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O direito fundamental à proteção de dados e seu desconhecimento pela Justiça Eleitoral

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

Atualizado às 08:19

As campanhas eleitorais de 2022 iniciaram em 16 de agosto e já presenciamos uma decisão importante do Tribunal Superior Eleitoral: a divulgação de algumas informações sobre os candidatos e seus limites perante a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.

O presente artigo tem como objetivo demonstrar que o novo cenário constitucional brasileiro reconhecendo a proteção de dados como um direito fundamental não foi observado na fundamentação da decisão que revogou a limitação de exibição de alguns dados de um candidato no caso analisado. Ainda, será realizado um breve comparativo com o Case C-184/201 da Corte de Justiça da União Europeia, que, no início de agosto, realizou uma ponderação entre o direito fundamental à proteção de dados e a transparência de servidores públicos na Lituânia com base no interesse público.

O atrito entre a LGPD e a construção de uma cultura de transparência no Brasil não é novidade para aqueles que estudam e acompanham o tema. Vivemos em um país que, salvo algumas exceções legislativas pontuais, não seguiu o movimento internacional pós década de 1990 (iniciado pela Diretiva de Proteção de Dados da União Europeia) de reconhecer a proteção de dados em seus ordenamentos internos, como, por exemplo, Argentina e Chile em 1999 e 2000, respectivamente. 

Desde então, a privacidade era o limitador de mecanismos de transparência, principalmente em se tratando de questões de interesse público. Por exemplo, a Lei de Acesso à Informação, 12.527 de 2011, limita a transparência só em casos de segurança da sociedade e privacidade (art.  6º, inciso III). Importante destacar que a transparência é essencial para o Estado Democrático, sendo reconhecido como um valor constitucional no Brasil, garantindo aos cidadãos a possibilidade de controle das ações estatais e seus representantes.

Ocorre que a proteção de dados pessoais é um direito com que tem sua importância reconhecida no cenário internacional desde a década de 1980 com a Convenção 108 do Conselho Europeia e as Diretrizes sobre Proteção da Privacidade e o Fluxo Transnacional de Informações Pessoais da OCDE, resultando na construção de sistemas de transparência equilibrados com esse direito protetivo pelos países que o reconheceram internamente, diferente do nosso país, que o fez somente com base na privacidade.

Esse cenário mostra como o Brasil, ao ter a sua primeira legislação de proteção de dados somente em 2020 e a consequente constitucionalização da proteção de dados reconhecida através de via jurisprudencial em 2020 (decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da Medida Provisória 954/20) e positivada em 2022 (Emenda Constitucional 115/22), enfrenta o desafio de entender o princípio constitucional da transparência com novos contornos constitucionais.

O julgamento do Tribunal Superior Eleitoral no Processo Administrativo 0600231-37.2021.6.00.0000 não realizou sua análise com esse novo cenário constitucional, em que pese foram realizadas audiências públicas sobre o tema e que contou com a participação de entidades e especialistas. O Tribunal entendeu é necessário: a) manter públicos os dados relativos ao candidato, incluindo dados pessoais, certidões e declaração de bens, mantidos somente, em virtude da necessidade de garantir-se a sua segurança pessoal, a ocultação do lote ou apartamento, telefone ou e-mail pessoal; b) manter a declaração de bens fornecida pelo candidato, que deve ser feita de forma pública e individualizada, mediante retomada do campo "descrição" no sistema DivulgaCandContas; e c) de inexistir limitação temporal quanto à publicidade dos dados fornecidos à Justiça Eleitoral pelos candidatos, nos termos do voto do Ministro Alexandre de Moraes (Presidente).

Destarte, importante destacar que os votos não foram publicados pelos ministros julgadores. A análise aqui realizada é com base na sessão em que o caso foi julgado2.

Chama a atenção que, no voto do relator Ministro Alexandre de Moraes (que foi acompanhado quase integralmente), em que foi citada a previsão constitucional da publicidade e os valores da transparência, sem citar a proteção de dados como outro direito com status fundamental (positivado no art. 5°, inciso LXXIX). Somente foram citados dispositivos da LGPD referentes à sua não aplicabilidade para atividade jornalística (art. 4º da Lei) como sendo um "sinal verde" para a divulgação irrestrita de dados.

Inclusive, o Ministro chega a expressar que a LGPD não seria aplicável na seara de publicidade de dados eleitorais, ignorando completamente o seu conteúdo de direito fundamental, sendo acompanhado nesse entendimento pelo Ministro Lewandoski ao citar o art. 5°, inciso XXXIII que trata sobre o direito fundamental de acesso a informações de interesse coletivo ou geral.

