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Família e Sucessões

Desafios contemporâneos do direito de família e sucessões.

Flávio Tartuce
Conforme desenvolvemos neste canal e em texto anterior, o Novo Código de Processo valorizou sobremaneira a desjudicialização, ou seja, a utilização de mecanismos extrajudiciais para a solução de controvérsias. Conforme o seu art. 3º, não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. Todavia, é permitida a arbitragem, na forma da legislação especial. Enuncia-se, em complemento, que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. Por fim, está expresso que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial. Dentro dessa realidade, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) promoveu, nos dias 22 e 23 de agosto de 2016, a I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, sob a coordenação do ministro Luis Felipe Salomão. O evento ocorreu em Brasília, com a participação de ministros do STJ, magistrados federais e estaduais, procuradores, promotores de Justiça, advogados, defensores públicos, mediadores e professores universitários. Seguiu-se a linha das consagradas Jornadas de Direito Civil, já na sua sétima edição. Em artigo anterior, comentamos alguns enunciados doutrinários aprovados sobre mediação. Nesta segunda parte, serão abordadas as propostas que foram feitas quanto à viabilidade jurídica de aplicação da arbitragem para o Direito de Família, proposições essas que não passaram sequer pela comissão respectiva. O debate, todavia, é importante, almejando o futuro dessa tendência de fuga do Judiciário. Pois bem, as duas propostas foram formuladas pelo professor Paulo Nalin, da UFPR, um grande estudioso do Direito Contratual e da Arbitragem; e com importante contribuição sobre o conteúdo existencial das relações negociais, destacando-se a sua tese de doutorado, em que busca um conceito pós-moderno de contrato (NALIN, Paulo. Contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2006). Conforme a sua primeira sugestão, "é licito aos nubentes adicionar cláusula compromissória ao pacto antenupcial". Nos termos das justificativas apresentadas, a "interpretação contemporânea do pacto antenupcial permite que nele sejam dispostas declarações patrimoniais e existenciais, não se limitando, portanto, à simples escolha do regime de bens. Contudo, a natureza histórico-cultural do pacto se identifica com a definição dos efeitos patrimoniais do casamento, mediante a escolha do modelo de regime de bens. Nesse sentido, não ofende o art. 1.655 do CC, em interpretação sistêmica com o art. 852 do mesmo código, a adição de cláusula compromissória ao pacto (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 5. ed. p. 433), para regular futura disputa concernente a interesses patrimoniais e disponíveis dos cônjuges". Cita-se a doutrina de Francisco José Cahali, outro defensor da possibilidade de os cônjuges ou companheiros fazerem uso da arbitragem para a solução de controvérsias, presente naquela Jornada. A segunda proposta apresentada no evento previa que "os cônjuges e os conviventes podem se valer da arbitragem para solucionar conflitos de interesses de natureza patrimonial e disponível, no âmbito do Direito de Família". Além de Francisco Cahali, a proposição citou a lição de Carlos Eduardo Pianovski, no sentido de superação da ideia de que a família seria "o lugar da não liberdade". E arrematou com as palavras de Marcos Alberto Rocha Gonçalves, na linha de que deve ser reconhecido o rompimento do "monopólio estatal para a modificação do status jurídico atribuído com o casamento", especialmente no tocante às questões patrimoniais. Soma-se a eles o jurista Carlos Alberto Carmona, um dos grandes especialistas brasileiros no assunto e também participante da Jornada, para quem "são arbitráveis, portanto, as causas que tratem de matérias a respeito das quais o Estado não crie reserva específica por conta do resguardo dos interesses fundamentais da coletividade, e desde que as partes possam livremente dispor acerca do bem sobre que controvertem" (Arbitragem e processo. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 39). Pois bem, pensamos que é muito pertinente o debate da matéria, mas, no atual estágio do Direito de Família no Brasil, não se deve admitir a arbitragem para se resolver as contendas relativas a esse ramo do Direito Privado. Por isso fomos um dos defensores da rejeição das duas propostas naquele evento, por três objeções principais. A primeira objeção diz respeito à grande dificuldade existente na separação das matérias puramente patrimoniais daquelas de feição existencial, no âmbito familiar. Como se sabe, nos termos da legislação brasileira, "as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis" (art. 1º da lei 9.307/96). Ademais, o Código Civil de 2002 é claro aos excluir da arbitragem as questões relativas ao direito existencial ao Direito de Família, enunciando o seu art. 852 que é vedado compromisso arbitral para solução de questões de estado, de Direito Pessoal de Família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. Mesmo as questões relativas ao regime de bens entre cônjuges e companheiros têm alguma faceta existencial, o que afastaria a viabilidade jurídica da arbitragem, pois não há o previsto conteúdo puramente patrimonial. A propósito, seguindo parcialmente essa linha de interpretação, recente aresto do Tribunal catarinense considerou que "em conformidade com o disposto no art. 1º da lei 9.307/96, a arbitragem pode ser utilizada exclusivamente para resolver litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, de forma que resta afastada, regra geral, sua aplicação sem relação às lides envolvendo Direito de Família" (TJ/SC, Apelação cível 2015.068323-3, Balneário Camboriú, Quinta Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Luiz Cézar Medeiros, julgado em 22/3/2016, DJSC 8/4/2016, p. 233). Como segunda objeção, os conflitos familiares carregam em seu âmago um forte e intenso afeto - no caso, um afeto negativo -, fazendo com que os direitos se situem em uma ordem de indisponibilidade, como regra. Tanto isso é verdade que o Código Civil é taxativo no sentido de serem os alimentos irrenunciáveis (art. 1.707), apesar da existência de corrente que prega a possibilidade de sua renúncia. A propósito, pontue-se que quando daquela Jornada houve um debate intenso sobre a possibilidade de a arbitragem atingir as relações de consumo. Após muita divergência, a plenária do evento acabou por não aprovar qualquer proposta, entre outras razões porque o conteúdo dos direitos consumeristas é, em regra, indisponível. Se há essa dificuldade na relação de consumo, imagine-se a barreira a transpor na relação de cunho familiar, por vezes também uma relação entre desiguais, em especial no plano econômico. Essa desigualdade ou assimetria, percebida como regra, acaba por colocar em xeque a afirmação da liberdade, defendida por aqueles que são favoráveis à arbitragem nesse âmbito. A terceira objeção, decorrência natural da segunda, é que o afeto pode estar preso ao patrimônio, como no exemplo concreto da insistência de um ou outro ex-consorte em permanecer com um determinado bem. As contendas e demandas familiares são multifacetadas, havendo grande dificuldade em se separar os bens das afeições de cada um dos cônjuges e companheiros. Mais uma vez, fica difícil a cisão entre as pretensões existenciais e as patrimoniais. Sem falar que esse apego quanto a bens também pode atingir os filhos, especialmente os incapazes. Por isso, pensamos que o tema ainda merece um debate ainda mais profundo pela doutrina e pelos aplicadores do Direito, sejam civilistas, familiaristas ou processualistas. Quem sabe, em um futuro próximo, superadas essas objeções, a arbitragem seja admitida para resolver os conflitos de ordem familiar.
O Novo Código de Processo Civil, em vigor no país desde o dia 18 de março de 2016, tem como um dos seus nortes principiológicos a desjudicialização dos conflitos e contendas. Entre as suas normas fundamentais, preceitua o Estatuto Processual emergente que o Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos (art. 3º, § 2º). Além disso, está previsto que a conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial (art. 3º, § 3º, do CPC/2015). No que diz respeito às ações de família, o texto normativo instrumental parece ser peremptório quanto à necessidade de se realizar a audiência de mediação ou conciliação, estabelecendo o caput do art. 695 do Novo CPC que "recebida a petição inicial e, se for o caso, tomadas as providências referentes à tutela provisória, o juiz ordenará a citação do réu para comparecer à audiência de mediação e conciliação". Como bem observa Daniel Amorim Assumpção Neves, "no procedimento comum, a audiência de conciliação e mediação pode não ocorrer quando ambas as partes se opuserem à sua realização. Nas ações de família, entretanto, o silêncio do art. 695 do Novo CPC permite a conclusão de que nessas ações a audiência é obrigatória, independentemente da vontade das partes" (Novo Código de Processo Civil Comentado. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 1.099). Passados cinco meses de entrada em vigor dessas regras, a verdade é que todas essas regras não estão sendo aplicadas, por falta de uma necessária estruturação do Poder Judiciário. O Estado - em sentido amplo -, precisa contratar urgentemente mediadores e conciliadores judiciais capacitados e remunerá-los devidamente, para exercer as atribuições previstas na nova lei. Tal atuação exige uma formação específica, com investimentos públicos e privados, que deveriam ter sido realizados no prazo de vacatio legis do CPC/2015, o que não ocorreu. Como tenho dito em aulas e palestras, infelizmente, não nos preparamos para o Novo CPC quando deveríamos tê-lo feito, em 2015, justamente no lapso de vacância. Houve uma preocupação com outros temas, que não aqueles que mais nos interessam diretamente. A par dessa realidade, em iniciativa louvável, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal (CJF) promoveu, nos dias 22 e 23 de agosto últimos, a I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. O evento aconteceu em Brasília, com a participação de ministros do STJ, magistrados federais e estaduais, procuradores, promotores de Justiça, advogados, defensores públicos e professores universitários. O seu foco principal foi a discussão de propostas para soluções desjudicializadas de conflitos, em adequação às inovações legislativas não só do Novo CPC como também da Lei 13.140/2015, conhecida como Marco Civil da Mediação. Na linha das já consagradas Jornadas de Direito Civil, também promovidas pelo Conselho da Justiça Federal, o encontro teve a competente coordenação geral do ministro do STJ, Luis Felipe Salomão, e a atuação do ministro Antonio Carlos Ferreira, coordenador da comissão de trabalho de arbitragem; do professor Kazuo Watanabe, coordenador da comissão sobre mediação, e do professor Joaquim Falcão, coordenador do grupo sobre outras formas de soluções de conflitos. Tive a honra de atuar como especialista convidado, ao lado de outros 40 colegas, e com a participação total de cerca de 150 juristas de todo o país. Ao final foram aprovados 104 enunciados, que constituem uma doutrina qualificada tendo "força persuasiva de caráter técnico-jurídico, não se confundindo com a posição do Conselho da Justiça Federal e de seu Centro de Estudos Judiciários, bem como de seus membros quando do exercício da função pública, sobre o mérito de eventuais conflitos administrativos ou judiciais a eles submetidos" (art. 34 da Portaria 169/2016 do CJF, que regulamenta a Jornada). Aqui iniciamos uma série de textos de comentários sobre algumas das propostas aprovadas, relativas ao Direito de Família e das Sucessões. Serão comentados os enunciados divulgados em primeira mão pelo informativo Migalhas (disponíveis na coluna). Não será apontada a sua numeração, pois ela ainda pende de revisão e confirmação pela organização do encontro. O tema inaugural a ser tratado é justamente a mediação, que tanto necessita de investimentos, para se deixar de lado uma frase sempre repetida pela professora Giselle Câmara Groeninga em suas exposições, no sentido de que "no Brasil há mais cursos de mediação do que mediações em curso". O primeiro enunciado aprovado sobre o assunto foi justamente na linha de se incentivar a sua prática pelo Estado, eis que "a mediação é método de tratamento adequado de controvérsias que deve ser incentivada pelo Estado, com ativa participação da sociedade, como forma de acesso à Justiça e à ordem jurídica justa". Com essa afirmação, adota-se uma postura de efetivação das regras constantes dos parágrafos do art. 3º do Novo CPC antes destacados. Mas não basta o investimento estatal. Também se faz necessária a mudança cultural no ensino do Direito. É preciso substituir a cultura da guerra, do contencioso, da vitória e da derrota, transmitidas nas Faculdades de Direito, pela cultura da paz, da resolução, do diálogo e do reconhecimento do outro. Nesse contexto, algumas propostas interessantes foram aprovadas. Assim, enunciou-se que "recomenda-se que as Faculdades de Direito mantenham estágios supervisionados nos escritórios de prática jurídica para formação em mediação e conciliação e promovam parcerias com entidades formadoras de conciliadores e mediadores, inclusive tribunais, MP, OAB, Advocacia Pública e Defensoria Pública". E ainda: "sugere-se que as Faculdades de Direito instituam disciplinas obrigatórias e autônomas e projetos de extensão destinados à arbitragem, à mediação e à conciliação". Por fim, quanto ao tema, destaque-se: "propõe-se a implementação da cultura de resolução de conflitos por meio de mediação, como política pública, nos diversos segmentos do sistema educacional, visando auxiliar na resolução extrajudicial de conflitos de qualquer natureza, utilizando mediadores externos ou capacitando alunos e professores para atuarem como facilitadores do diálogo na resolução e prevenção dos conflitos surgidos nesses ambientes". Os investimentos, assim, não são apenas do Poder Público, mas também dos entes privados, notadamente das instituições de ensino. Sem essa mudança embrionária, concretizada nos primeiros anos da formação jurídica, a mediação nunca se tornará realidade. No que diz respeito ao modo de se operacionalizar a mediação, aprendi com a minha irmã, Fernanda Tartuce, que nela não se busca o acordo, mas sim o diálogo entre as partes. Não se busca apenas o resultado quantitativo, o cumprimento de eventuais metas numéricas, mas sim a qualidade da interação, na aproximação das partes. E, nessa esteira, louva-se a aprovação de proposta estabelecendo que "a expressão 'sucesso ou insucesso' do artigo 167, parágrafo 3º, do CPC não deve ser interpretada como quantidade de acordos realizados, mas a partir de uma avaliação qualitativa da satisfação das partes com o resultado e com o procedimento, fomentando a escolha da Câmara, do conciliador ou do mediador com base nas suas qualificações e não nos resultados meramente quantitativos". Com relação direta com as ações de família, foi aprovada outra interessante proposta, no sentido de se possibilitar a participação de crianças, adolescentes e jovens na mediação, especialmente nas contendas relativas à guarda de filhos: "é admissível, no procedimento de mediação, em casos de fundamentada necessidade, a participação de crianças, adolescentes e jovens - respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão - quando o conflito (ou parte dele) estiver relacionado aos seus interesses ou direitos". As justificativas da proposição mencionam o art. 227 da Constituição Federal, na expressão de ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, os direitos fundamentais. Assim, a criança e o adolescente têm direito à liberdade de opinião e de expressão, o que incide no procedimento de resolução de conflitos. Por fim, neste primeiro texto sobre o assunto cabe destacar a delicada questão da capacitação dos mediadores extrajudiciais, objeto de proposições antagônicas, que muito foram debatidas pela comissão de mediação. Havia proposta no sentido de que poderá funcionar como mediador extrajudicial, qualquer pessoa capaz, de confiança das partes e que possua a capacitação mínima exigida pelo Conselho Nacional de Justiça. Na mesma linha almejava-se que "a capacitação do mediador extrajudicial de que trata o art. 9º da Lei de Mediação deve atender aos parâmetros curriculares estabelecidos pelo CNJ". Com tom antagônico, outra proposição sugeria o seguinte texto de enunciado: "para atuar como mediador extrajudicial, os únicos requisitos exigidos pela lei 13.140/15 são: capacidade civil plena, confiança das partes e capacitação, sendo que essa capacitação, diferentemente da judicial, não contempla requisitos mínimos estipulados pelo CNJ ou outro órgão". Compartilhando essa via, em tom até mais contundente "a capacitação do mediador privado, prevista no art. 9º da lei 13.140/2015, significa que deve ter vocação, reputação ilibada, confiança dos envolvidos e aptidão para mediar, não sendo necessário certificado de conclusão de curso, conforme os parâmetros fixados pelo Conselho Nacional de Justiça e Ministério da Justiça, exigência que se destina a mediadores judiciais; sendo, porém, recomendável que tenha acesso a cursos que lhe propiciem o acesso aos princípios orientadores da mediação e o aperfeiçoamento constante das técnicas". Ao final, acabou sendo aprovada uma proposta de consenso, no meio do caminho, mas mais próxima das últimas, com o seguinte texto: "a menção à capacitação do mediador extrajudicial, prevista no art. 9 da lei 13.140, indica que ele deve ter experiência, vocação, confiança dos envolvidos e aptidão para mediar, bem como conhecimento dos fundamentos da mediação, não bastando a formação em outras áreas do saber que guardem relação com o mérito do conflito". Assim, não há a necessidade obrigatória de vinculação à formação efetivada pelo Conselho Nacional de Justiça, o que é salutar. Em suma, o evento mostrou que muitos são os desafios futuros relativos à extrajudicialização, e que outras jornadas sobre o assunto são essenciais, para que as regras previstas no Novo Código de Processo Civil sejam, de fato, concretizadas. Mas o Direito de Família não foi objeto somente da comissão de trabalhos sobre mediação. No próximo texto, veremos os debates ocorridos na comissão de arbitragem, onde atuamos diretamente.
