar-se a si mesmo", que implica a possibilidade (ou até mesmo necessidade) de abandonar antigos valores, erros e identidades.7 A superação em Nietzsche representa muito mais que um método de desenvolvimento pessoal. Configura-se como uma ontologia da transformação, onde o ser humano é compreendido não como entidade estática, mas como processo permanente de criação e recriação. Obviamente, não se trata de um processo simples, ante o risco de desestruturação, a necessidade de resiliência e o potencial de angústia que toda travessia acarreta. Contudo, esse processo pode ser dificultado (ou até mesmo impedido) pelo reiterado resgate de fatos passados que aprisionam a identidade e a pessoa àquilo que ela deixou de ser (ou que almeja deixar).         Certamente, um caso hipotético, embora verossímil, pode elucidar de forma mais didática a complexidade dos direitos discutidos.8 Imagine-se um jovem bacharel em Direito, recém-diplomado, que se vê subitamente confrontado com uma oportunidade midiática logo após a cerimônia de colação de grau. Durante uma entrevista com um jornalista local, o recém-formado é interpelado sobre o instituto jurídico da "lesão contratual". No auge da euforia acadêmica, o entrevistado evidencia sinais de vulnerabilidade. Diante do questionamento técnico, sua resposta revela-se não apenas imprecisa, mas tecnicamente comprometida, amalgamando conceitos de direito civil de forma manifestamente equivocada. O repórter, percebendo o evidente constrangimento, insiste na pergunta, amplificando o desconforto do jovem jurista. A entrevista, capturada por um cinegrafista amador, rapidamente transpõe os limites locais, disseminando-se vertiginosamente nas redes sociais. Em menos de 24 horas, o vídeo ultrapassa 500 mil visualizações, sendo objeto de escárnio e produções satíricas que ridicularizam o momento de fragilidade intelectual. Anos de dedicação e aprimoramento profissional culminam em sua aprovação em concurso público, assumindo o cargo de magistrado em comarca do interior. Entretanto, o registro digital de seu momento de despreparo ressurge, circulando em grupos de WhatsApp e comunidades jurídicas on-line. Advogados, valendo-se da oportunidade, questionam seu mérito intelectual, utilizando o vídeo como suposto emblema de incompetência. Em audiências, alguns profissionais chegam a fazer provocações veladas sobre lesão contratual, unicamente com o propósito de ironizar o magistrado. A situação impacta profundamente sua trajetória. Cada processo relacionado ao tema evoca memórias do incidente, desencadeando um ciclo de arrependimento e sofrimento psicológico que transcende a esfera profissional. Ora, tal registro digital de um momento de fragilidade acadêmica, aparentemente efêmero e destituído de relevância intrínseca, revela-se um instrumento potencialmente devastador de desconstrução identitária. A exposição perpétua de uma fração momentânea da trajetória individual compromete fundamentalmente os princípios da autodeterminação informativa, na medida em que subtrai do sujeito a capacidade de gestão de sua própria narrativa pessoal. Tal captura tecnológica do instante, cristalizada e reproduzível indefinidamente, opera como mecanismo de violação da dignidade humana, transformando um episódio circunstancial em elemento redutor e estigmatizante da complexa identidade individual, que transcende exponencialmente qualquer registro fragmentário e descontextualizado. A permanência dessa informação nos ambientes digitais representa, portanto, uma modalidade contemporânea de aprisionamento existencial, onde a pessoa se vê refém de um momento específico, destituído de sua evolução, transformação e capacidade de ressignificação pessoal e profissional. Tudo isso nos leva a concluir, de maneira inafastável, que o direito à informação pública deve ser ponderado com outros direitos da personalidade, a fim de que situações como a presente, mas também inúmeras outras em que a informação pública não é (ou mesmo nunca foi) relevante, além, obviamente, de situações em que os dados tratados foram obtidos de forma ilegal, etc., possam ser excluídas ou, ao menos, ocultadas n(d)o ambiente digital. Diante de tal problemática, o projeto de reforma do Código Civil9, de forma bastante acertada, estabelece o direito à exclusão de dados pessoais e o direito à ocultação (desindexação) de dados pessoais. No primeiro caso, o projeto estabelece o seguinte: "Art. À pessoa é possível requerer a exclusão de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis expostos sem finalidade justificada, nos termos da lei. § 1º São suscetíveis de exclusão, nos termos do caput, além de outros, os dados: I - pessoais que deixarem de ser necessários para a finalidade que motivou a sua coleta ou tratamento; II - pessoais cujo consentimento que autorizou seu tratamento tenha sido retirado, ainda que autorizado por lei; III - cujo tratamento foi ou veio a ser objeto de oposição por seu titular; IV - pessoais tratados ilegalmente; V - que devam ser eliminados ao término de seu tratamento; VI - pessoais excessivamente expostos sem finalidade justificada. § 2º O direito à exclusão de dados pessoais e de dados pessoais sensíveis, de que cuida este artigo, não pode ser exercido enquanto seu tratamento ou divulgação: I - forem relevantes ao exercício da liberdade de expressão; II - forem manifestamente públicos; III - decorrerem do cumprimento de dever legal; IV - forem considerados excluídos do rol daqueles que a lei considera passíveis de exclusão." "Art. A pessoa pode requerer a exclusão permanente de dados ou de informações a ela referentes, que representem lesão aos seus direitos de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado. Parágrafo único. Para os fins deste artigo, são requisitos para a concessão do pedido: I - a demonstração de transcurso de lapso temporal razoável da publicação da informação verídica; II - a ausência de interesse público ou histórico relativo à pessoa ou aos fatos correlatos; III - a demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou aos seus representantes; IV - demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou aos seus representantes legítimos e nenhum benefício para quem quer que seja; V - a presença de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão e de informação; VI - a concessão de autorização judicial. § 1º Se provado pela pessoa interessada que a informação veio ao conhecimento de quem levou seu conteúdo a público, por erro, dolo, coação, fraude ou por outra maneira ilícita, o juiz deverá imediatamente ordenar sua exclusão, invertendo-se o ônus da prova para que o site onde a informação se encontra indexada demonstre razão para sua manutenção. § 2º Consideram-se obtidos ilicitamente, entre outros, os dados e as informações que tiverem sido extraídos de processos judiciais que correm em segredo de justiça, os obtidos por meio de hackeamento ilícito, os que tenham sido fornecidos por comunicação pessoal, ou a respeito dos quais o divulgador tinha dever legal de mantê-los em sigilo." Assim, vê-se que as condições para exclusão de dados correspondem, a desnecessidade para a finalidade original de coleta, a revogação de consentimento prévio necessário para a coleta e tratamento, a oposição do titular dos dados, o tratamento de qualquer forma ilegal de informações e, ainda, a existência de dados pessoais excessivamente expostos sem justificativa. Por outro lado, tal direito é limitado ante a necessidade de preservação de dados relevantes para liberdade de expressão, a manutenção de informações manifestamente públicas, o cumprimento de dever legal e naqueles casos em que os dados são classificados como passíveis de exclusão. Em complemento, permite-se a exclusão permanente dos dados pessoais que importem lesão aos seus direitos de personalidade e que fique demonstrada a irrelevância, de acordo com os parâmetros seguros enumerados, da manutenção da informação. Em complemento, o projeto trata do direito à ocultação (mera desindexação) da seguinte forma: "Art. À pessoa é possível requerer a aplicação do direito à desindexação, que consiste na remoção do link que direciona a busca para informações inadequadas, não mais relevantes, abusivas ou excessivamente prejudiciais ao requerente e que não possuem utilidade ou finalidade para a exposição, de mecanismos de busca, websites ou plataformas digitais, permanecendo o conteúdo no site de origem. Parágrafo único. São hipóteses de remoção de conteúdo, entre outras, as que envolvem a exposição de: I - imagens pessoais explícitas ou íntimas; II - a pornografia falsa involuntária envolvendo o usuário; III - informações de identificação pessoal dos resultados da pesquisa; IV - conteúdo que envolva imagens de crianças e de adolescentes." No caso da ocultação (ou desindexação), em princípio, não se faz necessária a exclusão dos dados pessoais, bastando unicamente retirar a facilidade de sua localização, especialmente por meio dos motores de busca. Assim, a desindexação representa uma solução tecnológico-jurídica estratégica que preserva o equilíbrio entre o direito à informação e a proteção da dignidade individual. Essa modalidade de tratamento de dados pessoais possui características específicas que a tornam mais dinâmica e menos invasiva que a exclusão completa, pois restringe unicamente a acessibilidade imediata. No julgamento do caso Google Spain, por exemplo, em que se reconheceu o direito à desindexação, entendeu o Tribunal de Justiça da União Europeia que a onipresença do motor de busca Google aumenta os riscos e, consequentemente, os danos potenciais às pessoas10 em contraposição a informação constante no site do jornal local, de difícil acesso sem o uso da "bússola" do buscador. O caso, julgado pelo TJ/UE em 2014, representa um marco fundamental na proteção de dados pessoais no ambiente digital, evidenciando a complexa relação entre o direito à informação e a preservação da intimidade individual. O litígio surgiu a partir de uma demanda apresentada por Mario Costeja González contra o Google e um jornal local espanhol. A questão central residia na permanência de uma antiga notícia sobre leilão de imóvel por dívidas, que continuava acessível através de buscas no motor de pesquisa, mesmo após significativa defasagem temporal. O Tribunal reconheceu aspectos revolucionários na dinâmica informacional contemporânea. Identificou-se que os motores de busca não são meros intermediários passivos, mas agentes que amplificam exponencialmente a visibilidade de informações. A onipresença digital transforma conteúdos locais e circunstanciais em registros globalmente acessíveis, potencialmente causando danos reputacionais desproporcionais. Por fim, o projeto de reforma estabelece o dever dos provedores de conteúdo e mecanismos de busca de criar procedimentos claros e de fácil acesso para que os direitos acima referidos sejam efetivados diretamente, sem a exigência de ação judicial para tanto.   