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A desconstrução das políticas públicas: o direito à educação

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Atualizado às 10:49

Ganharam destaque nos últimos dias algumas falas do ministro da Educação Milton Ribeiro. Primeiro, defendeu que "universidade deveria, na verdade, ser para poucos". Depois de também dizer que crianças com deficiência "atrapalhavam" o aprendizado dos outros alunos, justificou-se dizendo que parte dessas crianças "têm um grau de deficiência que é impossível a convivência".

Em qualquer democracia, o ministro não teria tido o tempo que teve para justificar-se como fez ainda investido nas funções, tamanhas as ofensas discriminatórias e o desconhecimento dos temas afetos à sua pasta. Aqui, esses discursos discriminatórios são vocalizações do constante esgarçamento das instituições democráticas que muitas das altas autoridades do governo Bolsonaro, lideradas pelo presidente, rotineiramente cometem. E apenas para que não se diga que foi um ato falho ou um caso isolado, mesmo tendo sido dois em poucos dias, Milton Ribeiro foi condenado, em maio desse ano, pela primeira instância da Justiça Federal de São Paulo, a pagar indenização de R$ 200 mil por danos morais coletivos por causa de falas homofóbicas, já no exercício do cargo.

A atuação de Milton Ribeiro bem sintetiza a lógica de governar do bolsonarismo. A retórica de insuflamento de suas bases, em permanente movimento de ataque contra as pessoas e ideias que naquele determinado momento representam os inimigos da vez é apenas uma cortina de fumaça - expressão usada aqui em sentido figurado e sem nenhuma ligação com o patético cortejo de tanques em Brasília que supostamente constrangeria o Legislativo e o Judiciário - que esconde a realpolitik bolsonarista: desconstruir políticas públicas, fundamentalmente aquelas que promovem ou protegem direitos humanos.

Nesse caminho, embora menos verborrágico que seu esquecível antecessor, o atual ministro da Educação tem sido muito mais efetivo.

Poderíamos falar sobre as nomeações das reitoras e reitores das universidades federais, do orçamento dessas instituições, dos programas de incentivo à pesquisa, da privatização das creches, do nenhum apoio federal à educação fundamental e média durante a pandemia, dentre outros temas, para ilustrar o que falamos. Mas fiquemos com o ENEM.

O Exame Nacional do Ensino Médio é uma importante política pública educacional por dois aspectos. De um lado, sendo um exame nacional, permite que se avalie a qualidade do ensino médio em todo o país e em cada escola, ou seja, um imprescindível diagnóstico a orientar as estratégias a serem adotadas para a melhoria do ensino. De outro, para os estudantes, a participação no Exame é requisito para posterior inscrição no Sistema de Seleção Unificada - SISU, programa responsável pelo ingresso em universidades públicas federais, bem como para o Programa Universidade para Todos - Prouni, que concede bolsas de estudo nas instituições privadas de ensino superior e para o Fundo de Financiamento Estudantil - FIES, programa destinado a financiar a graduação de estudantes que não possuem condições de arcar com os custos de sua formação.

Ou seja, a participação no ENEM é a principal, e muitas vezes única, porta de acesso ao ensino superior para os estudantes pobres, e, por isso, possui imensurável importância para a diminuição das desigualdades e erradicação da pobreza (art. 3º, III da CF), bem como para a garantia do direito à educação (art. 205 da CF).

Todos os ENEM realizados durante este governo apresentaram problemas e foram judicialmente contestados, minando reiteradamente sua credibilidade e enfraquecendo a visão pública de sua importância. No de 2019, falhas nas correções e na divulgação das notas. No de 2020, a completa dissociação com a realidade pandêmica de falta de acesso dos estudantes à escola e ao conteúdo escolar. Prova adiada e, quando realizada, no auge da pandemia até então, o mais alto número histórico de abstenções, e mesmo assim com muitas salas lotadas e muitos estudantes impedidos de realizar a prova. Neste ano, aqueles estudantes que faltaram à prova anterior, mesmo em razão do fundado temor de contaminarem-se com o coronavírus e de o levá-lo para casa, contaminando também seus familiares, e que gozaram, por serem pobres, de isenção na taxa de inscrição, foram impedidos de pleitear novamente o mesmo benefício, o que vem sendo questionado por uma ação judicial da Defensoria Pública da União na Justiça Federal de São Paulo e pela ADPF 874 no STF.

Resultado: cerca de 3 milhões de inscritos na prova deste ano, o menor número desde 2005, quando a nota da prova ainda não era utilizada no ingresso no ensino superior, e quase metade dos cerca de 5,5 milhões de inscritos de anos anteriores.

Com menos estudantes pobres inscritos na prova, não só se realiza um exame mais barato, uma das metas do governo, como também se fecha a porta do ensino superior para toda uma geração, cristalizando o desejo do ministro Milton Ribeiro de que a universidade seja para poucos.

Essa desconstrução de políticas públicas não é isolada e se verifica em diversas outras áreas, sempre em prejuízo e com retrocesso em relação a promoção e proteção de direitos fundamentais: demarcação de terras indígenas, reforma agrária, preservação ambiental, promoção da cultura negra, acesso a aborto legal, violência contra a mulher, precarização das relações de emprego, políticas econômicas de redução de desigualdades, programa de imunização, acesso à informação, dentre muitos outros itens de uma gigantesca lista.

Não se trata apenas de uma mudança de rota nas políticas públicas que já vinham sendo implementadas e executadas, como parte de uma suposta discricionariedade que caberia ao Presidente da República. O que se vê é a completa desconstrução das políticas públicas e o desmonte do Estado brasileiro, sem deixar nada em seu lugar. E, para isso, tem se escolhido para comandar órgãos públicos essenciais, personagens notoriamente contrários aos direitos que caberiam ao órgão promover.

O princípio da vedação ao retrocesso social, inscrito na Convenção Americana de Direitos Humanos, é um norte sobre a atuação estatal, ainda mais num contexto como o brasileiro, de uma constituição dirigente e que estabelece objetivos claros para a República, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

E embora não seja um conceito de fácil apreensão, claro está que a completa desconstrução de políticas públicas, sem nada em seu lugar, significa evidente retrocesso social e, portanto, inconstitucional e inconvencional.

No caso do ENEM e em muitos outros casos, o Judiciário tem sido provocado a colocar freios nessa arquitetura da destruição. E mesmo diante do retrocesso social e da ofensa aos direitos humanos constitucional ou convencionalmente assegurados, a tese da discricionariedade administrativa, aplicada de maneira estéril, como um dogma solucionador das demandas que atacam os pontos sensíveis do governo da vez, tem orientado grande parte das decisões, trazendo prejuízos que transcendem os casos concretos, pois acabam por legitimar as atuações completamente dissociadas do texto constitucional, fermentando a crise democrática pela qual passamos.

As últimas manifestações do ministro da Educação, para além da gravidade que já comportam em razão de seus conteúdos discriminatórios, mostram o tamanho do fosso onde nosso país está inserido, nunca sem a conivência de quem, tendo poder para indicar os limites, não o faz.

Esse texto pretende ser o primeiro de uma série a discutir a desconstrução de outras políticas públicas de direitos humanos, que pretendemos abordar nesta coluna.

*João Paulo Dorini é defensor público Federal. Defensor Regional de Direitos Humanos em São Paulo. Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP e doutorando em Direitos Humanos pela USP.