Entre os dias 1º e 2 de junho de 2016, promoveu-se em Portugal o I Encontro IBDFAM-CDF, realizado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família e pelo Centro de Direito da Família, ligado à secular Universidade de Coimbra. O evento teve a coordenação dos professores José Fernando Simão, pelo Brasil, e Guilherme de Oliveira, por Portugal, contando com a participação de mais de cinquenta especialistas; entre os brasileiros, os professores Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Rodrigo Toscano de Brito, Rodolfo Pamplona Filho, Giselle Groeninga, João Ricardo Brandão Aguirre, Fernanda Tartuce, Mariana Chaves e Rui Carvalho Piva. Um dos temas abordados no evento, especialmente pelos juristas portugueses, foi o apadrinhamento civil, tratado em terras lusitanas pela lei 103, de 11 de setembro de 2009, que teve como um dos seus elaboradores justamente o professor Guilherme de Oliveira. Este breve texto pretende trazer algumas reflexões iniciais sobre o instituto, na esteira dos debates que ocorreram naquele encontro em Portugal, confrontando a categoria dos patrícios com o projeto de lei 171, de 2013, aprovado recentemente pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal Brasileiro. O apadrinhamento civil português traz amplos efeitos jurídicos aos envolvidos, definindo o art. 2º da lei 103/2009 que o instituto é "uma relação jurídica, tendencialmente de carácter permanente, entre uma criança ou jovem e uma pessoa singular ou uma família que exerça os poderes e deveres próprios dos pais e que com ele estabeleçam vínculos afectivos que permitam o seu bem-estar e desenvolvimento". Ainda nos termos do mesmo comando, o apadrinhamento civil deve ser constituído por homologação ou decisão judicial, sujeita a registro civil. No que diz respeito à capacidade das partes, podem apadrinhar pessoas maiores de 25 anos, previamente habilitadas para tanto, dando-se preferência aos seus familiares; a pessoas idôneas ou a famílias de acolhimento a quem a criança ou o jovem tenha sido confiado em processo de promoção e proteção; ou mesmo a eventuais tutores (arts. 4º e 11, item n. 5, da lei 103/2009). Na outra ponta, quanto à capacidade para ser apadrinhado, o art. 5º da lei 103/2009 estabelece que, desde que o apadrinhamento civil apresente reais vantagens para a criança ou o jovem, e desde que não se verifiquem os pressupostos da confiança com vista à adoção, pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que a) esteja a beneficiar-se de uma medida de acolhimento em instituição; b) esteja a beneficiar-se de outra medida de promoção e proteção; c) encontre-se em uma situação de perigo confirmada em processo de uma comissão de proteção de crianças e jovens ou em processo judicial; d) para além dos casos previstos anteriormente, seja encaminhado para o apadrinhamento civil por iniciativa das pessoas ou das entidades previstas na mesma lei. Em complemento, está previsto que também pode ser apadrinhada qualquer criança ou jovem menor de 18 anos que esteja a beneficiar-se de confiança administrativa, confiança judicial ou medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção ou a pessoa selecionada para a adoção quando, depois de uma reapreciação fundamentada do caso, se mostre que esta é inviável. O apadrinhamento civil português somente pode ser concedido uma vez, regido pela regra da unicidade, expressa no art. 6º da lei 103/2009. Enuncia a norma que enquanto subsistir um apadrinhamento civil não pode constituir-se outro quanto ao mesmo afilhado. O preceito estabelece como exceção a hipótese em que os padrinhos vivem em família, seja por casamento ou união de facto (a união estável portuguesa). A existência de amplos efeitos decorrentes do instituto é clara pelo que consta do art. 7º da Lei n. 103/2009, que determina a existência de responsabilidades parentais dos padrinhos, o que corresponde, pelo menos em parte, à nossa ideia de poder familiar; ou de autoridade parental, como querem alguns. Nesse contexto, os padrinhos exercem amplamente as responsabilidades parentais, ressalvadas as eventuais limitações previstas no compromisso de apadrinhamento civil ou na decisão judicial. Aplicam-se, no que couber, algumas regras da tutela, constantes entre os arts. 1936º e 1941º, 1943º e 1944º do Código Civil Português; os dois últimos no caso de falecimento, de inibição do exercício da responsabilidade parental pelos pais ou de serem estes incógnitos. Em complemento, cabe a intervenção do Ministério Público para a proteção dos interesses do menor. Os pais biológicos do apadrinhado, em regra, beneficiam-se dos direitos expressamente consignados no compromisso de apadrinhamento civil, a saber: a) conhecerem a identidade dos padrinhos; b) disporem de uma forma de contatar os padrinhos; c) saberem o local de residência do filho; d) disporem de uma forma de contatar o filho; e) serem informados sobre o desenvolvimento integral do filho, a sua progressão escolar ou profissional, a ocorrência de fatos particularmente relevantes ou de problemas graves, nomeadamente de saúde; f) receberem com regularidade fotografias ou outro registro de imagem do filho; g) visitarem o filho, nas condições fixadas no compromisso ou na decisão judicial, designadamente por ocasião de datas especialmente significativas, caso dos aniversários de todos (art. 8º da lei 103/2009). Em suma, quem passa a exercer a guarda fática da criança ou do adolescente são os padrinhos, havendo um direito de amplo acesso físico e informacional por parte dos pais biológicos. Com a finalidade de concretizar o instituto, as relações entre pais e padrinhos são regidas pelos princípios do mútuo respeito; da preservação da intimidade da vida privada e familiar, do bom nome e da reputação do afilhado; e da cooperação na criação de condições adequadas ao bem-estar e desenvolvimento do apadrinhado (art. 9º da lei 103/2009). Por fim, com relevo para esta breve análise, geral e comparativa, no que diz respeito aos alimentos, o art. 13 da norma lusitana considera os padrinhos ascendentes em primeiro grau do afilhado, para efeito da obrigação de lhe prestar alimentos. Porém, são precedidos pelos pais deste em condições de satisfazer tal encargo. O afilhado, por seu turno, é considerado descendente em primeiro grau dos padrinhos para efeito da obrigação de lhes prestar alimentos, mas é precedido pelos filhos destes em condições de satisfazer este encargo. Em outras palavras, padrinhos e afilhados são tratados como pais e filhos para os devidos fins alimentares, mas de maneira subsidiária. Na verdade, o projeto de lei brasileiro sobre apadrinhamento legal, na denominação que consta da proposta, é bem mais restrito do que o tratamento previsto na norma lusitana. Cinge-se a projeção a tratar apenas de consequências alimentares decorrentes do vínculo que une os padrinhos aos apadrinhados. Na verdade, trata-se de prática que já acontece no Brasil há muito tempo, especialmente no que diz respeito aos conhecidos "padrinhos de batismo", existentes em algumas religiões. É bem comum, em nosso País, que os padrinhos arquem com alguns custos de seus afilhados, como aqueles relacionados com a formação intelectual dos últimos. O projeto de lei 171/2013 pretende tratar da questão no Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990), incluindo os arts. 52-E a 52-I no diploma legal. Frise-se que os efeitos são apenas alimentares, sem qualquer interferência no exercício do poder familiar ou das responsabilidades parentais (segundo os portugueses). Nesse contexto, está previsto que se entende por apadrinhamento legal a situação jurídica de quem voluntariamente assume o dever de sustento de criança ou adolescente (art. 52-E, § 1º, da projeção). A categoria é dividida em duas modalidades, a saber: a) apadrinhamento total, presente quando o dever de sustento da criança ou do adolescente é assumido integralmente; e b) apadrinhamento parcial, quando o padrinho assume obrigação de prestar contribuições mensais em favor da criança ou do adolescente ou contribuições de bens ou serviços com o fim de atender a proteção integral consagrada pelo ECA (art. 52-E, § 2º, no PL n. 171/2013). Além da ausência de qualquer interferência no exercício do poder familiar, guarda ou tutela, o apadrinhamento legal não impõe ao padrinho qualquer dever de fiscalização ou de reparação de possíveis danos causados pelo apadrinhado, nem qualquer outro dever atribuído ao representante legal do afilhado (proposta de art. 52-E, §§ 3º e 4º, do PL 171/2013). Os valores pagos são tratados de maneira equiparada à pensão alimentícia para os devidos fins de impenhorabilidade (art. 52-E, § 5º). Todavia, não cabe prisão civil pela falta do seu pagamento (art. 52-E, § 8º). Com os fins de evitar eventuais fraudes, o apadrinhado não é considerado dependente do padrinho para efeitos previdenciários (art. 52-E, § 9º). O caráter alimentar presente no apadrinhamento total é ressaltado pela proposta de inclusão do art. 52-F no ECA, determinando a norma a incidência do art. 1.694 do Código Civil Brasileiro. Nesse contexto, devem os alimentos ser fixados de acordo com as necessidades indispensáveis à subsistência do apadrinhado, ou seja, têm o caráter de alimentos necessários. A norma possibilita, ainda, o pagamento in natura dos alimentos, como na hipótese em que o padrinho cede um imóvel de sua propriedade para residência do afilhado adolescente. O número de apadrinhados limita-se a dois, nessa modalidade, salvo se forem irmãos. Veda-se, também, o apadrinhamento total da mesma criança ou adolescente simultaneamente por mais de uma pessoa, salvo se os padrinhos forem casados ou viverem em união estável devidamente comprovada. Em casos tais, ambos os cônjuges ou companheiros são solidariamente responsáveis pelas prestações alimentares. No apadrinhamento parcial, o padrinho assume a obrigação de prestar as contribuições que foram previamente estipuladas, facultando-se a ele o direito de, a qualquer tempo, cumprir com as suas obrigações de maneira in natura, assim como ocorre na modalidade de apadrinhamento total. Porém, ao contrário dessa última, no apadrinhamento parcial o afilhado não é considerado dependente alimentar do padrinho, constando todas essas regras na proposta de inclusão do art. 52-G no ECA, pelo PL 171/2013. Por derradeiro, no que diz respeito à sua formalização, o apadrinhamento legal depende de escritura pública a ser lavrada no Tabelionato de Notas, subscrita pelo padrinho e pelo responsável legal do apadrinhado, só produzindo efeitos após o seu registro no Cartório de Registro das Pessoas Naturais (proposta de inclusão do art. 52-H no ECA). Sucessivamente, a norma prevê a instauração de um procedimento administrativo perante o último cartório, com a oitiva do Ministério Público. Eventual conflito suscita decisão pelo juízo competente. Louva-se a desjudicialização do procedimento, como regra, na tendência consagrada pelo Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Essas são as diretrizes gerais do projeto, o que confirma a afirmação segundo a qual o projetado apadrinhamento legal brasileiro é bem mais restrito do que o apadrinhamento civil português, limitando-se ao pagamento de verbas alimentares e não interferindo no poder familiar. Quando expliquei a projeção brasileira brevemente nos debates em Portugal, ouvi da Professora Ana Rita Alfaiate, da Universidade de Coimbra, que não se tratava propriamente de um apadrinhamento civil. Todavia, a realidade demonstra que a nossa prática de apadrinhamento é realmente esta que o projeto de lei 171/2013 traz como conteúdo. Como palavras finais, estou filiado à projeção, pois ela acaba regulando algo que já acontece de forma espontânea na prática brasileira, concretizando a solidariedade estampada no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal de 1988.
Fui consultado recentemente sobre hipótese fática interessante, que dizia respeito à possibilidade ou não de se reconhecer a existência de uma sociedade de fato dentro do regime da separação convencional de bens. Em outras palavras, mesmo tendo os cônjuges optado pelo regime da separação de bens, por força de pacto antenupcial, seria viável, juridicamente, que alguns bens fossem partilhados, pela prova e efetiva de uma sociedade de fato? Nunca é demais esclarecer, como já fizemos neste canal, que o regime da separação convencional de bens, no Brasil, pode ter duas origens: a lei ou a vontade das partes. No primeiro caso, há o regime da separação legal ou obrigatória de bens, estabelecido nas hipóteses descritas no art. 1.641 do Código Civil Brasileiro, a saber: a) se presente uma das causas suspensivas do casamento, descritas no art. 1.523 do Código Civil1; b) em situações envolvendo cônjuges com idade superior a setenta anos; e c) para os que dependem de suprimento judicial para casar, caso dos menores de 16 anos (art. 1.520 do Código Civil). O regime da separação convencional de bens, por seu turno, é aquele que decorre da autonomia privada dos cônjuges, escolhido por meio de um pacto antenupcial, conforme autoriza o art. 1.640 da codificação material brasileira. Nas hipóteses envolvendo o regime da separação legal ou obrigatória de bens, como também neste canal antes pontuamos, a jurisprudência brasileira reconhece claramente a possibilidade de existência de uma sociedade de fato, diante da previsão da Súmula 377 do Supremo Tribunal de Justiça brasileiro, do ano de 1964, com a seguinte redação: "No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Reafirme-se que depois de muito debate, especialmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, prevalece nas Cortes brasileiras a conclusão de incidência dessa súmula, sem a necessidade de prova do esforço comum para que exista a partilha. Assim concluindo, por exemplo, repise-se: "a partilha dos bens adquiridos na constância da sociedade conjugal, erigida sob a forma de separação legal de bens, não exige a comprovação ou demonstração de comunhão de esforços na formação desse patrimônio, a qual é presumida, à luz do entendimento cristalizado na Súmula n. 377/STF. Precedentes do STJ" (AgRg no REsp 1008684/RJ, Rel. ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 24/04/2012, DJe 02/05/2012). Quanto ao regime da separação convencional de bens, o tema sobre a viabilidade ou não de uma sociedade de fato é de grande debate nas Cortes Superiores brasileiras, existindo decisões nos dois sentidos no mesmo Superior Tribunal de Justiça. Entendendo pela não comunicação de bens, com um voto vencido: "A cláusula do pacto antenupcial que exclui a comunicação dos aquestos impede o reconhecimento de uma sociedade de fato entre marido e mulher para o efeito de dividir os bens adquiridos depois do casamento. Precedentes" (STJ, REsp 404.088/RS, Rel. Ministro CASTRO FILHO, Rel. p/ Acórdão Ministro HUMBERTO GOMES DE BARROS, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/04/2007, DJ 28/05/2007, p. 320). Porém, em sentido contrário, colaciona-se: "O regime jurídico da separação de bens voluntariamente estabelecido é imutável e deve ser observado, admitindo-se, todavia, excepcionalmente, a participação patrimonial de um cônjuge sobre bem do outro, se efetivamente demonstrada, de modo concreto, a aquisição patrimonial pelo esforço comum, caso dos autos, em que uma das fazendas foi comprada mediante permuta com cabeças de gado que pertenciam ao casal" (STJ, REsp 286.514/SP, Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, QUARTA TURMA, julgado em 02/08/2007, DJ 22/10/2007, p. 276). Como se constata, os julgamentos que admitem a divisão de alguns bens entendem que essa é possível desde que seja provado o efetivo esforço patrimonial comum, ao contrário da interpretação que tem sido dada à súmula 377 do STF, para o regime da separação legal de bens. Assim, se seguida a última interpretação, que conta com o meu apoio, o cônjuge deve provar que o bem foi adquirido por sua contribuição patrimonial concreta e efetiva, ônus que lhe cabe. Prevalecendo a última solução, os bens e rendimentos que devem compor a sociedade de fato são aqueles que foram adquiridos pelo esforço de ambos os cônjuges, cabendo a prova por quem alega o direito no caso concreto. Não há uma simples meação, pois a solução se dá no campo do Direito das Obrigações, especialmente com a regra que veda o enriquecimento sem causa prevista no art. 884 do Código Civil: "Aquele que, sem justa causa, se enriquecer à custa de outrem, será obrigado a restituir o indevidamente auferido, feita a atualização dos valores monetários. Parágrafo único. Se o enriquecimento tiver por objeto coisa determinada, quem a recebeu é obrigado a restituí-la, e, se a coisa não mais subsistir, a restituição se fará pelo valor do bem na época em que foi exigido". Reafirme-se, pois esse é um ponto fundamental, que cabe ao cônjuge que pretende a divisão o ônus de provar quais bens e rendimentos foram adquiridos com a sua ajuda efetiva. Os bens que compõem esta sociedade de fato devem ser divididos de acordo com os esforços e contribuições patrimoniais de cada um dos cônjuges. A título de ilustração, se um imóvel foi adquirido com 70% de contribuição de uma parte e 30% de contribuição da outra, assim deve ser partilhado. Frise-se que não se trata propriamente de uma meação, regida pelo Direito de Família, mas de divisão de acordo com o que cada uma das partes efetivamente auxiliou na aquisição onerosa. Outras regras e princípios servem como amparo para a conclusão seguida. Além da vedação do enriquecimento sem causa podem ser mencionadas as disposições relacionadas à sociedade em comum. Conforme o art. 986 do Código Civil, "enquanto não inscritos os atos constitutivos, reger-se-á a sociedade, exceto por ações em organização, pelo disposto neste Capítulo, observadas, subsidiariamente e no que com ele forem compatíveis, as normas da sociedade simples". Em complemento, estabelece o art. 988 da mesma Lei Geral Privada que "os bens e dívidas sociais constituem patrimônio especial, do qual os sócios são titulares em comum". Mais uma vez, deve ser firmada a premissa segundo a qual essa titularidade depende de prova de contribuição ou esforço para a aquisição dos bens. Em complemento, a existência de uma sociedade de fato no regime da separação convencional de bens também decorre do princípio da boa-fé, retirado do art. 113 do Código Civil Brasileiro, aplicável ao pacto antenupcial, in verbis: "Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração". Penso que um cônjuge que nega a divisão de bens adquiridos pela outra parte viola a cláusula geral de boa-fé objetiva, especialmente a confiança depositada pelo outro (Treu und Glauben). Por fim, serve como argumento a proteção do direito de propriedade do cônjuge, sendo esse direito reconhecido pela Constituição Federal Brasileira como um direito e garantia fundamental, conforma previsão constante do seu art. 5º, inciso XXII. Nesse contexto de proteção do direito de propriedade, deve ser reconhecida a existência de um condomínio de fato entre os cônjuges, nos termos do que estabelece os arts. 1.314 a 1.322 do Código Civil Brasileiro. Negar a partilha dos bens adquiridos pelo esforço patrimonial de um dos cônjuges, mesmo no regime da separação convencional de bens, viola o mandamento superior, que protege o direito subjetivo em questão. Concluindo, existem muitos argumentos jurídicos para sustentar a possibilidade de existência de uma sociedade de fato dentro do regime da separação convencional de bens. __________ 1 "Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas".
Em artigo recentemente publicado no Jornal O Liberal, de Belém do Pará, e replicado em várias páginas da internet, o professor Zeno Veloso trouxe a debate um tema instigante, qual seja a possibilidade de afastamento da incidência da súmula 377 do STF por meio de pacto antenupcial celebrado por cônjuges que sofrem a imposição do regime da separação legal ou obrigatória de bens, na hipótese descrita pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil. O jurista assim relata o caso, com sua peculiar leveza de pena, sempre disposta a resolver os numerosos conflitos que lhe são levados a consulta em sua atividade profissional e acadêmica: "Há cerca de um ano João Carlos e Matilde estão namorando. Ele é divorciado, ela é viúva. João fez 71 anos de idade e Matilde tem 60 anos. Resolveram casar-se e procuraram um cartório de registro civil para promover o processo de habilitação. Queriam que o regime de bens do casamento fosse o da separação convencional, pelo qual cada cônjuge é proprietário dos bens que estão no seu nome, tantos dos que já tenha adquirido antes, como dos que vier a adquirir, a qualquer título, na constância da sociedade conjugal, não havendo, assim sendo, comunicação de bens com o outro cônjuge. Mas o funcionário do cartório explicou que, dado o fato de João Carlos ter mais de 70 anos, o regime do casamento tinha de ser o obrigatório, da separação de bens, conforme o art. 1.641, inciso II, do Código Civil. (...). Mas João Carlos é investidor, atua no mercado imobiliário, adquire bens imóveis, frequentemente, para revendê-los. E Matilde é corretora, de vez em quando compra um bem com a mesma finalidade. Seria um desastre econômico, para ambos, que os bens que fossem adquiridos por cada um depois de seu casamento se comunicassem, isto é, fossem de ambos os cônjuges, por força da súmula 377/STF. No final das contas, o regime da separação obrigatória, temperado pela referida súmula, funciona, na prática, como o regime da comunhão parcial de bens. Foi, então, que me procuraram, pedindo meu parecer" (VELOSO, Zeno. Casal quer afastar a súmula 377). Após tal exposição, o mestre do Pará expõe sua opinião, sustentando que é possível o afastamento da aplicação da sumular, por não ser o seu conteúdo de ordem pública, mas sim de matéria afeita à disponibilidade de direitos. E lança uma questão de consulta, que o presente texto pretende responder: "Mas há um grupo de jovens e competentes professores brasileiros, que integram a Confraria de Civilistas Contemporâneos, formada por mais de 30 mestres (Tartuce, Mário Delgado, Simão, Toscano, Catalan, Pablo Malheiros, Stolze, para citar alguns), a quem peço um parecer sobre o tema acima exposto. Afinal, podem ou não os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da Súmula 377?". Como um dos fundadores da citada Confraria - um grupo informal que pretende realizar encontros sociais e jurídicos de seus membros e convidados, especialmente para a congregação de vínculos de amizade e de afeto -, pretendo trazer aqui a nossa resposta, após ter consultado os amigos civilistas em nossa comunidade digital. Estamos total e unanimemente filiados à opinião de Zeno Veloso, levando-se em conta a opinium daqueles que se manifestaram no nosso grupo. De início, sem dúvida, a Súmula 377 do STF - do remoto ano de 1964 -, traz como conteúdo matéria de ordem privada, totalmente disponível e afastada por convenção das partes, não só no casamento, como na união estável. Vale lembrar que, pelo teor da sua ementa, "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Pontue-se que, após muito debate na doutrina e na jurisprudência, tem-se aplicado a súmula integralmente, sem a necessidade de prova do esforço comum dos cônjuges para que haja a comunicação de bens, como destaca o próprio professor em seu texto. Em outras palavras, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a quem cabe dar a última palavra a respeito do Direito Privado desde a Constituição Federal de 1988, praticamente transformou o regime da separação legal ou obrigatória de bens em um regime de comunhão parcial. Assim concluindo, por todos, entre os últimos julgamentos: "no regime da separação obrigatória, comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento, sendo presumido o esforço comum (Súmula n. 377/STF)" (STJ, AgRg no AREsp 650.390/SP, Rel. ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 27/10/2015, DJe 03/11/2015). Além da clareza do argumento, no sentido de se tratar de matéria de ordem privada e, portanto, disponível, acrescente-se, como pontuou Mário Luiz Delgado em nossos debates, que "é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver" (art. 1.639, caput, do Código Civil). A única restrição de relevo a essa regra diz respeito às disposições absolutas de lei, consideradas regras cogentes, conforme consta do art. 1.655 da mesma codificação, o que conduziria à nulidade absoluta da previsão. A título de exemplo, se há cláusula no pacto que afaste a incidência do regime da separação obrigatória, essa será nula, pois o art. 1.641 do Código Privado é norma de ordem pública, indisponível, indeclinável pela autonomia privada. Todavia, não há qualquer problema em se afastar a súmula 377 pela vontade das partes, o que, na verdade, ampliaria os efeitos do regime da separação obrigatória, passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, em que nada se comunica. Tal aspecto foi muito bem desenvolvido por José Fernando Simão também nos debates que travamos. Em suma, mestre Zeno Veloso, sim, podem os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da súmula 377. Acreditamos que tal afastamento constitui um correto exercício da autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto antenupcial (art. 1.653 do CC/2002).