A reflexão sobre a proteção de dados pessoais, especialmente no contexto digital, revela-se indispensável em uma sociedade que testemunha uma transformação avassaladora na forma como memórias, identidades e informações são registradas e acessadas. A era digital, ao redefinir o conceito de registro e memória, trouxe consigo a necessidade de equilibrar a liberdade de expressão e o direito à informação com a proteção da dignidade humana, da privacidade e do livre desenvolvimento da personalidade. Nesse cenário, os direitos à exclusão e à ocultação de dados pessoais emergem como ferramentas fundamentais para garantir que o avanço tecnológico não seja instrumento de perpetuação de desigualdades, estigmas ou constrangimentos, mas sim de promoção do bem-estar e da liberdade individual. O projeto de reforma do Código Civil revela-se altamente criterioso e oportuno ao tratar do tema, estabelecendo parâmetros sólidos e equilibrados para a proteção de direitos fundamentais no ambiente digital. A possibilidade de exclusão de dados, condicionada a critérios bem definidos, como a ausência de necessidade ou finalidade legítima, e o direito à desindexação, como solução menos invasiva, demonstram sensibilidade legislativa e alinhamento com os desafios contemporâneos. Essa abordagem não apenas promove a proteção da intimidade e da identidade, mas também respeita o interesse público e os princípios democráticos que sustentam a liberdade de expressão. Ao configurar tais direitos, o projeto reconhece a centralidade da autodeterminação informativa, permitindo que os indivíduos gerenciem sua narrativa pessoal sem que fragmentos descontextualizados do passado os aprisionem. Além disso, ao exigir que provedores de conteúdo e mecanismos de busca estabeleçam procedimentos claros e acessíveis para a efetivação desses direitos, o texto legislativo reforça a eficiência e a efetividade das garantias, minimizando a necessidade de judicialização e promovendo uma cultura de respeito à dignidade humana no ambiente digital. Por fim, a proposta legislativa vai além de simplesmente remediar problemas individuais; ela configura um marco civilizatório que busca harmonizar os avanços tecnológicos com os valores mais essenciais da humanidade. A disciplina robusta e bem fundamentada desses direitos é um reflexo de uma sociedade que reconhece a importância da memória, mas também a necessidade de permitir que indivíduos se transformem, evoluam e superem as limitações de seus próprios erros e circunstâncias. Trata-se, em última análise, de assegurar que a tecnologia seja ferramenta de emancipação e progresso, e não de opressão e regressão. É, portanto, um passo essencial para construir um futuro digital que respeite, promova e dignifique a complexidade da condição humana. _________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 MARTINS, Guilherme Magalhães. O direito ao esquecimento como direito fundamental. Civilistica.com, Revista Eletrônica de Direito Civil, Rio de Janeiro, a. 10, n. 3, p. 1-70, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 17 jan. 2023. 4 Ibid., p. 2. 5 Gomes de Andrade, Norberto Nuno. El olvido: el derecho a ser diferente... de uno mismo: una reconsideración del derecho a ser olvidado. IDP-Revista de Internet, Derecho y Política, Universitat Oberta de Catalunya, Barcelona, España, n. 13, passim, feb/2012. Disponível aqui. Acesso em: 11 ago. 2022. 6 Ver a respeito: SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução de Paulo Perdigão. 24. Ed., Petropolis, RJ: Vozes, 2015. 7 NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Tradução, introdução e notas Saulo Krieger. São Paulo: Edipro, 2020 (livro eletrônico). 8 Considerando a natureza delicada dos direitos discutidos, optou-se pela construção de um exemplo hipotético. Esta abordagem metodológica busca preservar os dados pessoais dos indivíduos eventualmente relacionados a situações análogas, garantindo que a discussão jurídica mantenha seu caráter acadêmico e reflexivo, sem expor ou revitimizar pessoas reais. 9 Disponível aqui. 10 No acórdão assentou-se que: "80. A este respeito, importa, antes de mais, salientar que, como foi declarado nos n.os 36 a 38 do presente acórdão, um tratamento de dados pessoais como o que está em causa no processo principal, realizado pelo operador de um motor de busca, é suscetível de afetar significativamente os direitos fundamentais ao respeito pela vida privada e à proteção de dados pessoais, quando a pesquisa através desse motor seja efetuada a partir do nome de uma pessoa singular, uma vez que o referido tratamento permite a qualquer internauta obter, com a lista de resultados, uma visão global estruturada das informações sobre essa pessoa, que se podem encontrar na Internet, respeitantes, potencialmente, a numerosos aspetos da sua vida privada e que, sem o referido motor de busca, não poderiam ou só muito dificilmente poderiam ter sido relacionadas, e, deste modo, estabelecer um perfil mais ou menos detalhado da pessoa em causa. Além disso, o efeito de ingerência nos referidos direitos da pessoa em causa é multiplicado devido ao importante papel desempenhado pela Internet e pelos motores de busca na sociedade moderna, que conferem caráter de ubiquidade às informações contidas numa lista de resultados deste (sic) tipo (v., neste (sic) sentido, acórdão eDate Advertising e o., C-509/09 e C-161/10, EU:C:2011:685, n.o 45)". OBS: Grafia conforme texto original. ([ESPANHA]. Tribunal de Justiça (Grande Secção). Acórdão do Tribunal de Justiça. Dados pessoais - Proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento desses dados - Diretiva 95/46/CE - Artigos 2.°, 4.°, 12.° e 14.° - Âmbito de aplicação material e territorial - Motores de busca na Internet - Tratamento de dados contidos em sítios web - Pesquisa, indexação e armazenamento desses dados - Responsabilidade do operador do motor de busca - Estabelecimento no território de um Estado-Membro - Alcance das obrigações desse operador e dos direitos da pessoa em causa - Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia - Artigos 7.° e 8.°. Google Spain SL; Google Inc. contra Agencia Española de Protección de Datos (AEPD). Mario Costeja González, 13 de maio de 2014. Disponível aqui. Acesso em: 10 mar. 2023.).
Dando sequência à reflexão sobre a proposta de Reforma do CC especificamente em relação ao Direito Civil Digital iniciada no artigo anterior1, passamos agora a abordar a proteção de crianças e adolescentes nesse contexto. Neste segundo texto, exploraremos como a proposta de legislação civil visa garantir a segurança, a proteção de dados pessoais e o bem-estar de crianças e adolescentes na era digital. Com o avanço da tecnologia e a popularização da internet, crianças e adolescentes estão cada vez mais presentes no ambiente digital. É inequívoco que este público, devido à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, está significativamente mais vulnerável aos riscos inerentes ao meio digital. Casos emblemáticos como o "Desafio do Apagão", um viral nas redes sociais onde pessoas induzem a própria asfixia até desmaiar. Essa prática perigosa resultou na morte de inúmeras crianças e adolescentes2, gerando, inclusive, ações contra as plataformas pelo fato do algoritmo "recomendar" tal desafio para infantes.3 Mesmo em cenários menos extremos, pesquisas científicas têm evidenciado que a exposição excessiva às telas compromete severamente o desenvolvimento físico, emocional e intelectual das novas gerações. Um dado alarmante revela que, pela primeira vez na história, observa-se uma redução no QI dos filhos em comparação aos pais4. Como alertam os especialistas, "o que impomos às nossas crianças é indesculpável. Sem dúvida, jamais na história da humanidade, uma tal experiência de embrutecimento cerebral foi realizada em tão larga escala." 5 Esse cenário traz à tona a necessidade urgente de garantir a proteção integral desse público vulnerável, assegurando seu melhor e superior interesse conforme estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente6. É fundamental que o espaço virtual seja um ambiente seguro e saudável, promovendo o desenvolvimento e o bem-estar dos jovens usuários. O Anteprojeto de Reforma do CC dedica quatro artigos específicos no Capítulo VI, intitulado "A presença e a identidade de crianças e adolescentes no ambiente digital", que materializam e fortalecem os princípios da proteção integral e do melhor interesse, adaptando-os às especificidades do contexto digital. Vale ressaltar que o Anteprojeto propõe uma proteção mais abrangente e concreta que aquela estabelecida pela LGPD, considerada modesta em relação ao público infantojuvenil, uma vez que esta se concentra primordialmente nas questões de consentimento e controle de dados pessoais7.      Para operacionalizar esta proteção, o Anteprojeto estabelece responsabilidades específicas e bem delineadas aos provedores de serviços digitais. A primeira delas, denominada dever de verificação eficaz da idade, impõe aos provedores a obrigação de implementar sistemas confiáveis para verificação etária dos usuários, impedindo que crianças e adolescentes acessem conteúdos inapropriados para sua faixa etária.  Trata-se de ponto crucial para a proteção dos menores, uma vez que o acesso a conteúdo inadequado pode causar sérios impactos em seu desenvolvimento psicológico, emocional e social, colocando até mesmo em risco a sua vida e integridade corporal, como demonstrado acima. A exposição prematura a materiais impróprios, como violência explícita, conteúdo sexual ou discurso de ódio, pode resultar em traumas, ansiedade, comportamentos inadequados e uma compreensão distorcida da realidade.  