É certo que o agente que pretende um cargo de natureza pública deve renunciar ao controle de alguns aspectos da sua vida pessoal em prol do interesse social, mas isso não significa uma exclusão total do direito fundamental à proteção de dados para esses indivíduos. O julgamento da Corte de Justiça da União Europeia sobre a lei VIII/371 da República da Lituânia realizou esse confronto de direitos com previsão constitucional.

No caso, questionavam-se disposições legais da Lituânia que demanda a disponibilização de informações sobre pessoas que trabalham em serviços públicos entre elas: participação em associações, grupos e iniciativas (exceto partidos políticos e sindicatos), presentes com valor acima de 150 euros recebidos nos últimos 12 meses, informações sobre transações acima de 3 mil euros realizadas nos últimos 12 meses e informações sobre companheiros/companheiras e familiares. As informações eram divulgadas em site de órgão do governo como mecanismo de transparência para combate à corrupção.

A Corte de Justiça explorou não só a importância de mecanismos de transparência para o combate à corrupção, como também aspectos do interesse social em ter disponível, com fácil acesso, informações sobre agentes públicos.

Ocorre que o raciocínio jurisdicional confrontou esses direitos e valores com o direito fundamental à proteção de dados pessoais previsto no art. 8º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e os princípios que dele derivam, principalmente o da proporcionalidade (parágrafo 70 do acórdão) e o princípio da necessidade (parágrafo 85 do acórdão). Com esse raciocínio, uma das conclusões foi que a disponibilização online de informações sobre pessoas que trabalham em serviços públicos deve estar amparada no princípio da necessidade, ou seja, somente aquelas informações estritamente necessárias para a finalidade do combate à corrupção devem estar disponíveis.

Ainda, é de extrema importância destacar que a Corte de Justiça em questão levou em conta o aspecto tecnológico envolvido, uma vez que a divulgação de dados pessoais através de plataforma online gera diferentes impactos do que em outros formatos, como o analógico. O parágrafo 92 do julgamento diz que:

Em segundo lugar, mesmo que a publicação dos dados privados em causa no processo principal se revele necessária para atingir os objetivos prosseguidos pela lei sobre a conciliação de interesses, é de notar que um número potencialmente ilimitado de pessoas pode consultar os dados pessoais em causa. No entanto, não resulta dos autos do Tribunal de Justiça que o legislador lituano, ao adotar esta disposição, tenha examinado se a publicação desses dados na Internet sem qualquer restrição de acesso é estritamente necessária ou se os objectivos prosseguidos pela lei sobre a reconciliação interesses podem ser alcançados com a mesma eficácia se o número de pessoas aptas a consultar esses dados for limitado.

Essa atenção para o contexto tecnológico do tratamento foi um dos argumentos do voto do Ministro Gilmar Mendes in REFERENDO NA MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.390 no item "II - A inovação jurídica como contraface da inovação técnica: a permanente abertura da ordem constitucional à transformação tecnológica"3, principalmente no seu grifo:

É por isso que, para muito além do mero debate sobre o sigilo comunicacional, este Tribunal deve reconhecer que a disciplina jurídica do processamento e da utilização da informação acaba por afetar o sistema de proteção de garantias individuais como um todo.

Esse ponto, no caso do Tribunal Superior Eleitoral, sequer foi mencionado pelos julgadores.

Por fim, é necessário destacar que aqui somente pretendemos demonstrar que o julgamento ignorou exercícios de ponderação de normas e princípios com status constitucionais que eram essenciais para o caso em tela e que colocam em risco a decisão diante de uma análise mais aprofundada.

Reforçamos que não desejamos aqui defender que a transparência dos dados de candidatos a cargos de representação pública deve ser limitada e privar a sociedade de informações essenciais para a definição de seus representantes, mas, sim, que, tal como a Corte de Justiça da União Europeia demonstrou com poucas semanas de diferença, a análise com olhar de direitos constitucionais pode e deve ser realizada.

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1 Disponível em inglês aqui. Acesso em 23/08/2022

2 A sessão foi gravada na íntegra. Acesso em 23/08/2022

3 BRASIL, Supremo Tribunal Federal. REFERENDO NA MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 6.390, relatora Ministra Rosa Weber. Brasília, Distrito Federal. Disponível aqui . Acesso em 23/08/2022. Páginas 90-97