quarta-feira, 27 de abril de 2016

O bem de família vazio

A lei 8.009/1990 representa uma das normas jurídicas de maior relevo prático na realidade jurídica brasileira. Baseada no trabalho acadêmico do professor Álvaro Villaça Azevedo, dispõe ela sobre a impenhorabilidade do bem de família legal, que passou a ser o imóvel residencial, rural ou urbano, próprio do casal ou da entidade familiar, protegido pela impenhorabilidade, independentemente de inscrição no registro de imóveis. Originariamente, ensina o professor do Largo de São Francisco que "pode-se dizer, seguramente, que o bem de família nasceu com tratamento jurídico específico, na República do Texas, sendo certo que, no Direito Americano, desponta ele como sendo uma pequena propriedade agrícola, residencial, da família, consagrada à proteção desta" (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família. São Paulo: José Bushatsky, 1974, p. 19). Assim, o embrião desse amparo é relacionado à tutela do homestead, o que significa local do lar. Nos termos do art. 1º dessa lei, "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas na lei". Trata-se de importante norma de ordem pública que protege tanto a família quanto a pessoa humana, especialmente o direito à moradia, previsto no art. 6º da Constituição Federal de 1988. Isso justifica, de início, a edição da súmula 364 pelo Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual o manto da impenhorabilidade também atinge o imóvel onde reside pessoa solteira, separada ou viúva. Nos termos dos precedentes que geraram a ementa, o fim teleológico da lei 8.009/1990 não é proteger um grupo de pessoas, mas a pessoa, em especial o citado direito social e fundamental à moradia. Sem dúvida, trata-se de uma interpretação extensiva dada à lei, pois, expressamente, a proteção alcança apenas aqueles que vivem em família. Não só nessa hipótese, mas também em outras, a jurisprudência superior tem concluído desse modo, ampliando o sentido da norma, em sadio diálogo com o Texto Maior. Cite-se, em complemento, que o mesmo Tribunal da Cidadania tem entendimento consolidado no sentido de que, em caso de locação do bem, utilizada a renda do imóvel para a mantença da entidade familiar, a proteção permanece. Nesse contexto, "a orientação predominante no STJ é no sentido de que a impenhorabilidade prevista na lei 8.009/1990 se estende ao único imóvel do devedor, ainda que este se ache locado a terceiros, por gerar frutos que possibilitam à família constituir moradia em outro bem alugado" (STJ, AgRg 385.692/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, julgado em 09.04.2002, DJ 19.08.2002). A questão se consolidou de tal forma que, em 2012, foi editada a Súmula n. 486 dessa Corte Superior, in verbis: "é impenhorável o único imóvel residencial do devedor que esteja locado a terceiros, desde que a renda obtida com a locação seja revertida para a subsistência ou a moradia da sua família". Trata-se do que denominamos bem de família indireto, pois a tutela da moradia é dada de forma mediata ou reflexa. A propósito, entende-se, ainda, que a afirmação igualmente vale para o caso de único imóvel do devedor que esteja em usufruto, para destino de moradia de sua mãe, pessoa idosa (STJ, REsp 950.663/SC, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 10.04.2012). No último decisum, além da proteção da moradia, julgou-se com base no sistema de tutela constante do Estatuto do Idoso. Tal tendência de ampliação da tutela da moradia também pode ser retirada de aresto mais recente, publicado no Informativo n. 543 do STJ, ao julgar que "constitui bem de família, insuscetível de penhora, o único imóvel residencial do devedor em que resida seu familiar, ainda que o proprietário nele não habite". Nos termos da publicação, que mais uma vez conta com o nosso total apoio, "deve ser dada a maior amplitude possível à proteção consignada na lei que dispõe sobre o bem de família (Lei 8.009/1990), que decorre do direito constitucional à moradia estabelecido no caput do art. 6.º da CF, para concluir que a ocupação do imóvel por qualquer integrante da entidade familiar não descaracteriza a natureza jurídica do bem de família" (STJ, EREsp 1.216.187/SC, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 14.05.2014). Pois bem, além de todas essas hipóteses, de interpretações extensivas da norma jurídica em prol da moradia, direito fundamental e social indeclinável, o Superior Tribunal de Justiça também tem entendido que "o fato do terreno encontrar-se desocupado ou não edificado são circunstâncias que sozinhas não obstam a qualificação do imóvel como bem de família, devendo ser perquirida, caso a caso, a finalidade a este atribuída" (tese número 10, publicada na Ferramenta Jurisprudência em Teses, Edição n. 44). Trata-se do que se pode denominar bem de família vazio. A análise de um dos acórdãos que gerou a afirmação jurisprudencial resumida merece análise depurada. Nos termos do julgamento constante do Recurso Especial n. 825.660/SP, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha, julgado em 1º de dezembro de 2009, "ocorreram danos no imóvel causados pelo transbordamento das águas da rede de águas pluviais. A referida ação foi julgada procedente, e a Prefeitura Municipal de Osasco foi condenada: a) a providenciar o desvio da rede canalizada e a reparar o imóvel; b) a reembolsar despesas com correspondências e aluguéis; e c) a pagar danos morais. A impenhorabilidade do bem de família serve para assegurar a propriedade da residência da entidade familiar de modo a assegurar-lhe uma existência digna. Verifica-se, no caso, que os devedores tiveram que desocupar o imóvel em razão do dano causado por fato de terceiro que tornou-o inabitável. Ora, não se pode afastar a impenhorabilidade do imóvel em razão de os devedores nele não residirem por absoluta ausência de condições de moradia. A parte recorrida não teve opção. A desocupação do imóvel era medida que se impunha. Não pode agora os devedores sofrerem a perda de seu único imóvel residencial, quando já estão sendo privados de utilizá-lo em razão de fato de terceiro. Assim, incabível a penhorabilidade de imóvel, quando os devedores, por fato alheio a sua vontade, deixam de nele residir em razão da falta de serviço estatal" De fato, não se pode impor a impenhorabilidade em casos semelhantes ou próximos, pois o fato de o imóvel encontrar-se vazio, desocupado, inabitado, não é imputável à conduta do devedor, mas a ato ou omissão da administração pública. Sendo assim, a impenhorabilidade é medida que se impõe, com vistas à proteção de um direito à moradia potencial, que se encontra dormente no momento da discussão da penhora, mas que pode voltar a ter incidência concreta a qualquer momento. Em verdade, todas essas interpretações extensivas do texto legal mantêm relação direta com a metodologia do Direito Civil Constitucional, segundo a qual se deve analisar os institutos privados de acordo com os direitos fundamentais e os princípios constitucionais, encartados na CF/1988. Muito ao contrário do que sustentam alguns, tal metodologia não se encontra esgotada em nosso País. Tanto isso é verdade que acabou por ser expressamente positivada, indiretamente, pelo art. 1º do Novo Código de Processo Civil, eis que "o processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código". Diz-se indiretamente diante do fato de se atingir primeiramente os institutos processuais; e depois os materiais. Sendo assim, acreditamos que essa visão unitária do sistema jurídico seja incrementada nos próximos anos. Como bem demonstram Anderson Schreiber, Carlos Nelson Konder e outros juristas em obra coletiva recentemente lançada, o Direito Civil Constitucional ainda tem pela frente muitos desafios a superar (Editora GEN/Atlas, 2016).
Conforme destacado em texto anterior, publicado neste canal, o Novo CPC traz um dispositivo relativo à ação de alteração de regime de bens (art. 734). A regulamentação instrumental dessa demanda é novidade no sistema processual brasileiro. No que diz respeito à possibilidade jurídica dessa ação de modificação do regime de bens, esta foi criada pelo Código Civil de 2002, especialmente pelo seu art. 1.639, § 2º, segundo o qual: "É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros". A regra foi praticamente repetida pelo caput do art. 734 do Novo Código de Processo Civil. Trata-se de demanda que ganhou grande relevância entre os familiaristas nos últimos anos. Analisadas as questões relativas à justa causa para a mudança e os direitos de terceiros, é preciso abordar os efeitos da sentença que defere a alteração. O presente autor segue a posição segundo a qual os efeitos da alteração do regime são ex nunc, ou seja, a partir do trânsito em julgado da decisão, o que nos parece cristalino, por uma questão de eficácia patrimonial. Conforme pontuado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, nos autos do Recurso Especial 1.300.036/MT, julgado pela Terceira Turma do STJ em maio de 2014, "o segundo ponto controvertido situa-se em torno da fixação do termo inicial dos efeitos dessa alteração do regime de bens: retroação à data do casamento (eficácia 'ex tunc') ou a partir da data do trânsito em julgado da decisão judicial que o alterou (eficácia 'ex nunc'). Essa questão, ainda hoje debatida na doutrina e na jurisprudência, é relevante na espécie, pois as partes, após alguns anos de união estável, casaram-se, em 24/05/1997, pelo regime da separação de bens, alterando esse regime para comunhão parcial em 2007, deflagrando-se o processo de separação em outubro de 2008. Em relação à eficácia 'ex tunc', o acórdão recorrido sintetiza os argumentos em prol dessa tese, sendo o principal deles o de que o regime de bens do casamento deve ser único ao longo de toda a relação conjugal. Em relação à eficácia 'ex nunc', o argumento central é no sentido de que a eficácia da alteração de um regime de bens, que era válido e eficaz, deve ser para o futuro, preservando-se os interesses dos cônjuges e de terceiros". Ao final, o Ministro Sanseverino segue a segunda solução, compartilhada por este autor, "pois não foi estabelecida pelo legislador a necessidade de que o regime de bens do casamento seja único ao longo de toda a relação conjugal, podendo haver a alteração com a chancela judicial. Em Cortes Estaduais, na mesma esteira, cabe destacar julgados do Tribunal Gaúcho e Paulista" (por todos: TJRS; Apelação cível n. 0056229-48.2015.8.21.7000, Porto Alegre, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís Dall'Agnol, julgado em 26.05.2015, DJERS 03.06.2015 e TJSP, Apelação n. 0013056-15.2007.8.26.0533, Acórdão n. 5065672, Santa Bárbara d'Oeste, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Viviani Nicolau, julgado em 12/04/2011, DJESP 01/06/2011). Esclareça-se que a natureza desses efeitos é capaz de afastar a necessidade de prova da ausência de prejuízos a terceiros pelos cônjuges, para que a alteração do regime de bens seja deferida, conforme sustentamos em texto anterior. Ademais, eventuais efeitos ex tunc fariam que o regime de bens anterior não tivesse eficácia, atingindo um ato jurídico perfeito, constituído por vontade dos cônjuges. No âmbito da doutrina, e da própria jurisprudência, ressalte-se, todavia, que a questão não é pacífica. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, por exemplo, entendem que os efeitos são ex tunc porque "quando os cônjuges pretendem modificar o seu regime, o patrimônio atingido, que sofrerá a incidência do novo regramento é, por óbvio, aquele existente, até a data da sentença da mudança. Ora, com isso, é forçoso convir que os bens e valores amealhados - em conjunto ou separadamente - pelos consortes até o momento da mudança serão atingidos pelo pronunciamento judicial, submetendo-se, pois, a novo regramento. Sob esse aspecto, a sentença, pois, necessariamente, incide no patrimônio anterior. Daí por que a sua eficácia é ex tunc" (Novo Curso de Direito Civil Direito de Família. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, v. 6, p. 336). Também podem ser encontradas decisões estaduais que seguem esse caminho (por todos: TJMG, Apelação cível n. 1.0223.11.006774-9/001, Rel. Des. Luis Carlos Gambogi, julgado em 26/06/2014, DJEMG 07.07.2014 e TJDF, Recurso 2010.01.1.006987-3, Acórdão n. 440.239, Primeira Turma Cível, Rel. Des. Natanael Caetano, DJDFTE 25.08.2010, pág. 77). Exposta a controvérsia e reiterada nossa posição pelos efeitos ex nunc da sentença que altera o regime de bens, é preciso retomar debate de direito intertemporal a respeito dessa demanda, regulamentada agora pelo Novo CPC. Seria possível alterar regime de bens de casamento celebrado na vigência do Código Civil de 1916 e do Código de Processo Civil de 1973? Muitos poderiam pensar que a resposta é negativa, diante do que consta do art. 2.039 do Código Civil de 2002, in verbis: "O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código Civil anterior, lei 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido". Essa, contudo, não é a melhor conclusão para os devidos fins práticos. Um dos primeiros autores na doutrina brasileira a perceber a real intenção do legislador foi Euclides de Oliveira. A respeito do art. 2.039, explica o jurista que esse dispositivo legal "apenas determina que, para os casamentos anteriores ao Código Civil de 2002, não poderão ser utilizadas as regras do novo Código Civil referentes às espécies de regime de bens, para efeito de partilha do patrimônio do casal. Ou seja, somente as regras específicas acerca de cada regime é que se aplicam em conformidade com a lei vigente à época da celebração do casamento, mas, quanto às disposições gerais, comuns a todos os regimes, aplica-se o novo Código Civil" (Alteração do Regime de Bens no Casamento. In: DELGADO, Mário Luiz; ALVES, Jones Figueirêdo [Coords.]. Questões Controvertidas no Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2003. v. 1, p. 389). Em síntese, como o art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é uma norma geral quanto ao regime de bens, pode ser aplicada a qualquer casamento, entendimento esse que foi acatado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, já no remoto ano de 2004 (TJSP, Apelação Cível n. 320.566-4/0, São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Marcondes Machado, 08.06.2004, v.u.). Contudo, coube ao Superior Tribunal de Justiça fazer a melhor interpretação da questão. Isso porque a Corte utilizou o art. 2.035, caput, do CC/2002 e a Escada Ponteana para deduzir que é possível alterar regime de bens de casamento celebrado na vigência da codificação material anterior. Como é notório, Pontes de Miranda, em seu Tratado de Direito Privado (Tomos 3, 4 e 5), dividiu o negócio jurídico em três planos. O primeiro é o plano da existência, no qual estão os pressupostos mínimos de um negócio jurídico, que formam o seu suporte fático: partes, vontade, objeto e forma. O segundo é o plano da validade, em que os elementos mínimos de existência recebem qualificações, nos termos do art. 104 do CC/2002, a saber: partes capazes; vontade livre; objeto lícito, possível, determinado ou determinável; forma prescrita ou não defesa em lei. Por fim, no plano da eficácia, estão as consequências do negócio jurídico, elementos relacionados com os seus efeitos (condição, termo, encargo, inadimplemento, juros, multa, perdas e danos, entre outros). Relativamente a esses três planos e à aplicação das normas jurídicas no tempo, estabelece o importante art. 2.035, caput, do Código Civil em vigor: "A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução". Em resumo, o que o dispositivo legal está estabelecendo é que, quanto aos planos da existência e da validade (o primeiro está dentro do segundo), devem ser aplicadas as normas do momento da constituição ou celebração do negócio. No tocante ao plano da eficácia, devem incidir as normas do momento dos efeitos. O regime de bens, por razões claras e lógicas, situa-se no plano da eficácia, pois diz respeito às consequências práticas do casamento, à modificação ou extinção de direitos. Ademais, a existência ou a validade do casamento não depende do regime de bens adotado. Em complemento, é notório que, não havendo adoção por qualquer regime, prevalecerá o regime legal ou supletório, qual seja, o da comunhão parcial de bens (art. 1.640 do Código Civil). Diante dessas premissas, entendeu o Tribunal da Cidadania, em conhecido precedente, que "apresenta-se razoável, in casu, não considerar o art. 2.039 do CC/2002 como óbice à aplicação de norma geral, constante do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, concernente à alteração incidental de regime de bens nos casamentos ocorridos sob a égide do CC/1916, desde que ressalvados os direitos de terceiros e apuradas as razões invocadas pelos cônjuges para tal pedido, não havendo que se falar em retroatividade legal, vedada nos termos do art. 5º, XXXVI, da CF/1988, mas, ao revés, nos termos do art. 2.035 do CC/2002, em aplicação de norma geral com efeitos imediatos" (STJ, REsp 730.546/MG, Quarta Turma, Rel. Min. Jorge Scartezzini, j. 23.08.2005, DJ 03.10.2005, p. 279). Sucessivamente, outros julgados surgiram na mesma esteira desse julgamento, estando a questão consolidada em nossa jurisprudência (por todos: STJ, REsp 1.112.123/DF, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 16.06.2009, DJE 13.08.2009; TJ/RS, Apelação Cível n. 383376-78.2012.8.21.7000, Bagé, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 29.11.2012, DJERS 05.12.2012; TJSP, Apelação n. 9102946-53.2007.8.26.0000, Acórdão n. 5628185, São Paulo, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Fábio Quadros, j. 17.11.2011, DJESP 24.01.2012; TJPR, Apelação Cível n. 0413965-9, Astorga, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. Mário Rau, DJPR 28.03.2008, p. 110; TJMG, Apelação Cível n. 1.0439.06.053252-0/001, Muriaé, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Antônio Marcos Alvim Soares, j. 06.03.2007, DJMG 04.05.2007; e TJRJ, Apelação Cível n. 2007.001.08400, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Milton Fernandes de Souza, j. 27.03.2007). Cumpre esclarecer, por oportuno, que esse entendimento jurisprudencial já tinha amparo doutrinário no Enunciado 260, aprovado na III Jornada de Direito Civil, realizada em 2004, nos seguintes termos: "A alteração do regime de bens prevista no § 2º do art. 1.639 do Código Civil também é permitida nos casamentos realizados na vigência da legislação anterior". Em suma, essa é a posição majoritária da doutrina e da jurisprudência brasileiras, que vem ser integralmente mantidas na vigência do Estatuto Processual emergente. Voltando aos preceitos do Novo CPC, conforme o § 2º do art. 734, os cônjuges, na petição inicial ou em petição avulsa, podem propor ao juiz meio alternativo de divulgação da alteração do regime de bens, a fim de resguardar direitos de terceiros. Assim, por exemplo, não obsta a divulgação da alteração em um jornal local ou em um sítio da internet. Mais uma vez, há, na opinião deste autor, uma preocupação excessiva com a fraude, na contramão da doutrina e da jurisprudência construídas sob a égide do Código Civil de 2002. Por fim, demonstrando a mesma preocupação, após o trânsito em julgado da sentença de alteração do regime de bens, serão expedidos mandados de averbação aos cartórios de registro civil e de imóveis. Nos termos do mesmo § 3º do art. 734 do CPC/2015, caso qualquer um dos cônjuges seja empresário, deve ser expedido também mandado de averbação ao registro público de empresas mercantis e atividades afins.