A segunda responsabilidade consiste no dever de assegurar o controle parental efetivo, pelo qual os provedores precisam disponibilizar ferramentas eficazes que permitam aos pais e responsáveis limitar e monitorar adequadamente o acesso dos jovens a determinados conteúdos e funcionalidades no ambiente digital. Embora existam soluções disponíveis no mercado para este fim, frequentemente estas se mostram ineficientes, pouco intuitivas ou de difícil acesso e compreensão pelo público em geral. A imposição deste dever aos provedores, com ênfase em sua eficácia, representa um avanço significativo na proteção integral de crianças e adolescentes no meio digital. Esta obrigação reconhece o papel fundamental dos pais e responsáveis como primeiros guardiões do desenvolvimento saudável dos menores, fornecendo-lhes instrumentos adequados para exercer essa supervisão de forma efetiva no contexto tecnológico atual. Ao estabelecer padrões mínimos de qualidade e usabilidade para estas ferramentas de controle parental, garante-se que a proteção dos menores no ambiente digital não seja apenas uma responsabilidade teórica, mas uma realidade prática e acessível a todas as famílias. A terceira responsabilidade corresponde ao dever de assegurar a proteção dos dados pessoais de crianças e adolescentes, em estrita conformidade com a lei 13.709, de 14/8/18 LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Embora tal dispositivo possa parecer redundante ou trivial à primeira vista, sua inclusão tem relevância jurídica significativa ao reafirmar expressamente a vigência e aplicabilidade das disposições da LGPD neste contexto específico. Esta reiteração normativa serve a múltiplos propósitos: reforça a importância da proteção de dados pessoais de menores como direito fundamental, evita potenciais interpretações que poderiam sugerir derrogação tácita das normas protetivas da LGPD, e estabelece uma ponte clara entre os diferentes marcos regulatórios que compõem o sistema de proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. Assim, garante-se maior segurança jurídica e efetividade na tutela dos direitos dos menores, especialmente considerando sua particular vulnerabilidade no contexto do tratamento de dados pessoais em plataformas digitais. Por fim, foi estabelecido o dever de proteção por design, impondo que se deve proteger os direitos das crianças e adolescentes desde a concepção do ambiente digital, garantindo que, em todas as etapas-desenvolvimento, fornecimento, regulação, gestão de comunidades, comunicação e divulgação-o melhor e superior interesse dos jovens seja observado. Trata-se do reforço na proteção por design estabelecida pela LGPD8 e representa um avanço significativo na tutela dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital, pois estabelece que a proteção deve ser considerada desde a concepção dos serviços e plataformas, e não apenas como uma adaptação posterior. Esta abordagem preventiva e estrutural garante que o melhor interesse dos jovens seja incorporado em todas as etapas do ciclo de vida dos serviços digitais - desde o desenvolvimento inicial, passando pelo fornecimento, regulação, gestão de comunidades, até a comunicação e divulgação. Tal princípio reconhece que a proteção efetiva não pode ser uma consideração secundária ou reativa, mas deve estar intrinsecamente integrada à própria arquitetura dos ambientes digitais.  Ao exigir que as plataformas considerem as necessidades e vulnerabilidades específicas dos usuários menores de idade desde o início, este dever promove uma mudança fundamental na forma como os serviços digitais são concebidos e implementados, priorizando a segurança e o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes. Esta abordagem proativa não apenas minimiza riscos potenciais, mas também cria um ambiente digital mais seguro e adequado, alinhando-se aos princípios fundamentais da proteção integral estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela CF/88. E tal dever também é imposto claramente aos criadores de produtos e serviços ligados às tecnologias da informação e comunicação destinados a crianças e adolescentes, uma vez que devem ser concebidos com a garantia de sua proteção integral e a prevalência de seus interesses, o que especificado pelo anteprojeto com a enunciação dos seguintes deveres decorrentes:  Dever de consideração dos direitos e limites das crianças e adolescentes, já que desde a concepção e projeto até a execução, disponibilização e utilização, devem considerar as capacidades e limites das crianças e adolescentes, adotando por padrão opções que maximizem a proteção de sua privacidade e minimizem a coleta e utilização de dados pessoais. Dever de uso de  linguagem adequada, impondo a utilização de linguagem clara, concisa e compatível com a idade dos usuários, facilitando a compreensão e promovendo uma experiência positiva e educativa. Dever de privacidade e segurança, que consiste em assegurar a privacidade e a segurança das crianças e dos adolescentes, em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a CF/88 e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Por fim, em uma disposição inovadora, o Anteprojeto proíbe expressamente a veiculação de publicidade em produtos ou serviços de tecnologia da informação destinados a crianças e adolescentes. Esta vedação abrange todas as formas de exibição de produtos ou serviços, incluindo plataformas gratuitas de compartilhamento de conteúdo e redes sociais. É importante ressaltar que o impacto da publicidade nas crianças já foi considerado pelo legislador brasileiro ao estabelecer9, no CDC, que se considera abusiva a publicidade que explora a deficiência de julgamento e experiência das crianças. Ao vedar a publicidade no ambiente digital, o anteprojeto vai além, reconhecendo as peculiaridades e os riscos específicos deste contexto tecnológico. Esta abordagem mais rigorosa se justifica pelas características próprias do meio digital, que potencializam os riscos da publicidade direcionada ao público infantil. No ambiente virtual, as técnicas publicitárias são mais sofisticadas e persuasivas, utilizando recursos interativos, personalização algorítmica e elementos lúdicos que tornam ainda mais difícil para as crianças distinguirem conteúdo comercial de entretenimento. Além disso, a exposição constante e a capacidade de coleta e processamento de dados comportamentais permitem estratégias de marketing altamente direcionadas e potencialmente mais manipuladoras. Portanto, a vedação total da publicidade direcionada a crianças no meio digital representa uma resposta proporcional e necessária para proteger efetivamente este público especialmente vulnerável das práticas comerciais predatórias que se desenvolveram no contexto das novas tecnologias.10 Diante disso, é correto afirmar que o Anteprojeto de Reforma do CC representa um marco significativo na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, estabelecendo uma proposta de arcabouço normativo robusto e abrangente. As disposições demonstram uma compreensão aprofundada dos desafios contemporâneos e das vulnerabilidades específicas do público infantojuvenil no contexto digital. A implementação destes dispositivos, aliada aos mecanismos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, tem o potencial de criar um ambiente digital mais seguro e propício ao desenvolvimento saudável das novas gerações. Contudo, o sucesso desta iniciativa dependerá da criação de uma cultura de proteção de dados pessoais, da fiscalização adequada pelos órgãos competentes e da atuação firme do Poder Judiciário.  A proibição da publicidade direcionada ao público infantojuvenil e a imposição de deveres específicos aos provedores de serviços digitais demonstram uma postura assertiva do legislador na proteção dos interesses das crianças e adolescentes. Estas medidas, embora possam enfrentar resistência do mercado, são fundamentais para garantir que o ambiente digital não se torne um espaço de exploração comercial predatória deste público vulnerável. __________ 1 Disponível aqui. 2 Ver a respeito: Disponível aqui. Acesso em 16 out. 2024. 3 Ver a respeito: Disponível aqui. Acesso em 16 out. 2024. 4 Conforme: DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2023.   5 Idem, p. 273. 6 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 7 Conforme se vê do art. 14 da LGPD. BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 8 Estabelecido pelo art. 46, § 2º da LGPD, que assim dispõe:  Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. (...). § 2º As medidas de que trata o caput deste artigo deverão ser observadas desde a fase de concepção do produto ou do serviço até a sua execução. 9 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 10 Ver a respeito: ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
Dentre as inúmeras e importantíssimas inovações trazidas pelo anteprojeto de reforma do CC1, uma merece especial destaque: o tratamento jurídico do assim chamado "Direito Civil Digital", inserido no livro VI da proposta apresentada.   O texto é bastante abrangente e foi estruturado em dez capítulos. O Capítulo I estabelece as bases do Direito Civil Digital, incluindo princípios e fundamentos, com foco na proteção da dignidade, privacidade e propriedade no ambiente digital, bem como na promoção da inovação e acessibilidade. Capítulo II aborda os direitos das pessoas naturais e jurídicas no ambiente digital, enfatizando a proteção de dados, direitos de personalidade, liberdade de expressão e critérios para determinar a licitude dos atos digitais. O Capítulo III define e regulamenta as situações jurídicas digitais, estabelecendo direitos e deveres emergentes das interações digitais. O Capítulo IV assegura o direito a um ambiente digital seguro e transparente, destacando a importância de práticas de moderação de conteúdo que respeitem as liberdades individuais. O Capítulo V detalha o conceito de patrimônio digital, estabelecendo diretrizes para sua gestão e transmissão hereditária, além de abordar o tratamento de dados pessoais no contexto digital. O Capítulo VI foca na proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital, exigindo medidas como verificação de idade e garantia de acesso a conteúdos apropriados. O Capítulo VII estipula diretrizes para o desenvolvimento e implementação de sistemas de inteligência artificial, enfatizando não-discriminação, transparência e responsabilidade civil. O Capítulo VIII aborda a validade e os princípios dos contratos celebrados digitalmente, assegurando que cumpram os mesmos requisitos legais dos contratos tradicionais. O Capítulo IX: Define as modalidades de assinaturas eletrônicas e estabelece os requisitos para sua validade e uso em documentos jurídicos. O Capítulo X estrutura normas para a realização de atos notariais eletrônicos, garantindo sua autenticidade, integridade e confidencialidade, legitimando legislativamente um importante provimento do CNJ surgido durante a pandemia. Na atualidade, a "digitalização da sociedade", decorrente da penetrabilidade das tecnologias digitais, em especial da internet, em praticamente todos os setores da existência humana, ressignificou a expressão "navegar é preciso". De fato, parcela considerável (e crescente) das atividades humanas depende do uso das tecnologias digitais, a ponto de tornar-se impossível pensar a forma de ser e viver atual sem sua utilização. De instrumento, como toda técnica, a internet se tornou o ambiente2, moldando, assim, as condições reais e concretas da existência humana. Luciano Floridi, a partir dessa constatação, cunhou o neologismo "onlife" para designar a forma de vida atual, em que a nova condição humana ocasionou a superação da barreira entre o virtual e o real. Na sua visão, a aceitação das tecnologias da informação e da comunicação pelas pessoas afeta radicalmente a condição humana, via transformação das interações das pessoas consigo mesmas, com os demais e com a natureza (tradução nossa)3.   Este novo paradigma altera consideravelmente as relações sociais e econômicas, criando uma dependência em relação ao tecnicismo digital que permeia praticamente todas as atividades humanas. Nesse contexto, as rápidas transformações econômicas e sociais possibilitadas pela internet permitiram um exercício mais efetivo de uma série de direitos fundamentais, especialmente aqueles ligados à liberdade. Contudo, como toda inovação tecnológica, a transformação digital é ambivalente, trazendo consigo inúmeros riscos a diversos direitos, riscos estes amplificados, primeiro, pelo desequilíbrio de poder entre os detentores das tecnologias digitais, os "Senhores da Informação"4,  e os usuários; segundo, pela penetrabilidade da internet, que, como ressaltado, atrai para o campo digital a maioria dos ambientes sociais5.  