O Novo CPC, ao lado do tratamento das ações de família e da regulamentação do divórcio, traz um dispositivo relativo à ação de alteração de regime de bens (art. 734). A regulamentação instrumental dessa demanda é novidade no sistema processual brasileiro. Como é cediço, a possibilidade jurídica dessa ação de modificação do regime de bens foi criada pelo Código Civil de 2002, especialmente pelo seu art. 1.639, § 2º, segundo o qual: "É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros". A regra foi praticamente repetida pelo caput do art. 734 do Novo Código de Processo Civil, in verbis: "A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros". Cumpre destacar que as normas são claras no sentido de somente admitirem a alteração do regime mediante pedido judicial de ambos os cônjuges, em havendo uma ação de jurisdição voluntária, que corre na Vara da Família, se houver. Em projeções legislativas, existe a tentativa de se criar a possibilidade de alteração administrativa do regime de bens, por meio de escritura pública, conforme o PLS 470/2013, conhecido como Estatuto das Famílias do IBDFAM, que conta com o apoio deste autor. Na verdade, a reafirmação da necessidade de uma demanda judicial no Novo Código de Processo Civil já nasce desatualizada diante de outras projeções mais avançadas. A alteração somente é possível, nos termos literais das normas, se for fundada em pedido motivado, desde que apurada a procedência das razões invocadas. Esse justo motivo constitui uma cláusula geral, a ser preenchida pelo juiz caso a caso, à luz da operabilidade e do sistema aberto adotado tanto pelo CC/2002 quanto pelo CPC/2015. Como primeiro exemplo, pode ser citado o desaparecimento de causa suspensiva do casamento (art. 1.523 do Código Civil), sendo possível alterar o regime da separação obrigatória de bens para outro, na linha do que consta do Enunciado n. 262 do CJF/STJ, da III Jornada de Direito Civil. A jurisprudência superior já conclui desse modo, cabendo trazer à colação: "por elementar questão de razoabilidade e justiça, o desaparecimento da causa suspensiva durante o casamento e a ausência de qualquer prejuízo ao cônjuge ou a terceiro, permite a alteração do regime de bens, antes obrigatório, para o eleito pelo casal, notadamente porque cessada a causa que exigia regime específico. Os fatos anteriores e os efeitos pretéritos do regime anterior permanecem sob a regência da lei antiga. Os fatos posteriores, todavia, serão regulados pelo CC/2002, isto é, a partir da alteração do regime de bens, passa o CC/2002 a reger a nova relação do casal. Por isso, não há se falar em retroatividade da lei, vedada pelo art. 5º, inc. XXXVI, da CF/1988, e sim em aplicação de norma geral com efeitos imediatos" (STJ, REsp 821.807/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 19.10.2006, DJ 13.11.2006, p. 261). Como segundo exemplo de um justo motivo, a jurisprudência paulista deferiu a alteração, diante de dificuldades contratuais encontradas por um dos consortes. Assim julgando, por todos: "Regime de Bens. Pedido de alteração do regime de comunhão parcial de bens para o de separação total. Alegação de dificuldade de contratação de financiamento para aquisição de imóvel residencial, por força das dívidas contraídas pelo cônjuge varão. Preenchimento dos requisitos previstos no art. 1.639, § 2º, do Código Civil verificado. Ausência de óbice à alteração do regime de bens do casamento. Medida que não acarretará prejuízo algum aos cônjuges ou aos filhos. Terceiros que não serão atingidos pela alteração, que gerará efeitos apenas 'ex nunc'. Alteração determinada. Recurso provido" (TJ/SP, Apelação com Revisão 600.593.4/4, Acórdão 4048973, São Paulo, Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Luiz Antonio de Godoy, j. 08.09.2009, DJESP 06.11.2009). De toda sorte, há quem entenda pela desnecessidade de motivação para que o regime de bens seja alterado judicialmente, eis que se trata de uma exigência excessiva constante da lei. Em suma, haveria uma intervenção dispensável do Estado nas questões familiares, o que feriria o princípio da não intervenção, previsto no art. 1.513 do CC/2002 e de outros regramentos do Direito de Família. Com esse sentir, decisão do Tribunal Gaúcho, de relatoria do Des. Luiz Felipe Brasil Santos, que conta com o nosso apoio: "Apelação cível. Regime de bens. Modificação. Inteligência do art. 1.639, § 2º, do Código Civil. Dispensa de consistente motivação. 1. Estando expressamente ressalvados os interesses de terceiros (art. 1.639, § 2º, do CCB), em relação aos quais será ineficaz a alteração de regime, não vejo motivo para o Estado-Juiz negar a modificação pretendida. Trata-se de indevida e injustificada ingerência na autonomia de vontade das partes. Basta que os requerentes afirmem que o novo regime escolhido melhor atende seus anseios pessoais que se terá por preenchida a exigência legal, ressalvando-se, é claro, a suspeita de eventual má-fé de um dos cônjuges em relação ao outro. Três argumentos principais militam em prol dessa exegese liberalizante, a saber: 1) não há qualquer exigência de apontar motivos para a escolha original do regime de bens quando do casamento; 2) nada obstaria que os cônjuges, vendo negada sua pretensão, simulem um divórcio e contraiam novo casamento, com opção por regime de bens diverso; 3) sendo atualmente possível o desfazimento extrajudicial do próprio casamento, sem necessidade de submeter ao Poder Judiciário as causas para tal, é ilógica essa exigência quanto à singela alteração do regime de bens. 2. Não há qualquer óbice a que a modificação do regime de bens se dê com efeito retroativo à data do casamento, pois, como já dito, ressalvados estão os direitos de terceiros. E, sendo retroativos os efeitos, na medida em que os requerentes pretendem adotar o regime da separação total de bens, nada mais natural (e até exigível, pode-se dizer) que realizem a partilha do patrimônio comum de que são titulares. 3. Em se tratando de feito de jurisdição voluntária, invocável a regra do art. 1.109 do CPC, para afastar o critério de legalidade estrita, decidindo-se o processo de acordo com o que se repute mais conveniente ou oportuno (critério de equidade). Deram provimento. Unânime" (TJRS, Apelação Cível 172902-66.2011.8.21.7000, Marcelino Ramos, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, j. 28.07.2011, DJERS 04.08.2011). Consigne-se que, em sentido muito próximo, o Tribunal Paulista entendeu que não há necessidade de detalhamento das razões, ou seja, pela "desnecessidade de apresentação muito pormenorizada de razão" para a alteração do regime (TJSP, Apelação 0018358-39.2009.8.26.0344, Acórdão 5185207, Marília, Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Gilberto de Souza Moreira, j. 01.06.2011, DJESP 09.08.2011). Mais recentemente, pronunciou-se da mesma maneira o Superior Tribunal de Justiça, conforme publicação que consta do seu Informativo n. 518, com o seguinte tom: "Nesse contexto, admitida a possibilidade de aplicação do art. 1.639, § 2º, do CC/2002 aos matrimônios celebrados na vigência do CC/1916, é importante que se interprete a sua parte final - referente ao 'pedido motivado de ambos os cônjuges' e à 'procedência das razões invocadas' para a modificação do regime de bens do casamento - sob a perspectiva de que o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de 'asilo inviolável'. Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de 'intervenção mínima', não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família. Desse modo, a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada dos consortes. Nesse sentido, a constituição de uma sociedade por um dos cônjuges poderá impactar o patrimônio comum do casal. Assim, existindo divergência conjugal quanto à condução da vida financeira da família, haveria justificativa, em tese, plausível à alteração do regime de bens. Isso porque se mostra razoável que um dos cônjuges prefira que os patrimônios estejam bem delimitados, para que somente o do cônjuge empreendedor possa vir a sofrer as consequências por eventual fracasso no empreendimento" (STJ, REsp 1.119.462/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 26.02.2013). Em suma, tem-se mitigado jurisprudencialmente a estrita exigência normativa do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, o que vem em boa hora, pois são os cônjuges aqueles que têm a melhor consciência sobre os embaraços que o regime de bens adotado pode gerar em sua vida cotidiana. A interpretação deve ser a mesma no que diz respeito ao Novo Código de Processo Civil que, mais uma vez, parece estar na contramão da jurisprudência, ao exigir expressamente a motivação para a mudança do regime. Ainda nos termos da literalidade dos dois comandos, material e processual, a alteração do regime de bens não poderá prejudicar os direitos de terceiros, presente uma intenção legislativa de se proteger a boa-fé objetiva e de desprestigiar a má-fé. De modo algum essa alteração do regime poderá ser utilizada com intuito de fraude, inclusive tributária. A jurisprudência tem exigido cabalmente a prova de ausência de prejuízos a terceiros (TJSP, Apelação 644.416.4/0, Acórdão 4168081, Boituva, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 29.10.2009, DJESP 10.12.2009). Na mesma linha, o Enunciado n. 113 do CJF/STJ, aprovado na I Jornada de Direito Civil: "É admissível a alteração do regime de bens entre os cônjuges, quando então o pedido, devidamente motivado e assinado por ambos os cônjuges, será objeto de autorização judicial, com ressalva dos direitos de terceiros, inclusive dos entes públicos, após perquirição de inexistência de dívida de qualquer natureza, exigida ampla publicidade". De qualquer forma, destaque-se que, em havendo prejuízo para terceiros de boa-fé, a alteração do regime deve ser reconhecida como meramente ineficaz em relação a esses, o que não prejudica a sua validade e eficácia entre as partes. Como bem explica Débora Brandão, "o resguardo dos direitos de terceiros por si só não tem o condão de obstar a mutabilidade do regime de bens. Aponta-se como solução para ele a elaboração de um sistema registral eficiente, tanto do pacto antenupcial como de suas posteriores modificações, para devida publicidade nas relações entre os cônjuges a terceiros e a produção de efeitos, ou seja, a alteração só produziria efeitos em relação a terceiros após a devida publicidade da sentença, cuja natureza é constitutiva, restando inalterados todos os negócios posteriormente praticados. Respeita-se, dessa forma, o ato jurídico perfeito" (BRANDÃO, Débora Vanessa Caús. Regime de Bens no Código Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 103). Concluindo, nessa esteira, no âmbito jurisprudencial: "a alteração do regime de bens não tem efeito em relação aos credores de boa-fé, cujos créditos foram constituídos à época do regime de bens anterior" (TJ/RS, Agravo de Instrumento 70038227633, Porto Alegre, Oitava Câmara Cível, Rel. Des. Rui Portanova, j. 24.08.2010, DJERS 30.08.2010). O acórdão julgou pela desnecessidade de prova, pelos cônjuges, da inexistência de ações judiciais ou de dívidas, pois isso não prejudica a eficácia da alteração do regime entre os cônjuges. Em síntese, não se seguiu a linha do citado Enunciado n. 113 do CJF/STJ, pois a perquirição da existência de dívidas ou demandas não seria uma exigência para a modificação do regime. Houve, nesse contexto, um abrandamento do texto do art. 1.639, § 2º, do CC/2002, servindo a mesma conclusão para o art. 734, caput, do CPC/2015. Cumpre ressaltar que outras decisões exigem tal prova, para que a alteração patrimonial seja considerada idônea e, então, deferida pelo juiz da causa (por todos: TJ/DF, Recurso 2006.01.1.036489-5, Acórdão 386.017, Sexta Turma Cível, Rel. Des. Luis Gustavo B. de Oliveira, DJDFTE 12.11.2009, p. 121; e TJSP, Apelação 644.416.4/0, Acórdão 4168081, Boituva, Quarta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ênio Santarelli Zuliani, j. 29.10.2009, DJESP 10.12.2009). A questão, como se vê, é polêmica, devendo ser aprofundada com a emergência do novel Estatuto Processual. Aliás, expressa o § 1º do art. 734 do CPC/2015 que, ao receber a petição inicial da ação de alteração de regime de bens, o juiz determinará a intimação do Ministério Público e a publicação de edital que divulgue a pretendida modificação, somente podendo decidir o juiz depois de decorrido o prazo de 30 dias da publicação do edital. Como se vê, o Novo Estatuto Processual aprofunda a preocupação com a possibilidade de fraudes, determinando a atuação do MP, mesmo não havendo interesses de incapazes. Por todos os argumentos antes expostos, a preocupação parece excessiva e desatualizada ante a doutrina e jurisprudência consolidadas diante do Código Civil Brasileiro de 2002. No que concerne à publicidade da modificação do regime patrimonial, no ano de 2012, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que o mero registro da sentença transitada em julgado tem o condão de dar publicidade à alteração do regime de bens, não devendo prevalecer norma da Corregedoria do Tribunal do Estado do Rio Grande do Sul, que apontava a necessidade de publicação de editais dessa alteração. Assim, em certo sentido, não se adotou, por igual, a parte final do citado Enunciado n. 113, que determina a necessidade de ampla publicidade na modificação do regime. Vejamos a ementa do decisum: "Civil. Família. Matrimônio. Alteração do regime de bens do casamento (CC/2002, art. 1.639, § 2º). Expressa ressalva legal dos direitos de terceiros. Publicação de edital para conhecimento de eventuais interessados, no órgão oficial e na imprensa local. Provimento 24/2003 da Corregedoria do Tribunal Estadual. Formalidade dispensável, ausente base legal. Recurso especial conhecido e provido. 1. Nos termos do art. 1.639, § 2º, do Código Civil de 2002, a alteração do regime jurídico de bens do casamento é admitida, quando procedentes as razões invocadas no pedido de ambos os cônjuges, mediante autorização judicial, sempre com ressalva dos direitos de terceiros. 2. Mostra-se, assim, dispensável a formalidade emanada de Provimento do Tribunal de Justiça de publicação de editais acerca da alteração do regime de bens, mormente pelo fato de se tratar de providência da qual não cogita a legislação aplicável. 3. O princípio da publicidade, em tal hipótese, é atendido pela publicação da sentença que defere o pedido e pelas anotações e alterações procedidas nos registros próprios, com averbação no registro civil de pessoas naturais e, sendo o caso, no registro de imóveis. 4. Recurso Especial provido para dispensar a publicação de editais determinada pelas instâncias ordinárias" (STJ, REsp 776.455/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 17.04.2012, DJE 26.04.2012). Feitas tais considerações a respeito do tema, em um próximo texto, complementar ao presente, analisaremos os efeitos da ação de alteração do regime de bens, uma importante questão de Direito Intertemporal, bem como outras regras que foram introduzidas pelo Novo Código de Processo Civil.
O Novo Código de Processo Civil, que entrará em vigor em 18 de março de 2016 - na visão deste autor, seguindo-se o mesmo critério adotado anteriormente para o Código Civil de 2002 -, traz muitas normas com impacto direto sobre o Direito de Família brasileiro. Cito, como principal exemplo, as regras procedimentais específicas para as ações de Família, previstas entre os seus arts. 693 a 699, com destaque para a prioridade que deve ser dada à mediação e à conciliação entre as partes. Ademais, existem outros preceitos, muitos deles escondidos, ou não perceptíveis em uma primeira análise, com repercussões para esse importante ramo do Direito Civil, o que deve ser esmiuçado pela doutrina e incrementado pela jurisprudência nos próximos anos. Um desses comandos é aquele que trata do julgamento antecipado parcial de mérito, o que tem enorme incidência para as demandas que almejam o fim da conjugalidade, pelo divórcio, e a dissolução da união estável. Conforme o art. 356 do CPC/2015, passa a ser possível, expressamente pelo texto legal, uma decisão parcial, quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: a) mostrar-se incontroverso; e b) estiver em condições de imediato julgamento, por não haver a necessidade de produção de provas ou por ter ocorrido à revelia. Sendo assim, partindo para a prática familiarista, em havendo pedido de divórcio ou de dissolução da união estável de ambos os cônjuges ou companheiros, cumulado com outras pretensões -, caso da guarda de filhos, dos alimentos e de eventual pedido de responsabilização da outra parte -, é perfeitamente possível que o juiz da causa decrete a dissolução do casamento ou da união estável, seguindo a ação no debate de outras questões que ainda pendem de julgamento. Na verdade, tal solução já vinha sendo adotada pela jurisprudência, em especial pelo Desembargador Caetano Lagrasta Neto, ora aposentado, em julgamentos perante o Tribunal de Justiça de São Paulo, seguindo-se a tese dos capítulos de sentença, desenvolvida por Cândido Rangel Dinamarco. Entre muitos arestos, conforme acórdão da 8.ª Câmara de Direito Privado da Corte Bandeirante, proferido no agravo de instrumento 990.10.357301-3, em 12 de novembro de 2010, de sua relatoria, "com a promulgação da Emenda Constitucional n. 66/2010, e a nova redação do § 6.º do art. 226 da CF, o instituto da separação judicial não foi recepcionado, mesmo porque não há direito adquirido a instituto jurídico. A referida norma é de aplicabilidade imediata e não impõe condições ao reconhecimento do pedido de divórcio, sejam de natureza subjetiva - relegadas para eventual fase posterior à discussão sobre culpa - ou objetivas - transcurso do tempo. (...). Discussões restantes: nome, alimentos, guarda e visitas aos filhos, bem como a patrimonial, devem ser resolvidas, conforme ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco, em 'cisão da sentença em partes, ou capítulos, em vista da utilidade que o estudioso tenha em mente'. É lícito: a) fazer somente a repartição dos preceitos contidos no decisório, referentes às diversas pretensões que compõem o mérito; b) separar, sempre no âmbito do decisório sentencial, capítulos referentes aos pressupostos de admissibilidade do julgamento do mérito e capítulos que contêm esse próprio julgamento; c) isolar capítulos segundo os diversos fundamentos da decisão' (Capítulos de Sentença. 4ª ed., São Paulo: Malheiros Editores, p. 12). Observa-se que solução diversa não preservaria a força normativa da Constituição e a carga axiológica decorrente da normatização dos princípios da dignidade humana e liberdade na busca do amor e da felicidade". No âmbito da doutrina, esse mesmo caminho foi adotado, pelo menos parcialmente, em enunciado aprovado na VIII Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal em setembro de 2015, segundo o qual: "transitada em julgado a decisão concessiva do divórcio, a expedição de mandado de averbação independe do julgamento da ação originária em que persista a discussão dos aspectos decorrentes da dissolução do casamento" (enunciado n. 602). Em suma, o casal tem o seu vínculo extinto, sem prejuízo da resolução de todos os dilemas que ainda pendem de decisão perante o Poder Judiciário. No mesmo sentido, mas com tom bem mais abrangente, o enunciado n. 18 do IBDFAM, aprovado no seu X Congresso Brasileiro, em outubro do mesmo ano, conforme proposta formulada por este autor: "nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do Novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas". Em verdade, acreditamos que, em tal aspecto, o Novo Código de Processo Civil dialoga perfeitamente com a Emenda Constitucional 66/2010, que suprimiu os prazos para o divórcio e a separação de direito, alterando o art. 226, § 6.º, do Texto Maior e facilitando a dissolução do vínculo conjugal. Esse diálogo é perfeitamente notado pelo fato de o Estatuto Processual emergente afastar qualquer burocracia ou entrave maior para o fim do casamento. Efetiva-se, assim, o teor do que consta do próprio art. 8.º do mesmo Codex, in verbis: "ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência". Não restam dúvidas de que a eficiência e a economia estão muito prestigiadas com tal premissa. A título de exemplo mais específico, e com o intuito de esclarecer, em havendo pedido de divórcio cumulado com alimentos, o juiz pode deferir o divórcio por sentença, liberando definitivamente as partes daquele indesejado vínculo, e seguir no curso da lide a discussão a respeito dos alimentos. Tal opção não afasta a possibilidade de as partes ingressarem com duas ações autônomas, quais sejam uma de divórcio e outra de alimentos, o que depende de sua pretensão. De toda sorte, não resta dúvida de que o primeiro caminho melhor concretiza o que consta como regramento fundamental da própria norma processual. Feitos tais esclarecimentos, acrescente-se que, de acordo com a mesma norma em estudo, a decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida - certa quanto à existência e determinada quanto ao valor -, ou mesmo ilíquida - que não preenche tais requisitos (art. 356, § 1.º, do CPC/2015). Eventualmente, não havendo dissenso ou pendência entre as partes, a sentença que decreta o fim da união pode também trazer em seu bojo a fixação de verba alimentar. A parte poderá liquidar ou executar, desde logo, essa obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução ou garantia, ainda que haja recurso contra essa interposto (art. 356, § 2.º, do CPC/2015). Na hipótese dessa execução, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva (art. 356, § 3.º, do CPC/2015). Em complemento, a liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz (art. 356, § 4.º, do CPC/2015). Por fim, está previsto na norma emergente que a decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento (art. 356, § 5.º, do CPC/2015). No campo processual, anote-se que essa já era a posição da doutrina especializada, especialmente no tocante às Ações de Família (por todos: TARTUCE, Fernanda. Processo civil aplicado ao direito de família. São Paulo: GEN/Método, 2012, p. 253). Como palavras finais, entre perdas e ganhos, no objeto de estudo aqui abordado, o Novo Código de Processo Civil é elogiável, resolvendo definitivamente dilema que há muito tempo incomodava os teóricos e práticos do Direito de Família brasileiro. Esperamos que a jurisprudência incremente essa solução nos próximos anos.