O direito, como "saber prático"6,  nessa conjuntura, necessita adaptar-se com o fito de criar instrumentos aptos a analisar e a compreender as transformações tecnológicas e, com isso, regular adequadamente as relações jurídicas decorrentes7. Em outras palavras, a ciência do direito, para servir à sociedade, deve ser sempre atualizada e altamente ligada ao desenvolvimento social, o que inclui - mas não se restringe - os avanços tecnológicos8 digitais. E, sendo o Direito Civil o ramo do Direito que regulamenta as relações cotidianas entre as pessoas, garantindo seus direitos e deveres nas relações privadas, tem urgência em voltar sua atenção, de forma bastante detida, para esse novo "ambiente" da experiência humana. Como dissemos em recente passagem, falando especificamente do tratamento dos dados pessoais mas que pode ser aplicado a totalidade da matéria, "trata-se de um encontro desafiador entre o novo e o velho, entre a era digital e os conceitos tradicionais do Direito Civil9."  Isso em razão de que se está diante de uma realidade complexa que o sistema jurídico enfrenta na atualidade. O encontro entre os conceitos tradicionais do Direito Civil e as inovações trazidas pela era digital representa um dos maiores desafios jurídicos da atualidade. Este embate entre o "velho" e o "novo" se manifesta em diversas áreas fundamentais do Direito Civil, exigindo uma profunda reflexão e adaptação dos princípios jurídicos estabelecidos. No âmbito da personalidade e capacidade jurídica, o ambiente digital introduz complexidades antes inimagináveis. A existência de identidades digitais e avatares questiona os limites tradicionais da personalidade, enquanto a persistência de perfis em redes sociais após a morte do usuário desafia as noções estabelecidas de capacidade jurídica. O caso emblemático da herança digital, onde familiares buscam acesso às contas online de entes falecidos, ilustra vividamente como o mundo virtual está redefinindo conceitos fundamentais do Direito Civil. A concepção tradicional de propriedade e bens também se vê desafiada pela realidade digital. A emergência de bens intangíveis, como criptomoedas e NFTs, questiona a aplicabilidade dos conceitos clássicos de propriedade. Além disso, a proteção da propriedade intelectual em ambientes virtuais, especialmente em relação a conteúdos gerados por usuários em plataformas digitais, apresenta desafios inéditos. A comercialização de terrenos virtuais em metaversos, por exemplo, exemplifica como o valor econômico e a noção de propriedade estão sendo redefinidos no contexto digital. No campo dos contratos, a revolução digital impõe uma revisão profunda dos princípios estabelecidos. A proliferação de contratos eletrônicos e a emergência de smart contracts baseados em blockchain desafiam as noções tradicionais de manifestação de vontade e formalização de acordos. A simples ação de clicar para aceitar os termos de uso de um aplicativo levanta questões complexas sobre a natureza do consentimento e a formação de vínculos contratuais no ambiente digital. A responsabilidade civil, por sua vez, enfrenta desafios sem precedentes na era digital. A atribuição de responsabilidade por danos causados por sistemas de inteligência artificial autônomos ou por conteúdos gerados por usuários em plataformas online desafia os fundamentos tradicionais da teoria da responsabilidade. O caso hipotético de um acidente causado por um veículo autônomo ilustra a complexidade de determinar a responsabilidade em um cenário onde a intervenção humana direta é minimizada. Por fim, a privacidade e a proteção de dados emergem como questões centrais no encontro entre o Direito Civil e o mundo digital. A coleta massiva de dados pessoais, o perfilamento algorítmico e o surgimento do direito ao esquecimento desafiam a concepção tradicional de privacidade como o simples "direito de ser deixado só". O uso generalizado de cookies e rastreadores online para criar perfis detalhados de consumidores exemplifica como as práticas digitais estão redefinindo os limites da privacidade e do consentimento10.  Este panorama de desafios evidencia que o encontro entre o Direito Civil tradicional e a era digital não é apenas um obstáculo a ser superado, mas uma oportunidade única de evolução jurídica. A tarefa que se impõe aos juristas, legisladores e à sociedade como um todo é a de reinterpretar criativamente os princípios fundamentais do Direito Civil. O objetivo é preservar os valores essenciais que têm guiado as relações privadas por séculos, adaptando-os simultaneamente às novas realidades tecnológicas. Este processo demanda um equilíbrio delicado entre a manutenção da segurança jurídica e a flexibilidade necessária para acomodar as rápidas e contínuas mudanças tecnológicas. Em última análise, o sucesso nessa empreitada garantirá que o Direito Civil continue a cumprir seu papel fundamental na regulação das relações privadas, mesmo em um mundo cada vez mais digitalizado. A adaptação do Direito Civil à era digital não é apenas uma necessidade prática, mas um imperativo para assegurar que a proteção dos direitos individuais permaneça relevante e eficaz no século XXI. Após mais de 30 anos de quase absoluta ausência de regulação do ambiente digital, período em que muitas foram as tensões e desafios, verifica-se no presente uma crescente regulação mundial, a exemplo da União Europeia e dos Estados Unidos. Neste cenário, a proposta de reforma do CC brasileiro mostra-se não apenas necessária, mas também oportuna. A inclusão do Direito Civil Digital no anteprojeto de reforma do CC representa um marco significativo na evolução do ordenamento jurídico brasileiro. Esta iniciativa reconhece a realidade "onlife" em que vivemos e busca estabelecer um equilíbrio entre a proteção dos direitos fundamentais e o fomento à inovação tecnológica. Ao abordar questões cruciais dessa nova realidade, o "novo" CC se propõe a ser um instrumento jurídico atual e eficaz, capaz de enfrentar os desafios da era digital. Desta forma, o Brasil se alinha às tendências internacionais de regulação do ambiente digital, fornecendo maior segurança jurídica para cidadãos e empresas, e promovendo um desenvolvimento tecnológico responsável e ético. Concluída esta breve análise propedêutica, os próximos artigos se dedicarão ao exame minucioso de algumas das principais inovações propostas pelo anteprojeto de reforma do CC no âmbito do Direito Civil Digital. Exploraremos em detalhes como essas mudanças buscam adaptar nosso ordenamento jurídico às complexidades da era digital.  ___________ 1 Disponível aqui. 2 Umberto Galimberti considera que a técnica, como um todo, se tornou o ambiente que cerca e constitui todos os indivíduos. Tal generalização não é indene de discussões. Contudo, parece não haver dúvida de que a internet exerce efetivamente esse papel. (GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. passim.). Em sentido próximo, Manuel Castells inicia seu livro A galáxia da internet afirmando que "[a] Internet é o tecido das nossas vidas" (CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 7). 3 FLORIDI, Luciano. The onlife manifesto: being human in a hyperconnected era. London: Springer, 2015. p. 2.  4 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. São Paulo: Renovar, 2008.  p. 68. 5 Acerca da ambivalência da internet, esclarece Manuel Castells que "[a] elasticidade da internet a torna particularmente suscetível a intensificar as tendências contraditórias presentes em nosso mundo. Nem utopia nem distopia, a internet é a expressão de nós mesmos através de um código de comunicação específico, que devemos compreender se quisermos mudar nossa realidade". CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 11. 6 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 185-188. 7 Acerca da dificuldade de o direito acompanhar, na atualidade, a evolução tecnológica, colhe-se a seguinte passagem: "Os direitos humanos foram forjados no seio de sociedades em que as mudanças ocorreram de forma lenta e gradual, de modo que a ciência jurídica estivesse em condições de as acolher e as acomodar nos conceitos jurídicos correspondentes. Hoje, o grande desafio que se coloca aos operadores do direito e aos próprios cidadãos é o de dispor de categorias de análise e de compreensão desses novos fenómenos". PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. Madrid: Universitas, 2012a. p. 9. Tradução nossa. Texto original: "Los derechos humanos se forjaron en el seno de sociedades en las que los câmbios se producian de manera lenta y paulatina, por lo que la ciencia jurídica se hallaba em condiciones de poder assumirlos e alojarlos en los correspondientes conceptos jurídicos. Hoy, el gran reto que se plantea a los operadores del Derecho y a los propios ciudadanos reside em contar com unas categorias de análisis y de comprensión de esos nuevos fenómenos". (Ibid., p. 9). 8 SAARENPÄÄ, Ahti. Derechos digitales.  In: BAUZÁ REILLY, Marcelo (Directordir.). El derecho de las TIC en Iberoamérica. Montevideo, Uruguay: Ed. LLa Ley Uruguay, 2019. cap. 10, p. 291-326. p. 292. 9 BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 10 Ver a respeito: BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 
Qual é a natureza jurídica da Comissão de Representantes, que é obrigatória no caso de incorporação imobiliária? A resposta é que a sua natureza jurídica é de sujeito de direito despersonalizado. Trataremos disso neste artigo. A teoria da personalidade jurídica tem de lidar com situações sui generis que não se encaixam perfeitamente no seu figurino. Cuida-se dos sujeitos de direito despersonalizado. Por conta disso, é equivocado dizer que somente quem tem personalidade jurídica pode ter direitos e deveres. De um lado, a personalidade jurídica é definida como a aptidão de ter direitos e deveres. As pessoas naturais e as pessoas jurídicas detêm personalidade jurídica. De outro lado, o ordenamento Aparecida, de modo excepcional, por imperativo prático-jurídico, viu-se forçado a admitir que determinadas massas patrimoniais ou aglomeração de pessoas possam ter direitos e deveres. É o caso, por exemplo, do espólio, que é uma massa patrimonial que, por razões prático-jurídicas, precisa ser reconhecida como sujeito de direito para, por exemplo, celebrar contratos, ser parte em ações judiciais etc. Com a morte da pessoa natural, o patrimônio desta é indivisível até a partilha entre os herdeiros (art. 1.791 do Código Civil - CC). Enquanto isso, há necessidade de "dar voz" a esse patrimônio, para que, até a concretização da partilha, ele possa praticar atos jurídicos estritamente necessários à conservação e à boa gestão dos objetos e das relações jurídicas do falecido. Por isso, o espólio pode ser parte em processos judiciais e em contratos, por exemplo. Há outros entes despersonalizados, como os fundos de investimento, a massa falida, o condomínio edilício1 etc. A diferença prática entre o sujeito de direito personalizado e o despersonalizado não é