A categoria dos alimentos intuitu familiae ou globais ainda não é muito difundida no Direito de Família Brasileiro, tendo sido abordada por este autor em parecer jurídico apresentado em caso concreto, no ano de 2014, e publicado na Revista Científica do IBDFAM n. 5. Yussef Said Cahali foi um dos primeiros juristas a analisar a categoria, demonstrando sua origem na criação jurisprudencial brasileira. Pondera o ex-magistrado e professor a respeito do instituto que "a pensão do marido à mulher e aos filhos pode ter sido fixada englobadamente, sem que isto represente óbice à homologação do acordo"1. Em complemento, de acordo com as lições de Rolf Madaleno, "alimentos intuitu familiae são aqueles arbitrados, ou acordados de forma global, para todo o grupo familiar, sem pormenorizar e separar as quotas de cada integrante da célula familiar, destinatária coletiva da pensão alimentar. O montante dos alimentos é estabelecido em prol de todos os familiares, e quando um deles deixa de ser credor dos alimentos pode até ocorrer uma pequena redução da pensão, mas não uma divisão proporcional ao número de alimentandos, sucedendo, se for o caso, um ajuste com a simples readequação do valor dos alimentos"2. Maria Berenice Dias também aborda o instituto, expondo o caráter global de sua fixação, "sem individualizar a proporção de cada beneficiário. Normalmente são estipulados em benefício da entidade familiar - ex-mulher e filhos -, sem ser indicado o percentual em favor de cada um deles"3. Desse modo, na linha da doutrina exposta, a fixação dos alimentos com intuito familiar (intuitu familiae) tem como escopo atender às finalidades de determinado grupo de pessoas que compõe a entidade familiar. Em realidade, a fixação alimentar intuitu familiae não tem qualquer amparo legal, não havendo norma jurídica que lhe dê fundamento. Em reforço, a sua atribuição pode conduzir a injustiças e a situações indesejáveis, especialmente tendo em vista o binômio ou trinômio alimentar. Foi exatamente o que ocorreu no caso levado a consulta a este autor, em sua atividade profissional. O valor alimentar foi fixado inicialmente, por sentença, em cerca de vinte salários mínimos para a ex-esposa e três filhos do alimentante. Porém, sucessivamente, houve a exoneração alimentar da esposa e de dois filhos que atingiram a maioridade, sem que houvesse a revisão do montante global. Ao final, conforme condenação de primeira instância, a filha menor do devedor estava recebendo uma verba alimentar de cerca de R$ 15.000,00 (quinze mil reais), bem acima de suas necessidades, mesmo em se mantendo um altíssimo padrão de vida, sob os pontos de vista econômico e social. Diante da ausência de revisão da sentença pelo juízo monocrático, essa acabou por ser reformada pela segunda instância, reduzindo-se o valor a próximo da metade dessa quantia. Ora, constitui premissa antiga a afirmação de que os alimentos têm caráter personalíssimo em favor do credor da pensão. Desse modo, a fixação dos alimentos deve levar em conta as características de quem os pleiteia, tendo natureza essencialmente intuitu personae. Essa premissa, aliás, é essencial para a atribuição da pensão alimentícia, tendo como parâmetro a necessidade do credor. No âmbito da jurisprudência, vários arestos reconhecem tal caráter pessoal e infungível, tanto em relação ao credor quanto no que diz respeito ao devedor (por todos: STJ, AgRg. no REsp 981.180/RS, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, 3ª Turma, julgado em 07/12/2010, DJe 15/12/2010). Além do caráter personalíssimo, não se olvide que a obrigação de alimentos é divisível, em regra, o que é retirado de vários diplomas do sistema legal da codificação material de 2002, especialmente da segunda parte do seu art. 1.698, dispositivo que tem a seguinte dicção: "se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide". A fixação dos alimentos intuitu familiae quebra com essas características técnicas consolidadas da pensão alimentícia. Em casos de sua atribuição, o grupo familiar passa a ser dotado de uma solidariedade ativa convencional, pois, como elucida Maria Berenice Dias, "como o crédito é em prol de todos, dispõe cada um de legitimidade para cobrança da integralidade de seu valor. Ainda que um ou mais filhos atinjam a maioridade, pode a genitora propor a execução para cobrança da totalidade do débito"4. O caráter personalíssimo da pensão é igualmente quebrado diante do fato de ser o montante fixado a favor de um grupo de pessoas, com características próprias analisadas em conjunto, e não isoladamente. A este autor não parece haver qualquer ilicitude na fixação dos alimentos intuitu familiae, pois a solidariedade pode ter origem na lei ou na vontade das partes, na esteira do art. 265 do Código Civil. Em outras palavras, é perfeitamente possível afastar, por convenção, o caráter personalíssimo e divisível da obrigação de alimentos. Todavia, em casos de exagero, é viável rever o valor antes fixado a título de alimentos. A propósito da possibilidade dessa diminuição a partir de uma mudança estrutural no binômio ou trinômio alimentar, mesmo que fixada a verba intuitu familiae, cabe trazer à colação decisum do Tribunal de Justiça de São Paulo. Trata-se de acórdão da sua 6ª Câmara de Direito Privado, proferido em 22 de outubro de 2009, na apelação com revisão 680.852-4/2-00, que teve como relator o Desembargador Vito Guglielmi. No caso, houve a exoneração da pensão alimentar quanto a uma filha maior do alimentante, então com vinte e seis anos de idade, que havia se graduado no curso de Direito e obtido a carteira de advogada. Conforme consta da ementa do aresto, foi reconhecida a exoneração parcial subjetiva da pensão, o que deveria ser reconhecido mesmo se os alimentos fossem fixados intuitu familiae. Merece ser citado o seguinte trecho do julgamento, que analisa o tema relativo ao binômio ou trinômio alimentar: "nesse tema dos alimentos, como venho sustentando, o dever deve ser lido, sempre, na perspectiva da dupla análise da necessidade daquele que pleiteia o auxílio e da possibilidade daquele que o presta, fatores amalgamados sobre a denominação, já consagrada pela jurisprudência, de 'binômio necessidade-possibilidade', o qual deve nortear, em qualquer caso, a determinação, revisão ou exoneração da prestação fixada. Sob essa ótica, de um lado, tem-se que, no caso, as necessidades da ré devem ser rigorosamente comprovadas. No tocante ao aspecto prático da exoneração, sobreleva que os presentes alimentos, embora fixados em valor único para os três coalimentados, guardam nítida relação de proporção e divisibilidade, não se podendo falar que a fixação haja se dado intuitu familiae a impedir a pleiteada exoneração parcial subjetiva. Assim, pelos termos da própria sentença originária que os fixou (fls. 81) e bem das decisões posteriores de revisão (fls. 85/105). Aliás, ainda que houvessem sido os alimentos fixados intuitu familiae, tal atributo não impediria a procedência do pedido de exoneração do dever alimentar em relação a um dos coalimentados e tampouco a redução proporcional da prestação global fixada. Como se vem entendendo, a divisibilidade da prestação alimentar é característica presente até mesmo quando não há menção expressa à destinação". Sucessivamente, o Desembargador Relator Vito Guglielmi cita aresto do Tribunal de Justiça de Minas Gerais no mesmo sentido, que concluiu: "a obrigação alimentar, ainda que arbitrada intuitu familiae, não perde seu caráter de divisibilidade. Não havendo previsão em contrário, na obrigação subjetivamente divisível, deve prevalecer a presunção legal de igualdade das quotas (art. 257 do Código Civil de 2002). A exoneração dos alimentos, ante a ausência de convenção em contrário, deve ocorrer somente quanto às quotas dos ex-credores, em igual proporção, remanescendo o crédito proporcional da credora remanescente (TJMG, Apelação cível n. 1.0016.07.076039-8/001, Alfenas, 2ª Câmara Cível, Rel. Caetano Levi Lopes, julg. 24/03/2009)". Cabe ainda destacar, do acórdão paulista, o trecho em que se analisa a necessidade de diminuição do quantum global, a partir do binômio alimentar, tendo em vista a exoneração parcial de uma das filhas do alimentante: "destarte, a exoneração do dever alimentar em relação à demanda, com a consequente redução proporcional do valor global da prestação, revela-se mesmo adequada ante a comprovação da ausência de necessidade da alimentada de um lado e, ainda, da prova indiciária, de outra banda, da redução da capacidade financeira do autor, consubstanciada na existência de diversas restrições de crédito em seu nome". Conforme se verifica, os dois acórdãos citados seguem a linha de necessidade de revisão dos alimentos com função familiar, na linha das premissas-regras do caráter personalíssimo e da divisibilidade da obrigação de alimentos. Em resumo, é imperioso rever o valor global intuitu familiae quando há alteração substancial do binômio ou trinômio alimentar, especialmente tendo como pano de fundo fundamental as necessidades do alimentante. Eis aqui uma correta e justa aplicação do princípio da razoabilidade em sede de alimentos, a demonstrar a evolução do binômio para o trinômio alimentar, como temos destacado em nossas obras, aulas e palestras sobre o assunto. *** A todos os amigos migalheiros desejo um Feliz Natal e um 2016 de muito empenho, para que possamos superar as dificuldades. Ficam os meus agradecimentos ao Miguel e a todos os amigos da equipe do Migalhas, por esta grande oportunidade. ___________ 1 CAHALI, Yussef Said. Dos alimentos. 6. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 221. 2 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2011. p. 946 3 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 550. 4 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 8. ed. São Paulo: RT, 2011. p. 550-551
Com vigência desde janeiro de 2003, o Código Civil de 2002 completará em breve 13 anos de aplicação no país. Entre inovações, avanços e transformações, o livro mais criticado da nossa legislação geral privada é, sem dúvidas, o dedicado ao Direito das Sucessões. Além da intrincada concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes - claramente influenciada pelo Código Civil Italiano de 1942 e pelo Código Civil Português de 1966 -, muitos problemas surgem do tratamento sucessório diferenciado do cônjuge em relação ao companheiro. De início, vale lembrar que o cônjuge foi elevado à condição de herdeiro necessário pelo art. 1.845 do Código Civil de 2002, ao lado dos descendentes e dos ascendentes, o que não constava do art. 1.721 da codificação de 1916, seu correspondente. O mesmo não ocorreu com o companheiro ou convivente, apesar da tentativa doutrinária de alguns juristas de enquadrá-lo como tal, caso de Maria Berenice Dias e Paulo Luiz Netto Lôbo. Ademais, o cônjuge consta como sucessor legítimo no polêmico art. 1.829 do Código Civil em vigor, que tem a seguinte redação: "A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; II - aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III - ao cônjuge sobrevivente; IV - aos colaterais". Esse artigo consagra quatro classes de sucessores, como se constata. Na primeira classe, estão os descendentes - até o infinito - e o cônjuge. Na segunda classe, os ascendentes - também até o infinito - e o cônjuge. Na terceira classe, está o cônjuge, isoladamente. Por fim, a quarta classe é composta pelos colaterais, até o quarto grau. Vale lembrar que os herdeiros que estão até a terceira classe são herdeiros necessários, tendo a seu favor a proteção da legítima, correspondente a cinquenta por cento do patrimônio do falecido. Nota-se, em complemento, que o cônjuge passa a concorrer com os descendentes, o que depende do regime de bens a ser adotado no casamento com o falecido; e com os ascendentes, o que independe do regime. Em suma, da terceira classe na ordem de vocação hereditária - como constava do art. 1.603, inciso III, do CC/1916 -, o cônjuge saltou para a primeira classe, ao lado dos descendentes, e para a segunda classe, ao lado dos ascendentes. Entretanto, isso ocorreu sem que o cônjuge deixasse também de fazer parte da terceira classe. A única concorrência inexistente a respeito do cônjuge concerne aos colaterais, até porque o cônjuge está na posição sucessória anterior. Por isso, pode-se dizer que, sem dúvidas, o cônjuge está em posição sucessória privilegiada na vigente codificação privada. Como corretamente afirma Luiz Paulo Vieira de Carvalho, o cônjuge é a estrela do direito sucessório brasileiro na atualidade1. Em relação ao companheiro, não consta expressamente da ordem de sucessão legítima, merecendo um tratamento em separado, como um sucessor anômalo, no art. 1.790 do Código Civil, outro dos preceitos que figura entre os mais polêmicos da codificação material e que tem a seguinte redação: "A companheira ou o companheiro participará da sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável, nas condições seguintes: I - se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente a à que por lei for atribuída ao filho; II - se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles; III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança; IV - não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança". Em um duplo sentido, constata-se que o convivente é um herdeiro sem classe, pois não se situa na divisão dos sucessores legítimos do art. 1.829 do Código Civil. Diante desse tratamento diferenciado, dois dos maiores sucessionistas brasileiros têm sustentado a inconstitucionalidade desse art. 1.790 da codificação material. Para Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua tese de titularidade, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, "o art. 1.790 do CC/2002 restringiu a possibilidade de incidência do direito sucessório do companheiro à parcela patrimonial do monte partível que houvesse sido adquirido na constância da união estável, não se estendendo, portanto, àquela outra quota patrimonial relativa aos bens particulares do falecido, amealhados antes da evolução da vida em comum. A nova lei limitou e restringiu, assim, a incidência do direito a suceder do companheiro apenas àquela parcela de bens que houvessem sido adquiridos na constância da união estável a título oneroso. Que discriminação flagrante perpetuou o legislador, diante da idêntica hipótese, se a relação entre o falecido e o sobrevivente fosse uma relação de casamento, e não de união estável!"2. Igualmente, Zeno Veloso comenta que a restrição aos bens adquiridos onerosamente durante a união estável "não tem nenhuma razão, quebra todo o sistema, podendo gerar consequências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro, se este não adquiriu (onerosamente!) outros bens durante o tempo de convivência. Ficará essa mulher - se for pobre - literalmente desamparada, a não ser que o falecido, vencendo as superstições que rodeiam o assunto, tivesse feito um testamento que a beneficiasse"3. Em outra obra de sua autoria, o jurista demonstra claramente seguir a tese da inconstitucionalidade do comando, aduzindo que: "ao longo desta exposição, e diversas vezes, mencionei que a sucessão dos companheiros foi regulada de maneira lastimável, incidindo na eiva da inconstitucionalidade, violando princípios fundamentais, especialmente o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da não discriminação"4. No âmbito dos Tribunais Estaduais, há uma grande variedade de entendimentos, sendo imperioso alertar para a necessidade de que a questão seja decidida pelo Órgão Especial ou pelo Tribunal Pleno de cada Corte. Trata-se de decorrência natural da cláusula de reserva de plenário, retirada do art. 97 da Constituição Federal de 1988, in verbis: "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público". O texto legal é completado pela súmula vinculante 10, do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual a vedação também atinge a declaração de inconstitucionalidade implícita: "viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte". Em outras palavras, há vedação constitucional para que Câmaras ou Turmas isoladas dos Tribunais brasileiros reconheçam a inconstitucionalidade de leis, ainda que de forma não expressa. Partindo para alguns exemplos concretos, vejamos cinco tribunais locais que julgaram a questão da maneira como determina a Constituição Federal, mas em sentido oposto. Inicialmente, a Corte Especial do Tribunal de Justiça do Paraná adotou a premissa da inconstitucionalidade do art. 1.790, mas apenas do seu inciso III, por colocar o convivente em posição de enorme desprestígio, em concorrência com os colaterais, o que é seguido por este autor (TJ/PR, Incidente de Declaração de Inconstitucionalidade 536.589-9/01, da 18ª cara cível do Foro Central da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba. Suscitante: 12ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Relator: Des. Sérgio Arenhart, j. 04.12.2009). Fez o mesmo o Pleno do Tribunal de Justiça de Sergipe, ao julgar o Incidente de inconstitucionalidade 8/2010, em decisão de relatoria da Desa. Marilza Maynard Salgado de Carvalho, de 30 de março de 2011. O trecho final do acórdão demonstra que a conclusão atingiu todo o conteúdo do art. 1.790 da codificação privada: "Logo, merece ser reconhecida a inconstitucionalidade do disposto no art. 1.790 do CC, não só por afrontar o princípio da igualdade e o art. 226, § 3º, da Constituição Federal, mas também, ainda que de forma reflexa, o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, o que ocorreria por parte dos herdeiros colaterais, em detrimento da companheira sobrevivente que com o falecido conviveu durante muitos anos. Diante de tais considerações, em que pese jamais ter sido declarada a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002 em sede de controle de constitucionalidade concentrado, nada impede que, neste momento, seja declarado referido vício no bojo da presente ação, por meio de controle difuso de constitucionalidade. Ante os argumentos expendidos e com base no farto entendimento jurisprudencial, voto pela declaração de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, posto que em desarmonia com o art. 226, § 3º, da Constituição Federal e com os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana". Na mesma esteira o Pleno do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com a seguinte ementa de conclusão final: "Arguição de inconstitucionalidade. Art. 1.790, inciso III, do Código Civil. Sucessão do companheiro. Concorrência com parentes sucessíveis. Violação à isonomia estabelecida pela Constituição Federal entre cônjuges e companheiros (art. 226, § 3º). Enunciado da IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal. Incabível o retrocesso dos direitos reconhecidos à união estável. Inconstitucionalidade reconhecida. Procedência do incidente" (TJ/RJ, Arguição de Inconstitucionalidade 00326554020118190000, Rel. Des. Bernardo Moreira Garcez Neto, Secretaria do Tribunal Pleno e Órgão Especial, j. 11.06.2012). Como se nota, tais Cortes Estaduais seguiram os argumentos de Giselda Hironaka e Zeno Veloso, aqui antes expostos. Por outra via, o Órgão Especial do Tribunal Gaúcho, por maioria e com grande divergência, acabou por concluir de forma contrária, ou seja, pela constitucionalidade do art. 1.790, diante da inexistência de igualdade plena entre a união estável e casamento. Conforme consta de sua ementa, "a Constituição da República não equiparou a união estável ao casamento. Atento à distinção constitucional, o Código Civil dispensou tratamento diverso ao casamento e à união estável. Segundo o Código Civil, o companheiro não é herdeiro necessário. Aliás, nem todo cônjuge sobrevivente é herdeiro. O direito sucessório do companheiro está disciplinado no art. 1.790 do CC, cujo inciso III não é inconstitucional. Trata-se de regra criada pelo legislador ordinário, no exercício do poder constitucional de disciplina das relações jurídicas patrimoniais decorrentes de união estável. Eventual antinomia com o art. 1.725 do Código Civil não leva a sua inconstitucionalidade, devendo ser solvida à luz dos critérios de interpretação do conjunto das normas que regulam a união estável" (TJ/RS, Incidente 70029390374, Porto Alegre, Órgão Especial, Rel. Originário Des. Leo Lima (vencido), Rel. para o Acórdão Des. Maria Isabel de Azevedo Souza, j. 09/11/2009). Ao final do ano de 2011, o Órgão Especial do Tribunal Paulista acabou por concluir, igualmente, pela inexistência de qualquer inconstitucionalidade no comando em destaque, como já havia feito o Tribunal Gaúcho, adotando as mesmas premissas (TJSP, Processo 0434423-72.2010.8.26.0000 (990.10.434423-9), Órgão Especial, Rel. Corrêa Viana, j. 14.09.2011). Mais uma vez houve intensa discussão técnica, com votos vencidos, prevalecendo a visão que coloca o cônjuge em posição de superioridade perante o companheiro. De acordo com o trecho final do voto do relator, Des. Cauduro Padin, "assim, a questão da igualdade de tratamento não é tão simples, o que significa dizer que eventual equiparação deve ser total, e não apenas em alguns aspectos da vida civil. Portanto, não se vislumbra a alardeada violação ao Texto Constitucional e aos seus princípios". Em sede de Tribunais Superiores, a questão ainda pende de julgamento. De início, decisão do ano de 2011, do Superior Tribunal de Justiça, suscitou a inconstitucionalidade dos incisos III e IV do art. 1.790, remetendo a questão para julgamento pelo Órgão Especial da Corte (STJ, AI no REsp 1.135.354/PB, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 24.05.2011, DJe 02.06.2011). Entretanto, em outubro de 2012, o Órgão Especial da Corte Superior concluiu pela não apreciação dessa inconstitucionalidade suscitada pela Quarta Turma, eis que o recurso próprio para tanto deve ser o extraordinário, a ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal (publicado no Informativo n. 505 do STJ). Em suma, a questão da inconstitucionalidade não foi resolvida nesse primeiro momento em sede de Superior Tribunal de Justiça, aguardando-se eventual julgamento pelo STF. Com a decisão, o recurso especial em questão voltou à Quarta Turma para ser julgado apenas nos aspectos infraconstitucionais. Todavia, sucessivamente no tempo, pode ser encontrado novo acórdão do Superior Tribunal de Justiça, que continua a remeter a questão para a sua Corte Especial, a demonstrar que aquele julgamento anterior não é definitivo na Corte (STJ, AI no REsp 1.291.636/DF, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 11.06.2013, DJe 21/11/2013). Diante dessas remessas sucessivas, o tema voltou à pauta de julgamento da Corte Especial do Tribunal da Cidadania em 2014, havendo divergência entre os Ministros sobre quem deve julgar o tema, se o STJ ou o STF. O julgamento encontra-se suspenso, no presente momento. No plano do Supremo Tribunal Federal, além do julgamento de algumas reclamações pontuais - especialmente de desrespeito à cláusula de reserva de plenário -, em abril de 2015 foi levantada uma repercussão geral a respeito desse tratamento sucessório diferenciado pelo ministro Luís Roberto Barroso, no Recurso Extraordinário n. 878.694. Assim, em breve, a mais alta Corte Brasileira deve - tentar, pelo menos -, colocar um fim a respeito da discussão sobre o citado tratamento sucessório diferenciado. Toda essa variação de julgamentos demonstra como o tema é inseguro no país, no sentido de uma segurança jurídica material, e não formal. Não nos parece que as decisões superiores têm o condão de resolver totalmente o problema, pois ainda restarão debates a respeito da atribuição patrimonial de bens aos herdeiros em cada caso concreto. Nessa triste realidade jurídica, pensamos que o melhor caminho é a imediata alteração legislativa, revogando-se o art. 1.790 do Código Civil e colocando-se o companheiro ao lado do cônjuge, nos arts. 1.829 e 1.845 do Código Civil. No último Congresso Brasileiro de Direito de Família do IBDFAM, realizado em Belo Horizonte, em outubro de 2015, conclamamos os vários sucessionistas presentes, em painel de debate sobre a matéria, para que comecem esse trabalho, seja por alteração do Código Civil, seja pela elaboração de um novo Estatuto das Sucessões5. Esperamos que essa jornada de reforma seja implementada nos próximos anos. __________ 1 VIEIRA DE CARVALHO, Luiz Paulo. Direito das sucessões. São Paulo: Atlas, 2014, p. 315. 2 HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Morrer e suceder. Passado e presente da transmissão sucessória concorrente. São Paulo: RT, 2011, p. 420. 3 VELOSO, Zeno. Código Civil comentado. Coordenação de Ricardo Fiúza e Regina Beatriz Tavares da Silva. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 2.010. 4 VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 185. 5 Estavam presentes, no painel, entre outros: Giselda Hironaka, Zeno Veloso, José Fernando Simão, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Ana Luiza Maia Nevares, Rolf Madaleno, Marcelo Truzzi Otero e João Ricardo Brandão Aguirre. O X Congresso de Direito de Família do IBDFAM também contou com a presença de outros destacados autores e professores de Direito das Sucessões, que também podem trazer luzes ao trabalho de reforma, caso de Gustavo Tepedino, Maria Berenice Dias, Maria Celina Bodin de Moraes, Silvio de Salvo Venosa, Rodrigo da Cunha Pereira, Rodrigo Toscano de Brito, Jones Figueirêdo Alves, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald.