um exercício diletante de etiquetagem doutrinária. Gera repercussão prática, conforme já tivemos a oportunidade de detalhar em artigo intitulado "Entes Despersonalizados: Controvérsias jurídicas e lacunas legislativas".2 O sujeito de direito personalizado - que é aquele dotado de personalidade jurídica - sujeita-se a uma legalidade ampla no Direito Privado. Tudo lhe é permitido, salvo o proibido em lei. Por isso, uma pessoa natural ou uma pessoa jurídica têm aptidão para celebrar qualquer tipo de contrato e praticar qualquer outro ato jurídico. Já o sujeito de direito despersonalizado submete-se a uma legalidade estrita: Tudo lhe é vedado, salvo lei, costumes ou princípios. Esse é o motivo de um condomínio edilício não poder comprar imóveis em outras cidades para fins meramente especulativos, ainda que tenha contado com a unanimidade dos seus condôminos. Ele não tem aptidão de ter direitos e deveres sem conexão estritamente com a sua razão de ser. Condomínio edilício existe para garantir a coexistência dos condôminos, que estão unidos obrigatoriamente por conta do compartilhamento jurídico-arquitetônico das edificações.3 Isso protegeria os condôminos minoritários de um delírio da maioria em aprovar "taxas extras" altíssimas para levar o condomínio a fazer operações desconexas com a finalidade existencial do condomínio edilício, como comprar ações na Bolsa de Valores, "montar uma empresa" etc. Nesse contexto, entendemos que a Comissão de Representantes, apesar do laconismo legal, é um sujeito de direito despersonalizado. Ela, por lei, reúne todos os adquirentes de "imóveis na planta" ou, em palavras mais técnicas, todos os adquirentes de unidades autônomas em regime de incorporação imobiliária. A constituição da Comissão de Representantes é obrigatória no prazo de seis meses do registo da incorporação imobiliária. E será composta, no mínimo, por três membros escolhidos entre os adquirentes. A constituição dá-se por ata de assembleia devidamente registrada no Cartório de Títulos e Documentos (art. 50, caput e § 1º, lei 4.591/64). Como sujeito de direito despersonalizado, a Comissão de Representantes pode ser parte em atos jurídicos que tenham estrita conexão finalística com sua razão de ser. Mas é preciso tomar cuidado: A Comissão de Representantes atua como um síndico do condomínio protoedilício. O condomínio protoedilício é uma espécie de nascituro do futuro condomínio edilício e nasce com o registro da incorporação. Carlos E. Elias de Oliveira e Flávio Tartuce utilizaram essa expressão (condomínio protoedilício) para unificar doutrinariamente diversos nomes empregados pela legislação para se referir ao mesmo sujeito, como estes: Condomínio sobre as frações ideais (art. 32, § 15, da lei 4.591/64) e condomínio por frações autônomas (art. 213, § 10, da lei 6.015/73).4 O condomínio protoedilício também é um sujeito de direito despersonalizado. Diante disso, quando a lei 4.591/64 prevê direitos e deveres à Comissão de Representantes, ela, na verdade, está endereçando seus comandos ao condomínio protoedilício, que será operacionalizado pela Comissão de Representantes (que é o síndico desse tipo de condomínio). Houve certa atecnia da lei 4.591/64, pois ela, em alguns casos, menciona o síndico (no caso, a Comissão de Representantes) quando deveria ter citado o condomínio protoedilício. Essa atecnia, porém, é inofensiva, pois o importante é a tutela dos direitos dos adquirentes das unidades em regime de incorporação imobiliária. Em suma, entendemos que, como parte dos atos jurídicos devidos (como contratos, propositura de ações etc.), o condomínio protoedilício é que deverá figurar como parte, sob a representação da Comissão de Representantes. Sob essa ótica, citamos exemplos. Conforme a lei 4.591/64, a Comissão de Representantes tem direito de exigir do incorporador a entrega trimestral do andamento da obra e, no caso de haver patrimônio de afetação, dos extratos desse patrimônio (art. 31-D, IV e VI; e art. 43, I). Na verdade, a titularidade do direito aí é do condomínio protoedilício, que será representado pelo seu "síndico" (a Comissão de Representantes). Se o incorporador descumprir esse dever, o condomínio protoedilício poderia figurar como parte no polo ativo de uma ação judicial para exigir a entrega desses documentos: a Comissão de Representantes atuará apenas como representante do condomínio protoedilício. Também, à luz do texto legal, a Comissão de Representantes agirá nas hipóteses de destituição do incorporador, de assunção da condução das obras e em outras hipóteses similares (art. 31-F; art. 43; todos da lei 4.591/64). Na verdade, quem praticará os atos jurídicos é o condomínio protoedilício, representado pela Comissão de Representantes. Há momentos, porém, em que o legislador agiu com a mais adequada técnica. Por exemplo, de modo extremamente técnico, o art. 213, § 10, II, da lei 6.015/73 prevê que, em procedimentos de retificação imobiliária, será exigida a manifestação do condomínio protoedilício, representado pela Comissão de Representantes.5 Alertamos que, embora o art. 43, § 3º, II, "c", da lei 4.591/64 faça menção à obtenção do CNPJ pelo condomínio protoedilício por provocação da Comissão de Representantes após a destituição do incorporador, a lei não vedou qualquer obtenção de CNPJ anteriormente. Aliás, entendemos que é dever do Fisco fornecer o CNPJ ao condomínio protoedilício mesmo antes da destituição do incorporador, sempre que houver requerimento da Comissão de Representantes. Os atos infralegais da Receita Federal precisam ser atualizados nesse ponto. Na prática, porém, em grande parte dos casos, não há muita utilidade na obtenção do CNPJ. É que, antes da destituição do incorporador, o papel da Comissão de Representantes concentra-se em basicamente fiscalizar o incorporador e tutelar o direito de propriedade dos adquirentes (como no procedimento de retificação extrajudicial na forma do art. 213, § 10, II, da lei 6.015/73). O fato é que, mesmo CNPJ, o condomínio protoedilício pode figurar como parte em processos judiciais e em contratos. Afinal de contas, CNPJ não é um conceito de Direito Civil; não define quem pode ter direitos e deveres. CNPJ é apenas um número didático-fiscal, de natureza cadastral, para viabilizar a atividade de fiscalização tributária. Enfim, o condomínio protoedilício é um sujeito de direito despersonalizado; seu "síndico" é a Comissão de Representantes, que também é um sujeito de direito despersonalizado. Quanto à organização interna, a lei 4.591/64 dá liberdade aos adquirentes, que podem eleger um administrador para "assinar" em nome da Comissão de Representantes ou podem até exigir sempre a "assinatura concomitante" de todos os adquirentes na atuação da Comissão de Representantes. Deixaremos, porém, esse debate da organização para outro momento. __________ 1 Há quem sustente que o condomínio edilício é dotado de personalidade jurídica. Deixamos de aprofundar o tema aqui. 2 Disponível aqui. 3 Anotamos que, do ponto de vista prático, nada mudaria se, tal como sugere o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, fosse expressamente reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício com a proibição de que pratique atos alheios à sua finalidade existencial. O texto do Anteprojeto está disponível aqui. 4 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio. Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP). Disponível aqui. Publicado em 23 de janeiro de 2023. 5 "Art. 213. (...) (...) § 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte: I - o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos; II - o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes".
1. Introdução Este artigo discute o teto indenizatório no caso de responsabilidade civil por transporte aéreo internacional. Trata-se de tema relevante por ter sido fruto de harmonização jurídica entre os países signatários da Convenção de Montreal. O tema agitou intensamente a jurisprudência. Mas já podemos enxergar uma orientação estabilizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a qual apontaremos neste artigo. Desde logo, cabe um alerta: não trataremos de transporte aéreo nacional, e sim de internacional. O transporte aéreo nacional está fora do âmbito normativo da Convenção de Montreal. Logo, o teto indenizatório abaixo abordado apenas se aplica a transporte aéreo internacional.  Passamos a aprofundar o tema. 2. Indenização em transporte áereo internacional de pessoas e de carga Em transporte aéreo internacional de pessoas e de carga, a indenização a ser paga pelo transportador sujeita-se ao teto previsto nos arts. 21 e 22 da Convenção de Montreal (decreto 5.910/2006), que sucedeu a Convenção de Varsóvia (Decreto nº 20.704/1931). Segundo o art. 22, itens "2" e "3", dessa Convenção, esse teto pode ser flexibilizado no caso de o dano ter recaído sobre a bagagem do passageiro ou sobre a carga transportada, desde que, no momento da entrega da coisa, tenha sido declarado expressamente o seu valor e tenha sido pago o acréscimo de preço eventualmente cobrado. Os valores dos tetos estão em Direito Especial de Saque (DES), cujo valor, em real, oscila. A conversão pode ser feita no site do Banco Central1. No caso de atraso de voo, o teto indenizatório é de 4.150 DES, o que, em julho de 2005, equivalia a cerca de R$ 31.000,00. Em transporte de bagagem, o limite indenizatório por avarias, perdas ou atrasos é de 1.000 DES, ou seja, cerca de R$ 7.000,00. Para morte ou lesão a passageiros, o teto é de 100.000 DES, ou seja, cerca de R$ 739.330,00. A ideia é, em voos internacionais, dar previsibilidade financeira ao transportador diante de um risco inerente à sua atividade, permitindo-lhe contratar seguro e repassar o gasto com o pagamento do prêmio desse seguro ao preço final cobrado do transportado. Se o cliente quiser uma indenização superior, cabe-lhe fazer a declaração do valor da coisa transportada e pagar eventual acréscimo de preço exigido pelo transportador. Esse acréscimo, na prática, será o repasse do custo adicional com a contratação de seguro. Trata-se de regra adotada pelos diversos países signatários da Convenção de Montreal. Trata-se de convenção importante para saúde financeira das empresas de transporte aéreo, ao permitir o adequado planejamento financeiro mediante a contratação de seguros e a correlata formação do preço final do serviço. Sem essa previsibilidade, as empresas de transporte aéreo ficariam sujeitas a uma situação de imprevisibilidade financeira diante dos diversos valores indenizatórios que poderiam ser arbitrados pelo Poder Judiciário de diferentes países, o que acabaria por inviabilizar a atividade econômico ou por estimular um aumento excessivo do preço do serviço de transporte. Alertamos que o entendimento acima também vale para transporte internacional aéreo de cargas, e não apenas de pessoas (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, Rel. Min. Carmén Lúcia, Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 13/06/2024). Assim, se uma empresa que contrata o transporte aéreo internacional de carga sem informar o valor