O Brasil vive, no presente momento, um grande conflito ideológico e, como não poderia ser diferente, tal colisão atinge não só os aplicadores do Direito como também os projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, especialmente em temas condizentes aos costumes e à família. Como exemplo desse embate, pode ser citada a tramitação de dois projetos de lei a respeito do conceito de família no Congresso Nacional. O primeiro deles, na Câmara dos Deputados, intitulado Estatuto da Família (PL 6.583/2013), no singular, pretende restringir o conceito de família aos casamentos e às uniões estáveis entre homens e mulheres e seus filhos. Nos termos do seu art. 1º, "esta lei institui o Estatuto da Família e dispõe sobre os direitos da família, e as diretrizes das políticas públicas voltadas para valorização e apoiamento à entidade familiar". Em complemento, enuncia a proposta de art. 2º da norma que "para os fins desta lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes". A outra projeção é o Estatuto das Famílias (PL 470/2013), no plural, em curso no Senado Federal, originário de proposta formulada pelos juristas que compõem o IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Família e que, em vários de seus dispositivos, traz um conceito extensivo de família. Cite-se, entre tantas regras, a proposta de conceito de união estável constante do seu art. 61, in verbis: "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, configurada na convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". Como se nota, a proposta menciona a união de duas pessoas, não obrigatoriamente homem e mulher. Acompanhando os debates que ocorrem na Câmara dos Deputados, e diante do momento que vive o país, o projeto de lei 6.583/2013 tem grandes chances de ser aprovado. Se isso ocorrer, não persistindo eventual veto da presidência da República, dois são os caminhos interpretativos para a citada projeção. O primeiro deles é o reconhecimento de sua inconstitucionalidade. Ora, é sabido que o Supremo Tribunal Federal concluiu que a união homoafetiva é entidade familiar protegida pela Constituição Federal, devendo ser aplicadas, por analogia, todas as regras previstas para a união estável heteroafetiva (julgado na ADPF 132/RJ, publicado no Informativo 625 da Corte, de maio de 2011). Em complemento, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu, logo após, que é possível o casamento entre pessoas do mesmo sexo, consequência natural da decisão do Supremo, pois se todas as normas são aplicáveis por analogia, o mesmo deve ser dito quanto à conversão da união estável ao casamento, retirada do art. 1.727 do Código Civil (REsp. 1.183.378/RS). Conforme o voto do ministro Luis Felipe Salomão nesse acórdão, proferido em outubro de 2011, "é bem de ver que, em 1988, não houve uma recepção constitucional do conceito histórico de casamento, sempre considerado como via única para a constituição de família e, por vezes, um ambiente de subversão dos ora consagrados princípios da igualdade e da dignidade da pessoa humana. Agora, a concepção constitucional do casamento - diferentemente do que ocorria com os diplomas superados - deve ser necessariamente plural, porque plurais também são as famílias e, ademais, não é ele, o casamento, o destinatário final da proteção do Estado, mas apenas o intermediário de um propósito maior, que é a proteção da pessoa humana em sua inalienável dignidade. A fundamentação do casamento hoje não pode simplesmente emergir de seu traço histórico, mas deve ser extraída de sua função constitucional instrumentalizadora da dignidade da pessoa humana. Por isso, não se pode examinar o casamento de hoje como exatamente o mesmo de dois séculos passados, cuja união entre Estado e Igreja engendrou um casamento civil sacramental, de núcleo essencial fincado na procriação, na indissolubilidade e na heterossexualidade". Todas essas decisões fizeram o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editar, em 2013, a resolução 175, que veda às autoridades competentes, caso dos responsáveis pelos cartórios de registro civil de todo o país, a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Em suma, o casamento homoafetivo transformou-se em realidade prática do Direito brasileiro. No âmbito da doutrina do Direito de Família, para demonstrar qual a corrente majoritária hoje prevalecente, pontue-se que, na VII Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal em setembro de 2015, aprovou-se enunciado segundo o qual é existente e válido o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Cabe esclarecer que desse evento participaram juristas com as mais variadas visões sobre o Direito de Família e, mesmo assim, a proposta aprovada conseguiu ampla maioria, o que demonstra uma sedimentação doutrinária a respeito do tema no País. O citado Estatuto da Família, no singular, desconsidera toda essa evolução. Sim, evolução, pois a tendência dos países ocidentais é a inclusão dos direitos civis de casais homossexuais, sem que isso represente qualquer afronta ou ofensa aos direitos das pessoas que pretendem ter uniões heteroafetivas. Nessa perspectiva, o projeto já soa totalmente inconstitucional. Mas não é só. O art. 2º do projeto de lei 6.583/2013 é inconstitucional por desconsiderar o conceito de família monoparental previsto no art. 226, § 4º, do Texto Maior, constituída por um dos ascendentes e seus descendentes. Como antes se transcreveu, a projeção limita a família aos pais que vivem com seus filhos, deixando de fora as famílias monoparentais existentes entre avós e netos. Sem falar em outras entidades que também não foram contempladas, caso das famílias mosaico - de várias origens, oriundas de famílias reconstituídas - e das famílias anaparentais (na expressão criada por Sérgio Resende de Barros) - famílias sem pais, formadas por irmãos ou primos que vivem juntos, com intuito comunitário familiar. Sabe-se, conforme os escritos de vários constitucionalistas nacionais, que a Constituição Federal Brasileira de 1988 é inclusiva, e não exclusiva, afirmação que merece especial atenção quanto tópico que regulamenta as entidades familiares em rol meramente exemplificativo (art. 226). Assim, não pode uma lei infraconstitucional limitar o texto superior na concessão de direitos civis sob pena de flagrante inconstitucionalidade. Vale dizer, em complemento, que a Lei Maria da Penha já traz um conceito ampliativo, em seu art. 5º, inciso II, ao estabelecer que a família deve ser compreendida "como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa". Essa é a ideia de família que deve prevalecer na realidade brasileira, na opinião deste articulista, não só para os fins de incidência dessa lei, mas também de outras normas. De toda sorte, há um segundo caminho para a interpretação do Estatuto da Família, qual seja o de adaptá-lo ao Texto Maior e a toda essa evolução. Por essa ideia, é possível firmar a premissa segundo a qual o projeto de lei apenas exemplifica algumas formas de família, sem excluir outras, caso de todas as entidades aqui citadas. Se for assim, nosso Congresso Nacional perde precioso tempo de trabalho legislativo, pois as famílias ali previstas já estão amplamente tuteladas, especialmente por serem maioria no Brasil. Pensamos que o trabalho a ser desenvolvido é de proteção de outras constituições famílias, como propõe o Estatuto das Famílias, no plural; e não o Estatuto da Família, no singular. A inclusão deve prevalecer sobre a exclusão, pois esse é o sentido da nossa Lei Maior. Como palavras finais, vale lembrar que a Constituição Brasileira veda a discriminação no seu art. 5º, além de valorizar a dignidade da pessoa humana no seu dispositivo inaugural. A projeção no singular deixa esses valores de lado.
Uma grande infelicidade, um total retrocesso. Com essas fortes palavras pode ser resumida a manutenção da separação judicial e extrajudicial no Novo Código de Processo Civil Brasileiro. Vários dispositivos da norma instrumental emergente continuam a tratar das categorias, o que não deveria ocorrer, em hipótese alguma. Não se olvide que, quando da elaboração do parecer final no Senado Federal, pelo relator senador Vital do Rêgo, foram apresentadas propostas de alteração por meio da emenda 61 - do senador Pedro Taques -, da emenda 129 - do senador João Durval - e das emendas 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142 e 143 - do senador Antonio Carlos Valadares -, visando a retirada do texto dos tratamentos relativos ao malfadado instituto da separação judicial do texto do novo Código. Todavia, as emendas foram afastadas pelo senador Vital do Rego, que assim argumentou: "As emendas em pauta insurgem-se contra a referência à separação (em todas as suas modalidades) como forma de dissolução da sociedade conjugal ao longo do texto do SCD. Argumenta que, com a Emenda à Constituição 66, de 2010, esse instituto teria sido abolido do ordenamento jurídico. Não vingam, porém, as emendas. É pacífico que, após a Emenda à Constituição 66, de 2010, não há mais qualquer requisito prévio ao divórcio. A separação, portanto, que era uma etapa obrigatória de precedência ao divórcio, desvestiu-se dessa condição. Todavia, não é remansoso o entendimento acerca da não subsistência da separação no âmbito da doutrina civilista. (...). Afinal de contas, a Constituição Federal apenas afastou a exigência prévia de separação para o divórcio, mas não repeliu expressamente a previsão infraconstitucional da separação e do restabelecimento da sociedade conjugal. Há quem sustente que a separação continua em vigor como uma faculdade aos cônjuges que, querendo 'dar um tempo', preferem formalizar essa separação, sem romper o vínculo matrimonial. Eventual reatamento dos laços afetivos desses cônjuges separados não haverá de passar por novo casamento, com todas as suas formalidades, mas se aperfeiçoará pelo restabelecimento da sociedade conjugal, ato bem menos formal, que pode ocorrer por via judicial ou extrajudicial. Sublinhe-se que nem mesmo os dispositivos do Código Civil que tratam de separação foram revogados. Ora, será uma intervenção indevida, uma invasão científica, utilizar uma norma processual para fazer prevalecer uma das várias correntes doutrinárias que incandescem na seara do Direito Civil. Dessa forma, enquanto o Código Civil não for revogado expressamente no tocante à previsão da separação e do restabelecimento da sociedade conjugal, deve o Código de Processo Civil - norma que instrumentaliza a concretização dos direitos materiais - contemplar expressamente as vias processuais desses institutos cíveis. No futuro, em outra ocasião, se assim se entender mais adequado, poder-se-á, por via legislativa própria, modificar dispositivos do Código Civil e do Código de Processo Civil para proscrever a separação como um instituto de Direito de Família". Na votação final dos destaques no Senado Federal, realizada no dia 17/12/2014, havia uma insurgência pontuada pela Senadora Lídice da Mata a respeito dessa manutenção. Porém, a ilustre senadora acabou por ser convencida pela conservação da separação judicial no texto, retirando, ao final, o seu destaque. Assim, o novo Código de Processo Civil nasce com um instituto morto em vários de seus dispositivos. Entre os vários diplomas que podem ser mencionados, em termos gerais de incidência das regras atinentes às ações de Direito de Família, o art. 693 do CPC/2015 enuncia que "As normas deste capítulo aplicam-se aos processos contenciosos de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação" (destacamos). Na sequência, vêm as regras específicas "Do Divórcio e da Separação Consensuais, da Extinção Consensual de União Estável e da Alteração do Regime de Bens do Matrimônio". Quanto ao divórcio e à separação judicial consensuais, como primeiro diploma especial, o art. 731 do novo CPC estabelece que as suas homologações, observados os requisitos legais, poderão ser requeridas em petição assinada por ambos os cônjuges, da qual constarão: a) as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns; b) as disposições concernentes à pensão alimentícia entre os cônjuges; c) o acordo atinente à guarda dos filhos incapazes e ao regime de visitas; e d) o valor da contribuição para criar e educar os filhos. Nos termos do seu parágrafo único, se os cônjuges não acordarem sobre a partilha dos bens, far-se-á esta depois de homologado o divórcio, conforme as normas relativas à partilha de bens, constantes dos arts. 647 a 658 do mesmo Estatuto Processual emergente. Eventualmente, o divórcio, a separação e a extinção de união estável, feitos consensualmente - não havendo nascituro, filhos incapazes e observados os requisitos legais -, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições de que trata o art. 731. Assim, confirmando a evolução inaugurada pela Lei 11.441/2007 - que inseriu o art. 1.124-A no antigo CPC -, pelo art. 733 do novo Código de Processo Civil, continua viável juridicamente o divórcio extrajudicial, por escritura pública. Lamenta-se, mais uma vez, que a separação extrajudicial esteja expressa no comando. Como é notório, é forte a corrente doutrinária e jurisprudencial segundo a qual a Emenda Constitucional 66/2010, conhecida como Emenda do Divórcio, extingue o instituto da separação de direito, a englobar tanto a separação judicial quanto a extrajudicial. Isso porque o art. 226, § 6º, da Constituição Federal foi alterado, passando a enunciar, de forma direta e objetiva, que "o casamento pode ser dissolvido pelo divórcio". No âmbito doutrinário, a tese que propugna o fim da categoria é defendida, entre outros, por Luiz Edson Fachin, Giselda Hironaka, Paulo Lôbo, Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias, Zeno Veloso, Álvaro Villaça Azevedo, Rolf Madaleno, José Fernando Simão, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald. Entendemos que essa é verdadeiramente a posição majoritária sobre a temática no Brasil. Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, de voto prolatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão pode ser extraído trecho com a seguinte manifestação acidental: "Assim, para a existência jurídica da união estável, extrai-se o requisito da exclusividade de relacionamento sólido da exegese do § 1º do art. 1.723 do Código Civil de 2002, fine, dispositivo esse que deve ser relido em conformidade com a recente EC 66, de 2010, a qual, em boa hora, aboliu a figura da separação judicial" (STJ, REsp. 912.926/RS, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 22.02.2011, DJe 07.06.2011). Em julgado mais recente, segue a mesma linha a Ministra Isabel Galotti, em decisão monocrática: "Após a EC 66/2010, não mais existe no ordenamento jurídico brasileiro o instituto da separação judicial. Não foi delegado ao legislador infraconstitucional poderes para estabelecer qualquer condição que restrinja direito à ruptura do vínculo conjugal" (STJ, Documento 40398425, Despacho/Decisão, DJE 22.10.2014). Seguindo essa visão, deve-se entender que estão revogados tacitamente os dispositivos infraconstitucionais que tratam dos institutos da separação judicial e extrajudicial, caso dos arts. 1.571, 1.572, 1.573, 1.574, 1.575, 1.576, 1.578 e 1.580 do Código Civil; além dos arts. 1.120 a 1.124-A do Código de Processo Civil de 1973. Tais comandos estão revogados de forma tácita por uma incompatibilidade constitucional superveniente, como sustentam os doutrinadores anteriormente citados. A mesma dedução vale para todas as regras do Novo Código de Processo Civil que mencionam a separação de direito. Dando sustentáculo final à premissa aqui defendida, devem ser citadas as precisas e corretas palavras de Lênio Luiz Streck, um dos maiores juristas brasileiros da atualidade, que, antes mesmo da aprovação do texto final do Novo CPC no Senado Federal, já sustentava a inconstitucionalidade do que chamou de repristinação da separação judicial1. Introduzindo o tema, aduz o doutrinador, sobre a Emenda Constitucional n. 66/2010, que "não pode haver dúvida que, com a alteração do texto constitucional, desapareceu a separação judicial no sistema normativo brasileiro - e antes que me acusem de descuidado, não ignoro doutrina e jurisprudência que seguem rota oposta ao que defendo no texto, mas com elas discordo veementemente. Assim, perde o sentido distinguir-se término e dissolução de casamento. Isso é simples. Agora, sociedade conjugal e vínculo conjugal são dissolvidos mutuamente com o divórcio, afastada a necessidade de prévia separação judicial ou de fato do casal. Nada mais adequado a um Estado laico (e secularizado), que imputa inviolável a liberdade de consciência e de crença (CF/1988, art. 5º, VI). Há, aliás, muitos civilistas renomados que defendem essa posição, entre eles Paulo Lôbo, Luís Edson Fachin e Rodrigo da Cunha. Pois bem. Toda essa introdução me servirá de base para reforçar meu posicionamento e elaborar crítica para um problema que verifiquei recentemente. E já adianto a questão central: fazendo uma leitura do Projeto do novo CPC, deparei-me com uma espécie de repristinação da separação judicial. Um dispositivo tipo-Lázaro. Um curioso retorno ao mundo dos vivos"2. E arremata, em palavras finais: "O legislador do novo CPC tem responsabilidade política (no sentido de que falo em Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica). Para tanto, deve contribuir e aceitar, também nesse particular, a evolução dos tempos eliminando do texto todas as expressões que dão a entender a permanência entre nós desse instituto cuja serventia já se foi e não mais voltará. Não fosse por nada - e peço desculpas pela ironia da palavra 'nada' -, devemos deixar a separação de fora do novo CPC em nome da Constituição. E isso por dois motivos: a um, por ela mesma, porque sacramenta a secularização do direito, impedindo o Estado de 'moralizar' as relações conjugais; a dois, pelo fato de o legislador constituinte derivado já ter resolvido esse assunto. Para o tema voltar ao 'mundo jurídico', só por alteração da Constituição. E, ainda assim, seria de duvidosa constitucionalidade. Mas aí eu argumentaria de outro modo. Portanto, sem chance de o novo CPC repristinar a separação judicial (nem por escritura pública, como consta no Projeto do CPC). É inconstitucional. Sob pena de, como disse Marshall em 1803, a Constituição não ser mais rígida, transformando-se em flexível. E isso seria o fim do constitucionalismo. Esta é, pois, a resposta adequada à Constituição. Espero que o legislador que aprovará o novo CPC se dê conta disso e evite um périplo de decisões judiciais no âmbito do controle difuso ou nos poupe de uma ação direta de inconstitucionalidade. O Supremo Tribunal Federal já tem trabalho suficiente'3. Infelizmente, o legislador não se atentou a isso. O trabalho não será só do Supremo Tribunal Federal, mas de toda a doutrina e jurisprudência nacionais. Já começamos a desempenhá-lo, condenando essa triste opção constante do Novo Código de Processo Civil Brasileiro, que será por nós duramente combatida nos próximos anos. ___________ 1 STRECK, Lênio Luiz. Por que é inconstitucional "repristinar" a separação judicial no Brasil. Vale lembrar que a repristinação é a restauração de vigência de uma norma revogada, pela revogação, por uma terceira norma, de sua norma revogadora. 2 STRECK, Lênio Luiz. Por que é inconstitucional "repristinar" a separação judicial no Brasil.3 STRECK, Lênio Luiz. Por que é inconstitucional "repristinar" a separação judicial no Brasil.
Ainda não em vigor, o Estatuto da Pessoa com Deficiência - lei 13.146/2015 - tem gerado grandes debates entre os civilistas, especialmente pelo fato de ter almejado a plena inclusão civil de pessoas que eram tidas como absoluta e relativamente incapazes no sistema anterior. Percebemos, pela leitura de textos publicados na internet, que duas correntes se formaram a respeito da norma. A primeira - à qual estão filiados José Fernando Simão e Vitor Kümpel - condena as modificações, pois a dignidade de tais pessoas deveria ser resguardada por meio de sua proteção como vulneráveis (dignidade-vulnerabilidade). A segunda vertente - liderada por Joyceane Bezerra, Paulo Lôbo, Nelson Rosenvald, Jones Figueirêdo Alves, Rodrigo da Cunha Pereira e Pablo Stolze - aplaude a inovação, pela tutela da dignidade-liberdade das pessoas com deficiência, evidenciada pelos objetivos de sua inclusão. Entre uma ou outra visão, a priori, estamos alinhados aos segundos juristas citados. A propósito, cabe lembrar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência regulamenta a Convenção de Nova York, tratado de direitos humanos do qual o Brasil é signatário, e que  gera efeitos como emenda constitucional (art. 5º, § 3º, da CF/1988 e Decreto 6.949/2009).  Nos termos do seu art. 1º, o propósito da Convenção "é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente".  Todavia, ressalte-se que somente o tempo e a prática - a partir de janeiro de 2016 e não de dezembro de 2015, como constou de nosso texto anterior publicado neste canal - poderão demonstrar se o melhor caminho é mesmo a dignidade-liberdade, ao invés da anterior dignidade-vulnerabilidade.  Não se pode negar que talvez seja tarde demais para se perceber o eventual engano... Pois bem, em matéria de interdição, consideráveis foram as mudanças engendradas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, estando presentes vários atropelamentos legislativos pelo Novo CPC, em vigor a partir de março de 2016. A primeira alteração diz respeito, a saber, se ainda será cabível o processo de interdição ou se viável juridicamente apenas uma demanda com nomeação de um curador. Por certo é que a Lei 13.046/2015 altera o art. 1.768 do Código Civil, deixando de mencionar que "a interdição será promovida"; e passando a enunciar que "o processo que define os termos da curatela deve ser promovido". O grande problema é que esse dispositivo material é revogado expressamente pelo art. 1.072, inciso II, do CPC/2015. Sendo assim, pelo menos aparentemente, ficará em vigor por pouco tempo, entre janeiro e março de 2016, quando o Estatuto Processual passar a ter vigência. Pensamos que será necessária uma nova norma, que faça com que o novo dispositivo volte a vigorar, afastando-se esse primeiro atropelamento legislativo. De qualquer modo, só a edição de uma terceira norma apontando qual das duas deve prevalecer não basta, pois o Novo CPC é inteiramente estruturado no processo de interdição, como se nota do tratamento constante entre os seus arts. 747 a 758. Sendo assim, parece-nos que será imperiosa uma reforma considerável do CPC/2015, deixando-se de lado a antiga possibilidade da interdição. A propósito da superação desse tradicional modelo, pontua Paulo Lôbo que "não há que se falar mais de 'interdição', que, em nosso direito, sempre teve por finalidade vedar o exercício, pela pessoa com deficiência mental ou intelectual, de todos os atos da vida civil, impondo-se a mediação de seu curador. Cuidar-se-á, apenas, de curatela específica, para determinados atos"1. Constata-se que entre os motivos de revogação de dispositivos do Código Civil que tratam da curatela pelo Novo CPC está o fim de concentrar os legitimados para a ação de interdição no Estatuto Processual. Ademais, a expressão deve, constante do então art. 1.768 do CC/2002, era criticada por ser peremptória, tendo sido substituída pelo termo pode, pelo Novo CPC. Conforme o art. 747 do CPC/2015, que supostamente unificou o tratamento do tema, "a interdição pode ser promovida:  I - pelo cônjuge ou companheiro;  II - pelos parentes ou tutores; III - pelo representante da entidade em que se encontra abrigado o interditando; IV - pelo Ministério Público. Parágrafo único. A legitimidade deverá ser comprovada por documentação que acompanhe a petição inicial". Repise-se que essa é a norma que irá prevalecer a partir de março de 2016, perdendo vigência, aparentemente, o preceito incluído pelo Estatuto das Pessoas com Deficiência, que estabelece também a legitimidade ao próprio sujeito (autointerdição). O mesmo deve ser dito em relação ao art. 1.769 do Código Civil, que passou a prever, com a norma de julho de 2015, que o Ministério Público somente promoverá o processo que define os termos da curatela: a) nos casos de deficiência mental ou intelectual; b) se não existir ou não promover a interdição alguma das pessoas designadas nos incisos I e II do artigo 1.768; e c) se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas no inciso antecedente. Mais uma vez, o Novo Código de Processo Civil revoga esse preceito (art. 1.072, inciso II). Aperfeiçoando a redação do art. 1.178 do CPC/1973, o art. 748 do Novo Codex passa a estabelecer que o Ministério Público só promoverá interdição em caso de doença mental grave: a) se as pessoas designadas nos incisos I, II e III do art. 747 não existirem ou não promoverem a interdição; e b) se, existindo, forem incapazes as pessoas mencionadas nos incisos I e II do art. 747. O que se percebe é que a legitimidade do MP é somente subsidiária e extraordinária, funcionando como substituto processual, seja por uma ou por outra norma. De toda sorte, o texto alterado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência é mais amplo, ao mencionar a sua legitimidade em caso de deficiência mental ou intelectual, o que não consta do Novo CPC. O art. 1.771 do Código Civil também foi alterado pela lei 13.146/2015. O diploma previa anteriormente que "antes de pronunciar-se acerca da interdição, o juiz, assistido por especialistas, examinará pessoalmente o arguido de incapacidade". Agora, passou a expressar que "antes de se pronunciar acerca dos termos da curatela, o juiz, que deverá ser assistido por equipe multidisciplinar, entrevistará pessoalmente o interditando". Em suma, substitui-se a menção aos especialistas por equipe multidisciplinar, o que é mais consentâneo com as atividades de orientação multicultural. Eis outro dispositivo que também perderá vigência, por ter sido revogado expressamente pelo Código de Processo Civil de 2015 (art. 1.072, inciso II). Nos termos do art. 751 da norma instrumental de 2015, que igualmente concentrou o tratamento da situação e que prevalecerá ao final, o interditando será citado para, em dia designado, comparecer perante o juiz, que o entrevistará minuciosamente acerca de sua vida, negócios, bens, vontades, preferências e laços familiares e afetivos e sobre o que mais lhe parecer necessário para convencimento quanto à sua capacidade para praticar atos da vida civil, devendo ser reduzidas a termo as perguntas e respostas. Não podendo o interditando deslocar-se, o juiz o ouvirá no local onde estiver (§ 1º). A entrevista poderá ser acompanhada por especialista (§ 2º). Durante a entrevista, é assegurado o emprego de recursos tecnológicos capazes de permitir ou de auxiliar o interditando a expressar suas vontades e preferências e a responder às perguntas formuladas (§ 3º). A critério do juiz, poderá ser requisitada a oitiva de parentes e de pessoas próximas (§ 4º do art. 751 do CPC/2015). Aqui, o Estatuto Processual é mais minucioso quanto aos procedimentos, apesar de não mencionar a equipe multidisciplinar, mas a atuação de especialista. Mesmo destino, de revogação, terá o novo art. 1.772 do Código Civil, in verbis: "O juiz determinará, segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos às restrições constantes do art. 1.782, e indicará curador. Parágrafo único. Para a escolha do curador, o juiz levará em conta a vontade e as preferências do interditando, a ausência de conflito de interesses e de influência indevida, a proporcionalidade e a adequação às circunstâncias da pessoa". A principal novidade constante pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência diz respeito à inclusão do parágrafo único, que vem em boa hora, dando preferência à vontade da pessoa. Espera-se, mais uma vez, que uma nova norma surja, para que tal comando não perca eficácia, pois o texto do parágrafo único do diploma é salutar. Com é notório, sempre se considerou que nos casos de interdição de deficientes mentais, ébrios habituais, toxicômanos e pródigos, por ser a interdição relativa, deveria o juiz determinar os limites da curatela, ou seja, da curatela parcial. Essa era a regra retirada do art. 1.772 do CC/2002, em sua redação original; também revogada pelo art. 1.072, inciso II, do CPC/2015. Todavia, novamente, o objetivo da revogação foi apenas de concentrar o tema no diploma instrumental, sendo esse o mesmo sentido pelo mesmo, aparentemente, do art. 753, § 2º, do CPC/2015 ("O laudo pericial indicará especificadamente, se for o caso, os atos para os quais haverá necessidade de curatela"). Todas essas considerações e comparações revelam uma grande confusão legislativa, um verdadeiro caos pelo atropelamento de leis sucessivas e sem o devido cuidado dos seus elaboradores. Existem muitos outros problemas a ser sanados, cabendo expor neste breve trabalho apenas alguns deles. Como se nota, o trabalho dos civilistas e processualistas - sem falar  dos operadores e julgadores que lidam com os casos práticos no seu cotidiano jurídico  - será grande e intenso nos próximos anos, com o fim de sanar todas essas controvérsias e curar os feridos pelos atropelamentos da lei. Tudo está muito confuso, deixando-nos perdidos.  __________  1 LÔBO, Paulo. Com os avanços legais, pessoas com deficiência mental não são mais incapazes.
Foi sancionada, no dia 6 de julho de 2015, a lei 13.146/2015, que institui o Estatuto da Pessoa com Deficiência. A norma foi publicada no dia 7 de julho e entra em vigor 180 dias após sua publicação, ao final do mês de dezembro de 2015. Entre vários comandos que representam notável avanço para a proteção da dignidade da pessoa com deficiência, a nova legislação altera e revoga alguns artigos do Código Civil (arts. 114 a 116), trazendo grandes mudanças estruturais e funcionais na antiga teoria das incapacidades, o que repercute diretamente para institutos do Direito de Família, como o casamento, a interdição e a curatela. Interessante observar que a norma também alterou alguns artigos do Código Civil que foram revogados expressamente pelo Novo CPC (art. 1.072). Nessa realidade, salvo uma nova iniciativa legislativa, as alterações terão aplicação por curto intervalo de tempo, nos anos de 2015 e 2016, entre o período da sua entrada em vigor e o início de vigência do Código de Processo Civil (a partir de março do próximo ano). Isso parece não ter sido observado pelas autoridades competentes, quando da sua elaboração e promulgação, havendo um verdadeiro atropelamento legislativo. Partindo para a análise do texto legal, foram revogados todos os incisos do art. 3º do Código Civil, que tinha a seguinte redação: "São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil: I - os menores de dezesseis anos; II - os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos; III - os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade". Também foi alterado o caput do comando, passando a estabelecer que "são absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil os menores de 16 anos". Em suma, não existe mais, no sistema privado brasileiro, pessoa absolutamente incapaz que seja maior de idade. Como consequência, não há que se falar mais em ação de interdição absoluta no nosso sistema civil, pois os menores não são interditados. Todas as pessoas com deficiência, das quais tratava o comando anterior, passam a ser, em regra, plenamente capazes para o Direito Civil, o que visa a sua plena inclusão social, em prol de sua dignidade. Merece destaque, para demonstrar tal afirmação, o art. 6º da lei 13.146/2015, segundo o qual a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para: a) casar-se e constituir união estável; b) exercer direitos sexuais e reprodutivos; c) exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar; d) conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória; e) exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e f) exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Em suma, no plano familiar há uma expressa inclusão plena das pessoas com deficiência. Eventualmente, e em casos excepcionais, tais pessoas podem ser tidas como relativamente incapazes em algum enquadramento do novo art. 4º do Código Civil. Cite-se, a título de exemplo, a situação de um deficiente que seja viciado em tóxicos, podendo ser tido como incapaz como qualquer outro sujeito. Esse último dispositivo também foi modificado de forma considerável pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. O seu inciso II não faz mais referência às pessoas com discernimento reduzido, que não são mais consideradas relativamente incapazes, como antes estava regulamentado. Apenas foram mantidas no diploma as menções aos ébrios habituais (entendidos como os alcoólatras) e aos viciados em tóxicos, que continuam dependendo de um processo de interdição relativa, com sentença judicial, para que sua incapacidade seja reconhecida. Também foi alterado o inciso III do art. 4º do CC/2002, sem mencionar mais os excepcionais sem desenvolvimento completo. O inciso anterior tinha incidência para o portador de síndrome de Down, não considerado mais um incapaz. A nova redação dessa norma passa a enunciar as pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir vontade, o que antes estava previsto no inciso III do art. 3º como situação típica de incapacidade absoluta. Agora a hipótese é de incapacidade relativa. Verificadas as alterações, parece-nos que o sistema de incapacidades deixou de ter um modelo rígido, passando a ser mais maleável, pensado a partir das circunstâncias do caso concreto e em prol da inclusão das pessoas com deficiência, tutelando a sua dignidade e a sua interação social. Isso já tinha ocorrido na comparação das redações do Código Civil de 2002 e do seu antecessor. Como é notório, a codificação material de 1916 mencionava os surdos-mudos que não pudessem se expressar como absolutamente incapazes (art. 5º, III, do CC/1916). A norma então em vigor, antes das recentes alterações ora comentadas, tratava das pessoas que, por causa transitória ou definitiva, não pudessem exprimir sua vontade, agora tidas como relativamente incapazes, reafirme-se. Todavia, pode ser feita uma crítica inicial em relação à mudança do sistema. Ela foi pensada para a inclusão das pessoas com deficiência, o que é um justo motivo, sem dúvidas. Porém, acabou por desconsiderar muitas outras situações concretas, como a dos psicopatas, que não serão mais enquadrados como absolutamente incapazes no sistema civil. Será necessário um grande esforço doutrinário e jurisprudencial para conseguir situá-los no inciso III do art. 4º do Código Civil, tratando-os como relativamente incapazes. Não sendo isso possível, os psicopatas serão considerados plenamente capazes para o Direito Civil. Em matéria de casamento também podem ser notadas alterações importantes engendradas pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência. De início, o art. 1.518 do Código Civil teve sua redação modificada, passando a prever que, até a celebração do casamento, podem os pais ou tutores revogar a autorização para o matrimônio. Não há mais menção aos curadores, pois não se decreta mais a nulidade do casamento das pessoas que estavam mencionadas no antigo art. 1.548, inciso I, ora revogado. Enunciava o último diploma que seria nulo o casamento do enfermo mental, sem o necessário discernimento para a prática dos atos da vida civil, o que equivalia ao antigo art. 3º, inciso II, do Código Civil, que também foi revogado, como visto. Desse modo, perdeu sustentáculo legal a possibilidade de se decretar a nulidade do casamento em situação tal. Em resumo, o casamento do enfermo mental, sem discernimento, passa a ser válido. Filia-se totalmente à alteração, pois o sistema anterior presumia que o casamento seria ruim para o então incapaz, vedando-o com a mais dura das invalidades. Em verdade, muito ao contrário, o casamento é via de regra salutar à pessoa que apresente alguma deficiência, visando a sua plena inclusão social. Seguindo no estudo das modificações do sistema de incapacidades, o art. 1.550 do Código Civil, que trata da nulidade relativa do casamento, ganhou um novo parágrafo, preceituando que a pessoa com deficiência mental ou intelectual em idade núbil poderá contrair matrimônio, expressando sua vontade diretamente ou por meio de seu responsável ou curador (§ 2º). Trata-se de um complemento ao inciso IV da norma, que prevê a anulação do casamento do incapaz de consentir e de manifestar de forma inequívoca a sua vontade. Advirta-se, contudo, que este último diploma somente gerará a anulação do casamento dos ébrios habituais, dos viciados em tóxicos e das pessoas que, por causa transitória ou definitiva, não puderem exprimir sua vontade, na linha das novas redações dos incisos II e III do art. 4º da codificação material. Como decorrência natural da possibilidade de a pessoa com deficiência mental ou intelectual se casar, foram alterados dois incisos do art. 1.557, dispositivo que consagra as hipóteses de anulação do casamento por erro essencial quanto à pessoa. O seu inciso III passou a ter uma ressalva, eis que é anulável o casamento por erro no caso de ignorância, anterior ao casamento, de defeito físico irremediável que não caracterize deficiência ou de moléstia grave e transmissível, por contágio ou por herança, capaz de pôr em risco a saúde do outro cônjuge ou de sua descendência (destacamos a inovação). Em continuidade, foi revogado o antigo inciso IV do art. 1.557 do CC/2002 que possibilitava a anulação do casamento em caso de desconhecimento de doença mental grave, o que era tido como ato distante da solidariedade ("a ignorância, anterior ao casamento, de doença mental grave que, por sua natureza, torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado"). Essas foram as modificações percebidas na teoria das incapacidades, que foi revolucionada, e em sede de casamento. No nosso próximo artigo, a ser publicado neste canal, demonstraremos as alterações geradas pela lei 13.146/2015 quanto à interdição e à curatela e os atropelamentos legislativos frente ao Novo CPC.
A viabilidade jurídica da ação de prestação de contas de alimentos é tema que sempre foi muito debatido nos âmbitos doutrinário e jurisprudencial. Como bem demonstra Rolf Madaleno, "tratando-se de alimentos, reiteradamente a jurisprudência tem decidido não ser exigível a prestação de contas do guardião de filho credor de pensão alimentícia, em razão da irrepetibilidade dos alimentos, não havendo como o alimentante pretender a eventual restituição de alimentos desviados ou mal empregados".1De fato, podem ser encontrados vários julgados entendendo por sua impossibilidade, por ilegitimidade ativa do alimentante e pela falta de interesse processual, entre outros argumentos (ver: TJ/SP, Apelação 0003673-49.2010.8.26.0099, Acórdão 8.044.325, Bragança Paulista, 9ª câmara de Direito Privado, Rel. Des. Alexandre Bucci, julgado em 25/11/14, DJESP 20/01/15; TJ/DF, Recurso 2013.01.1.033648-0, Acórdão 766.021, 4ª turma Cível, Rel. Des. Arnoldo Camanho de Assis, DJDFTE 12/03/14, p. 280; TJ/MG, Apelação cível 1.0518.13.016606-0/001, Rel. Des. Washington Ferreira, julgado em 19/08/14, DJEMG 22/08/14; TJ/MG, Apelação cível 1.0643.11.000295-0/001, Relª Desª Áurea Brasil, julgado em 10/07/14, DJEMG 22/07/14; TJ/PR, Apelação cível 1204895-0, Palmas, 12ª câmara Cível, Rel. Juiz Convocado Luciano Carrasco Falavinha Souza, DJPR 12/09/14, pág. 330). Na mesma linha, conforme se retira de decisium do STJ, "segundo a jurisprudência desta Corte, o alimentante não detém interesse de agir quanto a pedido de prestação de contas formulado em face da mãe do alimentando, filho de ambos, sendo irrelevante, a esse fim, que a ação tenha sido proposta com base no art. 1.589 do Código Civil, uma vez que esse dispositivo autoriza a possibilidade de o genitor que não detém a guarda do filho fiscalizar a sua manutenção e educação, sem, contudo, permitir a sua ingerência na forma como os alimentos prestados são administrados pela genitora" (STJ, AgRg. no REsp. 1.378.928/PR, Rel. Ministro Sidnei Beneti, 3ª turma, julgado em 13/08/2013, DJe 06/09/13). Além dessa argumentação, a ação de prestação de contas das verbas em estudo vinha sendo rejeitada com base na premissa da irrepetibilidade dos alimentos.Esse era o entendimento majoritário, que foi substancialmente alterado pela lei 13.058, de dezembro de 2014; dispositivo que trouxe modificações substanciais em matéria de guarda. Uma dessas alterações diz respeito à introdução do § 5º no art. 1.583 do CC, com a seguinte dicção: "a guarda unilateral obriga o pai ou a mãe que não a detenha a supervisionar os interesses dos filhos, e, para possibilitar tal supervisão, qualquer dos genitores sempre será parte legítima para solicitar informações e/ou prestação de contas, objetivas ou subjetivas, em assuntos ou situações que direta ou indiretamente afetem a saúde física e psicológica e a educação de seus filhos". A menção à supervisão e à prestação de contas, sem dúvidas, pode estar relacionada aos alimentos.Esclareça-se, por oportuno, que a fixação da guarda compartilhada (ou alternada) não gera, por si só, a extinção da obrigação alimentar em relação aos filhos, devendo a fixação dos alimentos sempre ser analisada de acordo com o binômio ou trinômio alimentar. Em complemento, quanto à prestação das contas alimentares, passa ela a ser plenamente possível, afastando-se os argumentos processuais anteriores em contrário, especialmente a ilegitimidade ativa e a ausência de interesse processual. Igualmente, não deve mais prosperar a premissa da irrepetibilidade como corolário da inviabilidade dessa prestação de contas.De toda sorte, acreditamos que a exigência da prestação deve ser analisada mais objetiva do que subjetivamente, deixando-se de lado pequenas diferenças de valores e excessos de detalhes na exigência da prestação, o que poderia torná-la inviável ou até aumentar o conflito entre as partes. Essa também é a percepção de João Ricardo Brandão Aguirre, em palestra recentemente ministrada em evento do IBDFAM.2Interessante observar que o texto legal faz referência tanto à prestação de contas objetiva quanto à subjetiva, devendo a primeira prevalecer. Para esta proposta que se faz, entram em cena o princípio da boa-fé objetiva processual e o dever de cooperação imposto às partes da demanda, regramentos que passam a ter um tratamento mais aprofundado no novo CPC, em especial pelos seus arts. 5º e 6º.3 Consigne-se que a boa-fé objetiva já é o norte interpretativo para a conversão da mora em inadimplemento absoluto, a preencher o critério da utilidade da obrigação ao credor, nos termos do art. 395, parágrafo único, do CC.4 Conforme o Enunciado 162, aprovado na III Jornada de Direito Civil (2004), "a inutilidade da prestação que autoriza a recusa da prestação por parte do credor deverá ser aferida objetivamente, consoante o princípio da boa-fé e a manutenção do sinalagma, e não de acordo com o mero interesse subjetivo do credor". Pensamos que esses parâmetros também devem valer para a ação de prestação de contas.A esse propósito, para a prestação de contas dos alimentos, igualmente servem como guia as precisas palavras de Rolf Madaleno, para quem "sabido quão fértil se presta o Direito de Família para a prática do abuso do direito, vedado pela legislação civil (CC, art. 187), inclusive no instituto dos alimentos, quando os filhos são prejudicados pelos desvios ou pela má gestão do seu crédito alimentar, e se existe a intenção de prejudicar, pelo exercício abusivo do genitor administrador da pensão dos filhos, atenta este ascendente contra os interesses superiores das crianças e dos adolescentes, ao encontrar no desvio dos recursos da prole um meio propício às suas vantagens pessoais, e a prestação de contas exigida pelo alimentante não destituído do poder familiar é a grande reserva a favor dos interesses superiores do alimentante. Mas também pode existir abuso por parte do devedor de alimentos ao encontrar na prestação de contas uma maneira de incomodar o ex-cônjuge com reiteradas admoestações processuais, por suspeitas inconsistentes de malversação dos alimentos, devendo ser bem dosada a rendição das contas, cuja solução também pode passar por uma demanda alternativa de inspeção judicial, realizada por assistentes sociais em visita à residência do alimentando, e sua escola, escutando outros familiares, amigos e vizinhos, até onde for possível e discreto, para apurar e avaliar a realidade e dimensão da pretensão processual de rendição de contas, correndo os custos desta diligência pela parte devedora".5Como nota derradeira, é preciso fazer uma última atualização do tema frente ao Novo CPC. Isso porque os arts. 914 a 919 do CPC/73 tratavam do rito especial da ação de prestação de contas, tanto em relação àquele que teria o direito de exigi-las quanto para o obrigado a prestá-las. No Estatuto Processual emergente, o rito especial foi mantido somente no que concerne a quem tem o direito de exigi-las, nos termos dos seus arts. 550 a 553 (ação de exigir contas). Parece-nos que, para aqueles que são obrigados à sua prestação, a ação deve seguir o procedimento comum, e não mais o especial.____________________1 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense. 2010, p. 897.2 Conforme exposição realizada no Seminário "Os Novos Paradigmas do Direito de Família", promovido em João Pessoa, pelo Ministério Público do Estado da Paraíba e pelo IBDFAM, entre os dias 28 e 30 de maio de 2015, na sede da Procuradoria-Geral local.3 Novo CPC. "Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé". "Art. 6º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva".4 CC/2002. "Art. 395. Responde o devedor pelos prejuízos a que sua mora der causa, mais juros, atualização dos valores monetários segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado. Parágrafo único. Se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos".5 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. 4. ed. Rio de Janeiro: GEN/Forense, 2010, p. 899-900.