dos bens transportados e consequentemente sem pagar eventual acréscimo de preço por conta do seguro não terá direito a indenização por dano material em importe superior ao teto da Convenção de Montreal. O art. 22, itens "2" e "3", dessa convenção só flexibiliza o teto indenizatório para a hipótese de haver essa declaração especial de valor dos bens e eventual pagamento do preço adicional do serviço2. O STF somente afasta o teto indenizatório supracitado em uma hipótese: indenização por dano moral. Isso, porque o art. 22 da Convenção de Montreal não faz qualquer menção aos danos morais. No caso de dano moral, aplicam-se as leis nacionais, inclusive o CDC (STF, Tema 210; RE 1.394.401/SP, Pleno e RE 636.331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 25/05/2017). O texto constitucional dispõe expressamente sobre o tema (art. 178, caput, CF). Nesse sentido, o STF admitiu a condenação da empresa aérea Lufthansa ao pagamento de R$ 12.000,00 a título de indenização por dano moral causado pelo atraso de voo e extravio de bagagem em transporte aéreo internacional. Não aplicou o limite de valores das convenções internacionais supracitadas (STF, RE 1.394.401/SP, Pleno). O STJ segue a mesma linha (STJ, REsp 1842066/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 15/06/2020). Embora o julgado acima lide com transporte de pessoas, entendemos que ele também abrange transporte aéreo internacional de cargas. Trata-se de hipótese pouco usual, pois o mais comum é que se fale em dano moral em transporte aéreo internacional de pessoas, em hipóteses de transtornos causados ao passageiro por danos a si ou à sua bagagem. Seja como for, teoricamente, seria possível discutir indenização por dano moral no caso de transporte internacional apenas de carga. Pense, por exemplo, no extravio de uma carga que consista no cadáver de um familiar. Entendemos que, mesmo no caso de transporte internacional de carga, o teto indenizatório da Convenção de Montreal não será aplicável para o dano moral pelos mesmos motivos já citados acima. Afinal, o dano moral não está no âmbito normativo dessa convenção, que só trata de dano material, conforme textualmente afirmado pelo Ministro Gilmar Mendes no seu voto no julgamento do supracitado RE 636.331. Nada impede, porém, que, em relações não consumeristas, as partes, por pacto expresso, imponham um limite de indenização por dano moral no caso de transporte de carga. Afinal de contas, não há motivos para considerar abusiva essa cláusula em transportes feitos por empresas, que, com a cláusula, alocarão os seus riscos. O art. 421-A do CC prestigia a alocação de riscos definida pelas partes. Todavia, em relações de consumo, cláusula que limite a indenização por dano moral deve ser considerada abusiva à luz do art. 51 do CDC, ainda mais por estarmos a tratar de direitos da personalidade. O risco de, por conta de um acidente aéreo, causar a morte ou a incapacidade física de uma pessoa não pode ser limitado por uma cláusula contratual imposta à parte mais vulnerável contratualmente, o consumidor. Cabe um alerta: tudo o que foi exposto acima estende-se contra a seguradora que se sub-rogou nos direitos do segurado que sofreu o dano. Afinal de contas, trata-se de sub-rogação: o direito é igual, mas sob outra titularidade. Suponha que uma empresa contrate o transporte de uma carga. Por cautela, essa empresa, pessoalmente, contrata um seguro para receber o valor integral no caso de extravio. Acontecendo o sinistro, a seguradora pagará à empresa a cobertura contratada e, assim, sub-rogar-se-á nos direitos indenizatórios dessa empresa contra o transportador. Com essa sub-rogação, a seguradora poderá exercer direito de regresso contra o transportador, pleiteando a indenização que seria devida ao segurado. Ora, nesse caso, o teto indenizatório da Convenção de Montreal será aplicado contra a seguradora nesse pleito regressivo. Nesse sentido, em um caso de transporte internacional aéreo de carga, o STF restringiu ao teto indenizatório da Convenção de Montreal o valor a ser pago por uma importante transportadora aérea3 a uma seguradora4 que havia se sub-rogado nos direitos do dono da mercadoria avariada. Na ação de regresso proposta contra a transportadora, a seguradora pleiteava o reembolso do valor de R$ 248.916,22, que ela havia pagado ao dono da mercadoria a título de cobertura securitária. Todavia, o STF endossou o entendimento do TJSP nesse caso e limitou esse reembolso ao teto indenizatório do art. 22, item "3", da Convenção de Montreal (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, Rel. Min. Carmén Lúcia, Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 13/06/2024; TJSP, Apelação 1103637-14.2018.8.26.0100, 13ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Nelson Jorge Júnior, DJe 13/02/2020). 3. Conclusão A pacificação, pelo STF, do tema acerca do limite indenizatória da indenização em transporte aéreo internacional é salutar para dar previsibilidade a esse importante mercado. Na prática, as empresas de transporte aéreo internacional apenas terão de estar preparadas para situações mais excepcionais de indenização por dano moral, já que inexiste teto indenizatório para esse caso. Trata-se, porém, de um risco que já é internalizado pelas empresas. __________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 22, item "2", da Convenção de Montreal: "2.  No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino." 3 O nome da transportadora era Cargolux Airlines Internacional S.A. 4 O nome da seguradora era Seguros Sura S/A.
1. Introdução Suponha uma ação de reconhecimento de união estável. Se o réu vem a falecer no curso da ação, indaga-se: Quem lhe deverá suceder, o espólio ou seus herdeiros? A resposta depende do rastreamento da relação de direito material, dada pelo Direito Civil, visto que a legitimidade processual ad causam é um reflexo. 2. Espólio não é necessariamente o sucessor processual no caso de morte da parte Em regra, o espólio sucede a parte que falece no curso do processo (arts. 110 e 313, § 2º, do CPC1). Isso, porque o espólio é o sujeito de direito despersonalizado que aglomera, em si, todos os direitos e deveres do falecido enquanto não sobrevier a partilha de bens (art. 1.791, parágrafo único, do Código Civil2). Há, porém, exceções. Há casos em, com a morte de uma parte, não necessariamente o espólio será o seu sucessor processual. Eventualmente, o sucessor processual tem de ser seus herdeiros pessoalmente ou até mesmo um terceiro que venha a ter-se tornado o titular do direito sub judice, e não o espólio. Isso, porque a legitimidade processual ad causam tem de espelhar os polos da relação de Direito Material envolvida. O que está em discussão após a morte da parte no curso do processo é saber quem passou a ter - na relação jurídica de Direito Material - a titularidade da res in judicium deducta. O próprio art. 110 do CPC dá respaldo para tal interpretação, ao mencionar que a sucessão processual pode dar-se pelos sucessores do falecido, e não apenas pelo espólio. Esses sucessores devem ser entendidos como as pessoas que passam a integrar a relação de direito material com o falecimento da parte. Em termos didáticos, pode-se dizer que a definição do sucessor processual no caso de morte da parte no curso do processo coincide com a identificação de quem teria legitimidade ad causam caso o feito supostamente tivesse sido ajuizado post mortem. 3. Critério para identificar legitimidade ad causam do espólio: O interesse comunitário do ecossistema sucessório O critério adequado para identificar a legitimidade ad causam do espólio para suceder processualmente o falecido em ações judiciais é a presença do que chamamos de interesse comunitário do ecossistema sucessório. O espólio não tem legitimidade ad causam quando o feito envolver interesse meramente individual de alguns herdeiros. Explica-se. O ecossistema sucessório é composto por todos os envolvidos na sucessão mortis causa, como credores, herdeiros, testamenteiro etc. Para a tutela do interesse comunitário deles, o ordenamento jurídico criou o espólio, um sujeito de direito despersonalizado incumbido de velar, com imparcialidade, por esse interesse comunitário. A estrutura do espólio é desenhada para esse fim. Por isso, o custeio das atividades do espólio é feito com dinheiro do próprio acervo hereditário, como gastos com honorários de advogados e peritos, custas judiciais, eventual pro labore devido ao inventariante etc. Não pode essa estrutura comunitária estar a serviço de interesse meramente pessoal de qualquer dos herdeiros. A energia do inventariante, o patrimônio do monte-mor e os demais elementos da estrutura do espólio não são para a tutela de interesses individuais dos herdeiros, e sim do interesse comunitário de todos os integrantes do ecossistema sucessório. O espólio atua com imparcialidade entre os integrantes do ecossistema sucessório, sem patrocinar o interesse meramente pessoal de nenhum deles: O espólio não é advogado pessoal de nenhum herdeiro. No ponto, de forma bem gráfica, basta lembrar que o inventariante não necessariamente será um herdeiro. Pode ser, por exemplo, um credor ou até mesmo um terceiro nomeado como inventariante dativo (arts. 75, § 1º, e 617 do CPC). Isso demonstra que o espólio tem razão de ser fundada na tutela imparcial do interesse comunitário do ecossistema sucessório. Por isso, não cabe ao espólio interferir nos eventuais litígios entre os herdeiros nem entre estes e outros potenciais herdeiros ou meeiros. Conflitos como esses restringem-se ao campo estritamente pessoal de cada herdeiro; não versam sobre o interesse comunitário do ecossistema sucessório. Aliás, soaria teratológico que os recursos e a energia do espólio fossem despendidos para proteger um grupo de herdeiros que sejam familiares do falecido e que não queiram reconhecer um terceiro como familiar. 4. Sucessão processual no caso de morte no curso de ações de estado Conforme já realçado, o espólio só sucede processualmente o falecido nas ações que cuidarem de questão de interesse comunitário do ecossistema sucessório. Assim, a título ilustrativo, ações meramente patrimoniais de que o falecido era parte, como eventual ação de indenização ou uma reclamação trabalhista, admitem a sucessão pelo espólio. Cuida-se aí de tutela do interesse comunitário do ecossistema sucessório em resguardar os itens do monte-mor. Já em se tratando de ações de estado, como uma ação de investigação de paternidade, o espólio não detém legitimidade ad causam para suceder processualmente o falecido. Isso, porque esses feitos veiculam interesses meramente pessoais dos herdeiros que são familiares do falecido, e não o interesse comunitário do ecossistema sucessório. Esses interesses individuais dos familiares do falecido são de ordem patrimonial e existencial. O interesse patrimonial é pelo fato de que o êxito na ação de estado poderá vir a aumentar o número de herdeiros ou a reduzir o monte-mor partilhável diante da existência de uma meação. Nessas hipóteses, o quinhão devido aos demais herdeiros quando da partilha será reduzido, o que denuncia a presença de um interesse patrimonial pessoal dos herdeiros na ação de estado. A entrada de novos herdeiros no ecossistema sucessório pode reduzir a fatia patrimonial devida aos demais herdeiros. O interesse existencial dos familiares diante das ações de estado que existiam contra o falecido relaciona-se com os direitos da personalidade deles. O sucesso na ação de estado poderá alterar a árvore familiar do falecido, com o ingresso de um novo membro da família. Essa mera alteração da composição da árvore genealógica já gera, por si só, impactos existenciais nos demais familiares herdeiros, que estarão vinculados existencialmente com o novo membro. Cuida-se de direito da personalidade dos familiares herdeiros. Igualmente, o bom termo da ação de estado poderá impactar direitos da personalidade do próprio falecido, com possibilidade, inclusive, de abalar negativamente aspectos existenciais dele, ao menos sob a ótica dos demais familiares. Pense, por exemplo, que, com a procedência da ação de investigação de paternidade, fique desmascarada a vida dupla que o autor da herança levava, ostentando, de um lado, a aparência de uma pessoa extremamente leal à sua esposa e vivendo, à furtiva, relacionamentos extraconjugais. Basta imaginar como a viúva se sentiria ao tomar ciência disso. O abalo reputacional aí poderia ir além do âmbito familiar e chegar a uma mancha reputacional social. Imagine, por exemplo, que o falecido era um importante político que edificara sua carreira dentro de uma agenda de defesa intransigente da família e da lealdade matrimonial. O sucesso da ação de investigação de paternidade poderia demolir, de vez, a reputação moralista do autor da herança. O espólio não desfruta de legitimidade ad causam para agir como advogado pessoal de cada herdeiro. Não é um leão de chácara a ser manipulado por herdeiros para combater a eventual entrada de novos integrantes do ecossistema sucessório ou para tutelar direitos da personalidade desses herdeiros.3 Em igual diapasão, retine a jurisprudência do STJ, que é assente no sentido de que os herdeiros familiares do falecido são partes legítimas para ações de investigação de paternidade post mortem, e não o espólio. Confira-se4: "3- Por se tratar de ação de estado e de natureza pessoal, a ação de investigação de paternidade em que o pretenso genitor biológico é pré-morto deve ser ajuizada somente em face dos herdeiros do falecido e não de seu espólio (...)." (STJ, REsp 1.667.576/PR, 3ª Turma, rel. ministra Nancy Andrighi, DJe 13/9/19) "1. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que é essencial, sob pena de nulidade, a integração à lide, nas ações de investigação de paternidade, como litisconsorte necessário, do pai registral, ou de seus herdeiros, caso já falecido." (STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.734.515/RN, 4ª Turma, rel. min. Raul Araújo, DJe 19/2/19) Idêntico raciocínio deve ser estendido às ações de reconhecimento ou dissolução de união estável existentes contra o falecido. A sucessão processual tem de recair sobre os herdeiros familiares, e não sobre o espólio, porque inexiste aí interesse comunitário do ecossistema sucessório. 5. Quais familiares devem suceder processualmente o falecido nas ações de estado? Os herdeiros familiares são as partes legítimas para suceder processualmente o falecido nas ações de estado. Indaga-se, porém: Que familiares devem ser considerados para tanto? Entendemos que devem ser levados em conta como parte legítima aqueles que, dentro da ordem de vocação sucessória de que trata o art. 1.829 do Código Civil, sejam os contemplados prioritariamente. Se o falecido tiver deixado viúvo e descendentes, eles serão os sucessores processuais do falecido nas ações de estado. Já na hipótese de o falecido não ter deixado filhos nem cônjuge como herdeiros, a legitimidade ad causam para as ações de estado deverá recair sobre os herdeiros colaterais prioritários na ordem de vocação hereditária. 6. Operacionalização processual para a convocação dos sucessores processuais nas ações de estado Do ponto de vista processual, quais são as particularidades processuais na sucessão processual do falecido nas ações de estado? No caso de morte do autor da ação, é dever dos seus próprios familiares pleitearem a sucessão processual, sob pena de eventual extinção do processo (arts. 110 e 313, § 2º, II, CPC5). Já no caso de morte da parte ré em uma ação de estado, o autor da ação deverá buscar identificar esses herdeiros familiares mediante busca de informações em eventual processo de inventário que venha a ser aberto. Lembre-se de que os herdeiros têm o dever jurídico de abrir o inventário no prazo de 2 meses (art. 611 do CPC). Em não havendo a abertura do inventário e não dispondo o autor da ação de documentos comprobatórios de quem são os herdeiros da falecida parte ré, entendemos viável a realização de citação por edital dos possíveis herdeiros por estes estarem em local desconhecido ao autor (art. 256, I, do CPC). Afinal de contas, a não abertura do inventário no prazo legal é um ilícito praticado pelos familiares, e uma das consequências de sua violação é estar sujeito a citações por edital em casos como o citado. O que não se pode admitir, jamais, é que o espólio seja considerado o sucessor processual em ações de estado, como a de reconhecimento ou dissolução de sociedade de união estável, tendo em vista que aí há a predominância de interesse individual e pessoal de cada herdeiro familiar. Não se ignora a existência de um precedente isolado de apenas uma das turmas do STJ admitindo que, no caso de haver apenas herdeiros colaterais, o espólio figurasse no polo passivo de uma ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato/união estável post mortem (STJ, REsp 1.759.652/SP, 3ª Turma, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 25/9/20). Esse julgado, todavia, nos parece muito pontual e isolado, inapto a contrapor-se à tese ora defendida. Em primeiro lugar, o caso concreto envolvia uma decisão do juiz de primeiro grau que determinou a emenda à inicial para a inclusão de parentes colaterais da falecida como litisconsortes necessários do espólio em uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem. Não se cuidava, portanto, de discussão de sucessão processual pela morte da parte ré em uma ação como essa. Em segundo lugar, o referido precedente é isolado, de apenas uma das turmas do STJ, refletindo uma posição que, a nosso sentir, nos parece precária e que não resistiria a novas reflexões da mesma turma do STJ. Em terceiro lugar, parece-nos que dificilmente o mesmo entendimento seria adotado pela outra Turma do STJ que julga questões de Direito Privado, pois é totalmente inadequado que a estrutura do espólio seja utilizada para o patrocínio de interesses meramente pessoais de herdeiros familiares, em vez de estar a serviço apenas de interesses comunitários do ecossistema sucessório. __________ 1 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui. Art. 313. Suspende-se o processo: (...) (...) § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I - falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses; II - falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito. 2 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio. 3 Sobre o tema, Conrado Paulino Rosa e o saudoso Cristiano Chaves de Farias dão igual lição em sua obra "Ações de Família na Prática", in verbis: "Por óbvio, somente se faz necessária a sucessão processual quando o óbito ocorre durante o andamento do procedimento. Em se tratando de propositura de ação que verse sobre interesse patrimonial (indenizatória, por exemplo), depois da morte do réu, a legitimidade é do seu espólio, devendo ser representado pelo inventariante, se já houver, ou, não havendo ainda, pelo administrador provisório. Se, contudo, a demanda disser respeito a interesses existenciais (como uma investigação de paternidade post mortem ou uma adoção póstuma), a legitimidade dos herdeiros, e não do espólio." 4 Além dos julgados supracitados, há estes: STJ, REsp 1466423/GO, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 02/03/2016; REsp: 1028503/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 09/11/2010; REsp: 331842/AL, 3ª Turma, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 10/06/2002; REsp 120622/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 25/02/1998. 5 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui. Art. 313. Suspende-se o processo: (...) (...) § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I - falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses; II - falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito.
A coluna Civil em Pauta, coordenada por mim e pelo professor Flávio Tartuce, estreia hoje. Seu objetivo é trazer conteúdos teóricos e práticos que sejam úteis à comunidade jurídica e aos cidadãos em matéria de Direito Civil. Não poderíamos inaugurar a Coluna sem tentar colaborar com os nossos irmãos do Rio Grande do Sul no enfrentamento de desafios jurídicos impostos às suas relações privadas. É que o Brasil inteiro segue estarrecido com a catástrofe natural que, ainda hoje, assola mais de quatrocentos e quarenta municípios do Rio Grande do Sul1. Inundações, causadas pelas chuvas e por outros fatores naturais, submergiram grande parte do Estado gaúcho, espalhando mortandade, destruições e devastação2. Inúmeras famílias perderam suas casas e estão atualmente em abrigos improvisados. A destruição alcançou plantações, animais, construções, veículos e outros. No momento em que é escrito este artigo, não há ainda estimativa cronológica para recuperação. O Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, projeta que só conseguirá reabrir para funcionamento em setembro3. As águas seguem afogando diversos municípios gaúchos. O Governador do Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública em todo o território desse gigante Estado da Federação. Trata-se do decreto estadual  57.596, de 1º de maio de 2024, que dispõe: Art. 1º Fica declarado estado de calamidade pública no território do Estado do Rio Grande do Sul, atingido pelos eventos climáticos de Chuvas Intensas, COBRADE 1.3.2.1.4, ocorridos no período de 24 de abril a 1º de maio de 2024. § 1º Os órgãos e as entidades da administração pública estadual, observadas suas competências, prestarão apoio à população nas áreas afetadas em decorrência dos eventos de que trata este Decreto, em articulação com a Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil. § 2º A situação de anormalidade declarada em âmbito estadual por este Decreto, não obsta o início ou o prosseguimento da declaração em âmbito local pelos Municípios, que poderão avaliadas e homologadas pelo Estado. Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação e vigorará pelo prazo de 180 dias.  Em atos posteriores, o Governador do Rio Grande do Sul ratificou a declaração de calamidade pública (decretos estaduais 57.600, de 4 de maio de 2024; e 57.614, de 13 de maio de 2024). Esse cenário de catástrofe causará inúmeros problemas jurídicos nas relações privadas. Exporemos algumas diretrizes para servir de orientação aos nossos irmãos gaúchos na resolução desses problemas. Desde logo, lembre-se que esses impactos aproximam-se aos que perturbaram as relações privadas no ano de 2020 com a pandemia da Covid-19. À época, o risco praticamente letal de contaminação acarretou a paralisação de todo o País por força de medidas restritivas de circulação de pessoas. Diante da semelhança, deixamos uma diretriz jurídica para as relações jurídicas abaladas pela catástrofe natural gaúcha: a aplicação, por analogia, da Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), a lei 14.010/20204. De fato, a analogia é uma forma de preenchimento de lacuna legal (art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Igualmente, são aplicáveis, mutatis mutandi, todas as ideias desenvolvidas nos diversos artigos jurídicos que foram publicados durante a pandemia da Covid-19, notadamente na Coluna Migalhas Contratuais (coordenada pelos Professores Angélica Carlini, Eroulths Cortiano Jr., Flávio Tartuce, José Fernando Simão, Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar, integrantes da diretoria do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont)5. É preciso, porém, ter cautela: cada caso concreto tem de ser analisado de modo individualizado. Não se pode generalizar de modo indiscriminado. É preciso verificar em que medida a catástrofe gaúcha impactou efetivamente cada situação particular. Em alguns casos concretos, a catástrofe não gerou qualquer impacto efetivo e significativo. Pense, por exemplo, em um gaúcho, com farto patrimônio em saldo bancário e que more, de aluguel, em Porto Alegre. Suponha que ele tivesse o dever de pagar um boleto bancário de R$ 5.000,00 pela compra de uma geladeira. A inundação de sua casa, em nada, atingiu sua capacidade financeira para pagar esse boleto. No máximo, por conta da indisponibilidade dos serviços de internet e dos serviços bancários, seria possível justificar o seu atraso no pagamento, de modo a afastar a incidência de encargos moratórios. Afinal de contas, a mora do devedor pressupõe um atraso culposo no pagamento (arts. 394 e 396 do Código Civil - CC6). Diante disso, passamos a expor algumas reflexões específicas. Em primeiro lugar, entendemos que, em regra, por aplicação analógica do art. 3º da Lei do RJET7, os prazos prescricionais e decadenciais relativos a situações jurídicas envolvendo moradores das cidades atingidas pela catástrofe devem ser considerados suspensos desde 1º de maio de 2024 (data do supracitado Decreto estadual nº 57.596) até a data em que vier a cessar o estado de calamidade pública (conforme pertinente decreto estadual). Durante esse período, não é razoável punir o morador dos municípios atingidos pela catástrofe com a prescrição ou com a decadência, por absoluta falta de razoabilidade em exigir dele o exercício de seu direito. Se não é humanamente impossível, certamente será extremamente oneroso exigir que esse indivíduo que está lutando para sobreviver em meio à tragédia tenha de adotar condutas de cobrança de crédito ou de exercício de direitos. Acresça-se que o próprio Poder Judiciário gaúcho suspendeu prazos processuais diante do fechamento de diversas unidades jurisdicionais que estão submersas pelas águas da chuva e do rio Guaíba8. Essa regra, porém, pode ser excepcionada, se, no caso concreto, for verificado que o exercício do direito não se tornou demasiadamente oneroso nem inviável. Em segundo lugar, por incidência analógica do art. 10 da Lei do RJET9, também se devem considerar - em regra - suspensos os prazos de usucapião no mesmo interstício temporal. Há, porém, de admitir-se exceção a essa regra a depender do caso concreto, conforme já expusemos. Em terceiro lugar, por analogia aos arts. 15 e 16 da Lei do RJET10, não se deve - em regra - admitir prisão civil por inadimplemento de alimentos familiares nem considerar em marcha o prazo de dois meses previsto no art. 611 do Código de Processo Civil para a abertura de processos de inventários, ao menos enquanto perdurar o estado de calamidade pública na forma dos atos normativos do Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Em quarto lugar, em matéria contratual, chamamos a atenção de todas as partes para a necessidade de agir com bom senso, sempre buscando um acordo razoável e distribuindo, entre si, os transtornos causados pela catástrofe natural. Afinal de contas, a postura colaboradora das partes de um contrato decorre da boa-fé objetiva. Todavia, na hipótese de não haver acordo, alguns institutos e regras jurídicas devem ser colocados à mesa para reflexão. De um lado, a impossibilidade fortuita superveniente da prestação deve ser levada em conta para permitir a resolução de determinados contratos sem dever de indenização, por força dos arts. 234, 235, 248, 250, 253 e 256 do CC11. Nesse ponto, é forçoso considerar a existência de regras especiais baseadas em similar lógica de justiça. Em locação, por exemplo, o perecimento fortuito da coisa ou a impossibilidade fortuita (ainda que temporária) de utilização da coisa pelo locatário deve ser considerada como uma justa causa para a resolução contratual ou, até mesmo, para a redução do aluguel, sem dever de indenização, conforme art. 567 do CC12. Pense, por exemplo, em pessoas que alugavam um apartamento que, atualmente, está totalmente submerso, sem qualquer viabilidade de utilização plena. De outro lado, a descaracterização da mora por impossibilidade superveniente de o devedor cumprir a obrigação é também ferramenta importante para, em vários casos concretos, afastar a incidência de encargos moratórios e outras consequências decorrentes da mora (arts. 396 e 399 do CC13). Por fim, a superveniência da catástrofe gaúcha pode ter abalado, no caso concreto, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e pode ter frustrado as legítimas expectativas das partes. Certamente, se as partes tivessem previsto que a tragédia sobreviria no curso do contrato, elas certamente teriam colocado cláusulas contratuais específicas. À falta de uma cláusula contratual expressa, o próprio ordenamento jurídico prevê regras supletivas, fruto da vontade presumível do homo medius, tudo conforme uma das lógicas de justiça que subjaz o Código Civil: o princípio da vontade presumível14. Desse modo, os juristas deverão avaliar cada caso concreto para verificar o cabimento da resolução, da revisão contratual ou do emprego de algum meio de defesa de qualquer das partes com base em alguma das seguintes figuras: a) teoria da imprevisão (arts. 317 e 478 do CC); b) doutrina da frustração do fim do contrato15; c) teoria da quebra da base objetiva do contrato, aplicável em relação de consumo, conforme art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor16; d) quebra antecipada do contrato17; e) exceção de inseguridade (art. 477 do CC18); f) exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC19). A propósito do tema, recomendamos aprofundado artigo do professor Flávio Tartuce tratando dos impactos da pandemia da Covid-19 nos contratos20. Esperamos que o bom senso, a boa-fé e a solidariedade presidam todas as relações privadas que foram impactadas pela catástrofe natural gaúcha, de modo que os sujeitos consigam resolver os problemas sem a necessidade de litígios judiciais ou arbitrais. O Direito, porém, disponibiliza esses diversos institutos para acudir situações emergenciais e de calamidade como essas. Trata-se de institutos testados e aprimorados em meio a diversas crises e catástrofes que já acometeram a humanidade ao longo da história. Como costuma dizer o professor Flávio Tartuce, nós, os civilistas, estamos entre os juristas mais antigos do Planeta, com milênios de desenvolvimento de institutos jurídicos que conseguem dar respostas aos problemas sociais atuais. __________ 1 Disponível aqui. 2 Em 12 de maio de 2024, havia a notícia de 145 mortes (Disponível aqui). 3 Disponivel aqui. 4 Em conjunto com o professor Pablo Stolze Gagliano, tivemos a oportunidade de comentar integralmente a Lei do RJET: (1) GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. In: Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 25, n. 6190, 12 jun. 2020. Disponível aqui; (2) GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Continuando os comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise dos novos artigos. Revista Jus NavigandiTeresina, ano 25, n. 6279, 9 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 mai. 2024. 5 Destacamos os artigos publicados a partir de 23 de março de 2020. Disponível aqui. 6 Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer. Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora. 7 Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. § 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional. § 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). 8 Sobre o tema: TJ-RS suspende prazos processuais e só analisa medidas urgentes. 9 Art. 10. Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. 10 Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020. Parágrafo único. O prazo de 12 (doze) meses do art. 611 do Código de Processo Civil , para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. 11 Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos. Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu. Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos. Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar. Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra. Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação. 12 Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava. 13 Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora. Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. 14 Sobre o princípio da vontade presumível, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio da Vontade Presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível aqui. Publicado em 18 de janeiro de 2023. 15 José Fernando Simão faz aprofundada abordagem da necessidade de pensar na base do contrato, suscitando ideias que também atraem reflexões não apenas acerca da teoria da quebra da base do contrato, mas também da frustração do fim do contrato (SIMÃO, José Fernando Simão."O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível aqui. Publicado em 3 de abril de 2020). Lembramos que a doutrina da frustração do fim do contrato foi desenvolvida na Inglaterra, ao passo que a teoria da quebra da base do contarto, na Alemanha. Ambas, porém, descendem da cláusula rebus sic standibus, conceito oriundo do direito romano, conforme lembra Reinhard Zimmermann (ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017). 16 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. 17 Sobre o tema, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contrato e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Publicado em 17 de março de 2020. 18 Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la. 19 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. 20 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível aqui. Publicado em 27 de março de 2020.