Como antes exposto neste canal, o novo CPC traz a opção de equalizar a união estável ao casamento em vários de seus dispositivos, o que fará com que o tema seja analisado de maneira diversa no âmbito do direito material. Também conforme o texto que antecede ao presente, começamos a analisar o art. 73 do Novo Estatuto Processual - equivalente ao art. 10 do CPC/73 -, especialmente a menção à separação absoluta, prevista no seu caput, que não encerrou polêmica anterior sobre o assunto, infelizmente. Para este novo artigo, frise-se que o impacto principal a ser estudado diz respeito à aplicação da regra do art. 73 do Novo CPC para os casos de união estável, como é expresso no seu § 3º, desde que a relação de convivência seja comprovada nos autos. No âmbito do Direito Civil, sempre existiu grande polêmica, doutrinária e jurisprudencial, quanto à incidência, ou não, do art. 1.647 do CC para as hipóteses de união estável, exigindo-se uma outorga convivencial para os atos ali referidos. De qualquer maneira, a outorga do companheiro passa a ser exigida nos casos do inciso II do art. 1.647, em diálogo com o Novo CPC. Como é notório, esse comando material - no mesmo sentido do art. 73 da Norma Instrumental - exige a outorga do cônjuge para pleitear, como autor ou réu, acerca de bens ou direitos relativos a imóveis. A dúvida que se coloca é a seguinte: nas situações dos demais incisos do art. 1.647, que dizem respeito a atos puramente materiais, como a venda ou outras alienações de imóvel, como ficam a fiança e a doação de bens comuns? Haverá necessidade de outorga convivencial em tais hipóteses?  Entre os civilistas, para uma primeira corrente, o art. 1.647 do CC aplica-se à união estável, pelo fato de que o regime de bens, que é regra tanto do casamento quanto da união estável, é o da comunhão parcial de bens (arts. 1.640 e 1.725 do CC/02). Nesse sentido, Regina Beatriz Tavares da Silva afirma que "devem ser consideradas as regras constituídas por disposições especiais (arts. 1.658 a 1.666) e as disposições gerais (arts. 1.639 a 1.657), em que se destaca a proibição de alienação de bem imóvel sem o consentimento do consorte, a não ser que seja escolhido o regime da separação absoluta (art. 1.647), sob pena de anulação do ato".  Esse entendimento é compartilhado por Paulo Lôbo, na sua obra Famílias, com primeira edição de 2008 (Saraiva). O STJ assim já decidiu anteriormente, conforme se depreende da seguinte ementa: "Processo civil. Execução fiscal. Penhora de bem imóvel em condomínio. Exigência de consentimento dos demais. 1. A lei civil exige, para alienação ou constituição de gravame de direito real sobre bem comum, o consentimento dos demais condôminos. 2. A necessidade é de tal modo imperiosa, que tal consentimento é, hoje, exigido da companheira ou convivente de união estável (art. 226, § 3º, da CF), nos termos da Lei 9.278/1996. 3. Recurso especial improvido" (STJ, REsp 755.830/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 07.11.2006, DJ 01.12.2006, p. 291). Entretanto, pontue-se que sempre seguimos uma segunda corrente, que responde negativamente, ou seja, a outorga só pode ser exigida dos cônjuges, e não dos companheiros, pelo fato de ser o art. 1.647 do CC uma norma restritiva de direitos que não comporta interpretação extensiva ou analogia. Por essa linha, a outorga somente é imposta por expressa previsão legal, o que não se verifica no tocante à união estável, a não ser agora, pela regra do art. 73 do CPC/15, para o que consta do inciso II do art. 1.647 do CC/02. Reafirme-se que essa é a melhor posição a ser adotada, mesmo existindo contrato de convivência entre as partes, inclusive celebrado por escritura pública. Concluindo desse modo a jurisprudência estadual: "Apelação cível. Ação declaratória de nulidade de ato jurídico. União estável não declarada. Venda de bem imóvel a terceiro de boa-fé. Inexistência de hipóteses de invalidade do negócio jurídico. Inexistência de nulidade. 1 - Ainda que seja possível vislumbrar pelas provas carreadas a existência de união estável entre apelante e primeiro apelado, a venda de bem imóvel a terceiro de boa-fé não é nula, tendo em vista que a Lei não exige a outorga uxória da companheira. 2 - Não provadas nenhuma das hipóteses de invalidade do negócio jurídico, previstas nos arts. 166 e ss. do CC 2002, não há nulidades a serem declaradas" (TJMG, Apelação Cível 1.0284.07.006501-6/0011, Guarani, Nona Câmara Cível, Rel. Des. Pedro Bernardes, j. 17.02.2009, DJEMG 16.03.2009). "Ação declaratória de nulidade. Escritura pública de compra e venda. Imóvel. Sentença de improcedência. Negócio jurídico celebrado pelo companheiro sem a anuência da companheira. Possibilidade. Outorga uxória. Desnecessidade. Exigência legal que não se aplica à hipótese de união estável. (...)" (TJSP, Apelação com Revisão 396.100.4/6, Acórdão 2567068, Itararé, Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Ariovaldo Santini Teodoro, j. 15.04.2008, DJESP 16.05.2008). Esse posicionamento segue a linha de necessidade de diferenciação da união estável em relação ao casamento. Adotando a mesma premissa, e a não subsunção do art. 1.647 do CC à união estável, vejamos recente aresto do STJ, referente a contrato de fiança, assim publicado no seu Informativo n. 535, do ano de 2014: "Direito Civil. Inaplicabilidade da Súmula 332 do STJ à união estável. Ainda que a união estável esteja formalizada por meio de escritura pública, é válida a fiança prestada por um dos conviventes sem a autorização do outro. Isso porque o entendimento de que a 'fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia' (Súmula 332 do STJ), conquanto seja aplicável ao casamento, não tem aplicabilidade em relação à união estável. De fato, o casamento representa, por um lado, uma entidade familiar protegida pela CF e, por outro lado, um ato jurídico formal e solene do qual decorre uma relação jurídica com efeitos tipificados pelo ordenamento jurídico. A união estável, por sua vez, embora também represente uma entidade familiar amparada pela CF - uma vez que não há, sob o atual regime constitucional, famílias estigmatizadas como de 'segunda classe' -, difere-se do casamento no tocante à concepção deste como um ato jurídico formal e solene. Aliás, nunca se afirmou a completa e inexorável coincidência entre os institutos da união estável e do casamento, mas apenas a inexistência de predileção constitucional ou de superioridade familiar do casamento em relação a outra espécie de entidade familiar. Sendo assim, apenas o casamento (e não a união estável) representa ato jurídico cartorário e solene que gera presunção de publicidade do estado civil dos contratantes, atributo que parece ser a forma de assegurar a terceiros interessados ciência quanto a regime de bens, estatuto pessoal, patrimônio sucessório etc. Nesse contexto, como a outorga uxória para a prestação de fiança demanda absoluta certeza por parte dos interessados quanto à disciplina dos bens vigente, e como essa segurança só é obtida por meio de ato solene e público (como no caso do casamento), deve-se concluir que o entendimento presente na Súmula 332 do STJ - segundo a qual, a 'fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia' -, conquanto seja aplicável ao casamento, não tem aplicabilidade em relação à união estável. Além disso, essa conclusão não é afastada diante da celebração de escritura pública entre os consortes, haja vista que a escritura pública serve apenas como prova relativa de uma união fática, que não se sabe ao certo quando começa nem quando termina, não sendo ela própria o ato constitutivo da união estável. Ademais, por não alterar o estado civil dos conviventes, para que dela o contratante tivesse conhecimento, ele teria que percorrer todos os cartórios de notas do Brasil, o que seria inviável e inexigível" (STJ, REsp 1.299.866/DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 25.02.2014). Ao final de 2014 surgiu uma outra forma de julgar na Superior Instância, que parece indicar uma terceira via, respondendo depende para a necessidade da outorga convivencial nos casos descritos no art. 1.647 do CC. Conforme acórdão publicado no Informativo n. 554 do Tribunal de Cidadania, de fevereiro de 2015, a invalidade da venda de imóvel comum, fundada na ausência de outorga do companheiro, depende da publicidade conferida à união estável. E essa publicidade se dá mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência de união estável no Cartório de Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou da demonstração de má-fé do adquirente.  Conforme se retira da publicação do aresto, "a interpretação dessas normas, ou seja, do art. 5º da lei 9.278/96 e dos já referidos arts. 1.725 e 1.647 do CC, fazendo-as alcançar a união estável, não fosse pela subsunção mesma, esteia-se, ainda, no fato de que a mesma ratio - que indisfarçavelmente imbuiu o legislador a estabelecer a outorga uxória e marital em relação ao casamento - mostra-se presente em relação à união estável; ou seja, a proteção da família (com a qual, aliás, compromete-se o Estado, seja legal, seja constitucionalmente). Todavia, levando-se em consideração os interesses de terceiros de boa-fé, bem como a segurança jurídica necessária para o fomento do comércio jurídico, os efeitos da inobservância da autorização conjugal em sede de união estável dependerão, para a sua produção (ou seja, para a eventual anulação da alienação do imóvel que integra o patrimônio comum), da existência de uma prévia e ampla notoriedade dessa união estável. No casamento, ante a sua peculiar conformação registral, até mesmo porque dele decorre a automática alteração de estado de pessoa e, assim, dos documentos de identificação dos indivíduos, é ínsita essa ampla e irrestrita publicidade. Projetando-se tal publicidade à união estável, a anulação da alienação do imóvel dependerá da averbação do contrato de convivência ou do ato decisório que declara a união no Registro Imobiliário em que inscritos os imóveis adquiridos na constância da união" (STJ, REsp. 1.424.275/MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, julgado em 04.12.2014, DJe 16.12.2014). A este autor parece que, no plano jurisprudencial, a segunda corrente exposta parece ser a tendência da jurisprudência superior. Contudo, não se negue que o Novo CPC tende a aprofundar o debate a respeito dessa problemática nos próximos anos, por mencionar a necessidade da outorga conjugal para a hipótese que está prevista no inciso II do art. 1.647 do CC.Então, por que não aplicar a mesma premissa para as demais situações desse comando material? Confesso que continuo a entender, até o presente momento, que a incidência do Novo CPC diz respeito apenas ao inciso II do preceito civil. Todavia, estou refletindo sobre essa nova extensão, e o meu posicionamento até pode ser alterado no futuro._____________________1 SILVA, Regina Beatriz Tavares da. Novo Código Civil comentado. In: FIUZA, Ricardo. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 1.427.
O Novo CPC teve a feliz opção de equalizar expressamente a união estável ao casamento em vários de seus preceitos, o que trará consequências para o modo como a comparação dessas entidades familiares é feita no âmbito do direito material, especialmente pelo fato de o CC brasileiro ter tratamento distinto entre o casamento e a união estável.Antes da exposição dos dispositivos legais, não se olvide que, quando da elaboração do Estatuto Processual anterior, a união estável não era reconhecida expressamente como entidade familiar, o que somente ocorreu, concretamente e no plano legal, com a CF de 88, por força do seu art. 226, § 3º. De qualquer forma, esclareça-se que a maioria das regras logo expostas já recebiam a mesma interpretação pela doutrina e pela jurisprudência. De início, o art. 144 do CPC/15, em seus incisos III e IV, ampliou os impedimentos do juiz para os casos em que, no feito, for parte ou estiver postulando, como defensor público, advogado ou membro do MP, seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive. Como é notório, o art. 134, incisos IV e V, do CPC/73 somente fazia alusão ao cônjuge do juiz, e não ao seu companheiro. Louva-se, sem dúvidas, a nova norma que passou a estender o impedimento para as situações em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive (art. 144, inciso VIII, do CPC/15). O último preceito tem conteúdo ético indiscutível, na linha da boa-fé processual adotada pela nova legislação instrumental. Igualmente no que diz respeito à suspeição do julgador, é seu motivo o fato de ser qualquer uma das partes credora ou devedora de seu cônjuge ou companheiro ou de parentes destes, em linha reta até o terceiro grau, inclusive (art. 145, inciso III, do Novo CPC). Mais uma vez, constata-se que o art. 135, inciso II, do anterior diploma processual não mencionava o companheiro, mas apenas o cônjuge. Quanto à citação, esta não será feita, salvo para evitar perecimento de direito ao cônjuge, ao companheiro ou a qualquer parente do morto, consanguíneo ou afim, em linha reta ou na linha colateral em segundo grau, no dia do falecimento e nos sete dias seguintes, visando à proteção do luto da família, verdadeiro direito da personalidade. Isso consta do art. 244, inciso II, do CPC/15, sendo certo que a menção ao convivente não estava no art. 217, inciso II, do CPC/73.No que tange às provas, o companheiro não é obrigado a depor sobre fatos que gerem a desonra de seu consorte (art. 388, inciso III, do CPC/2015); quando é certo que não se mencionava o convivente no CPC anterior ou no CC de 2002. Na mesma linha e ainda sobre a prova, nas ações que versarem sobre bens imóveis ou direitos reais sobre imóveis alheios, a confissão de cônjuge ou companheiro não valerá sem a do outro, salvo se o regime de casamento for o da separação absoluta de bens (art. 391, parágrafo único, do CPC/15). No art. 350, parágrafo único, da norma processual anterior, não havia regra relativa à união estável, mais uma vez. Quanto às testemunhas, ainda nessa seara probatória, são impedidos para tanto "o cônjuge, o companheiro, bem como o ascendente e o descendente em qualquer grau, ou o colateral, até o terceiro grau, de alguma das partes, por consanguinidade ou afinidade, salvo se o exigir o interesse público ou, tratando-se de causa relativa ao estado da pessoa, não se puder obter de outro modo a prova que o juiz repute necessária ao julgamento do mérito" (art. 447, § 2º, inciso I, do CPC/15, com destaque). A lei anterior, novamente, apenas expressava o cônjuge (art. 405, § 2º, inciso I, do CPC/73). Em matéria de inventário, passou-se a reconhecer, na nova norma, a legitimidade do companheiro para a sua abertura e para ser nomeado como inventariante (arts. 616 e 617 do Novo CPC); o que não estava previsto no sistema anterior, apesar do reconhecimento dado por doutrina e jurisprudência. O companheiro também é legitimado expressamente a opor embargos de terceiro para a tutela da sua meação pelo art. 674 do Novo Codex; quando é certo que o art. 1.046 do CPC/73 não o expressava. Seguiu-se, assim, o entendimento que era consolidado pela jurisprudência, especialmente pela superior, cabendo colacionar, por todos: "é parte legítima para embargar a execução companheira que, garantida com partilha de bens já decretada, deles ainda não dispõe por falta de homologação da partilha. Legitimidade ativa da possuidora mediata, garantida com a partilha, para fazer uso dos interditos, inclusive embargos de terceiro" (STJ, REsp 426.239/RS, Segunda Turma, Rel. Min. Eliana Calmon, j. 04.05.2004, DJ 28.06.2004, p. 230). Sem prejuízo de outros novéis comandos, o que parece gerar maiores repercussões para o direito material é o art. 73 do CPC/15, a seguir confrontado com o art. 10 do Código de Processo anterior, para os devidos aprofundamentos: Novo Código de Processo Civil Código de Processo Civil Antigo Art. 73. O cônjuge necessitará do consentimento do outro para propor ação que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob o regime de separação absoluta de bens. § 1º Ambos os cônjuges serão necessariamente citados para a ação: I - que verse sobre direito real imobiliário, salvo quando casados sob o regime de separação absoluta de bens; II - resultante de fato que diga respeito a ambos os cônjuges ou de ato praticado por eles; III - fundada em dívida contraída por um dos cônjuges a bem da família; IV - que tenha por objeto o reconhecimento, constituição ou extinção de ônus sobre imóvel de um ou de ambos os cônjuges. § 2º Nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é indispensável nas hipóteses de composse ou de ato por ambos praticado. § 3º Aplica-se o disposto neste artigo à união estável comprovada nos autos. Art. 10. O cônjuge somente necessitará do consentimento do outro para propor ações que versem sobre direitos reais imobiliários (redação dada pela lei 8.952, de 13/12/94). § 1º Ambos os cônjuges serão necessariamente citados para as ações (parágrafo único renumerado pela lei 8.952, de 13/12/94): I - que versem sobre direitos reais imobiliários (redação dada pela lei 8.952, de 13/12/94);II - resultantes de fatos que digam respeito a ambos os cônjuges ou de atos praticados por eles (redação dada pela lei 5.925, de 1º/10/73);III - fundadas em dívidas contraídas pelo marido a bem da família, mas cuja execução tenha de recair sobre o produto do trabalho da mulher ou os seus bens reservados (redação dada pela lei 5.925, de 1º/10/73)IV - que tenham por objeto o reconhecimento, a constituição ou a extinção de ônus sobre imóveis de um ou de ambos os cônjuges (redação dada pela lei 5.925, de 1º/10/73). § 2º Nas ações possessórias, a participação do cônjuge do autor ou do réu somente é indispensável nos casos de composse ou de ato por ambos praticados (incluído pela lei 8.952, de 13/12/94). Foi mantida a regra antecedente, agora no art. 74 do CPC/15, no sentido de que tal consentimento para as ações reais sobre imóveis possa ser suprido judicialmente quando for negado por um dos cônjuges sem justo motivo, ou quando lhe seja impossível concedê-lo. Em complemento, a falta de consentimento invalida o processo quando necessário e não suprido pelo juiz. Essas eram as premissas expostas no art. 11 do CPC/73, sem qualquer mudança mais substancial. Sem dúvidas, a grande inovação é a necessidade de vênia ou outorga convivencial para as ações reais imobiliárias, constante do último parágrafo do art. 73, sem correspondente no dispositivo instrumental anterior, como se percebe.1 A novidade deve ser confrontada com o art. 1.647 do CC de 2002, que tem a seguinte redação: Art. 1.647. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode, sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:I - alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;II - pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;III - prestar fiança ou aval;IV - fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação.Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem economia separada. A norma material transcrita representa um dos mais importantes comandos legais do CC de 2002, elencando hipóteses de legitimação, capacidade especial exigida por lei para determinados atos e negócios. No caso, a lei prevê a necessidade de concordância do outro cônjuge, manifestada por uma autorização para o ato. O instituto se situa no plano da validade do negócio jurídico, envolvendo a capacidade (art. 104, inciso I, do CC/02). Por isso é que a lei estabelece, como consequência da falta da outorga conjugal, a anulabilidade do ato correspondente (art. 1.649 do CC/2002), não havendo o eventual suprimento judicial (art. 1.648 do CC/02). Como é notório, forçoso utilizar a expressão genérica outorga conjugal, a englobar tanto a outorga marital (do marido) quanto a outorga uxória (da esposa, do latim uxor). Didaticamente, deve-se evitar mencionar apenas a última, porque traz o sentido de discriminação que constava da codificação material anterior, de 1916, especialmente no seu art. 233, segundo o qual o marido seria o chefe da entidade familiar. Em relação aos regimes que necessitam da outorga conjugal, a dispensa se dá apenas no regime da separação absoluta, tanto por previsão material quanto, agora, processual. Em outras palavras, a outorga conjugal é necessária para os atos elencados nos regimes da comunhão parcial de bens, da comunhão universal de bens e da participação final nos aquestos, em regra. Quanto ao último regime, é possível que o pacto antenupcial traga regra que preveja a livre disposição dos bens imóveis, conforme o art. 1.656 do CC, afastando a necessidade da outorga se isso for convencionado. De toda sorte, esse último regime, introduzido pelo CC de 2002, praticamente não encontrou aplicação prática nos seus mais de dez anos de vigência. A expressão separação absoluta gerou muito debate entre os civilistas e foi repetida pelo Novo CPC no dispositivo aqui exposto (art. 73). Sabe-se que a separação de bens pode ser, inicialmente, legal ou obrigatória, nos três casos descritos no art. 1.641 do CC/02. O primeiro deles está associado à presença de uma das causas suspensivas do casamento, consagradas pelo art. 1.523 do CC. A segunda hipótese envolve as pessoas que se casam com idade superior a 70 anos, o que foi modificado pela lei 12.344/10, pois o sistema anterior previa a idade de 60 anos. A terceira situação de imposição do regime da separação legal diz respeito às hipóteses de pessoas que necessitam de suprimento judicial para o casamento, caso dos menores que não atingiram a idade núbil de 16 anos (arts. 1.517 e 1.520 do CC). Ademais, a separação de bens será convencional quando decorrer de opção dos cônjuges, por pacto antenupcial. Expostos tais conceitos, qual regime seria esse, mencionado tanto no CC/02 quanto no CPC/15, o regime da separação absoluta de bens? Respondendo, não há controvérsia quanto ao regime da separação convencional de bens, uma vez que o art. 1.687 do CC é claro no tocante à livre disposição dos bens, presente uma separação absoluta em casos tais. A polêmica está na separação legal ou obrigatória, girando em torno da incidência ou não da antiga Súmula n. 377 do STF, editada em abril de 1964, com a seguinte redação: "No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Pelo seu teor, no regime da separação obrigatória haveria algo próximo de uma comunhão parcial, comunicando-se os bens havidos durante a união pelo esforço patrimonial dos cônjuges. Em suma, se ainda incidente a súmula, na separação legal, não haveria uma separação absoluta, pois alguns bens se comunicam. Deve ficar claro que este autor segue o entendimento pela necessidade de prova do esforço comum para que surja o direito à participação do cônjuge na separação legal ou obrigatória de bens (nesse sentido: STJ, REsp 442.629/RJ, Quarta Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 02.09.2003, DJ 15.09.2003, p. 324, REPDJ 17.11.2003, p. 332). Todavia, a dedução não é pacífica, diante da existência de entendimento que dispensa a prova do citado esforço comum para a aplicação da súmula (STJ, REsp 1.171.820/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, j. 07.12.2010, DJe 27.04.2011; REsp 1.090.722/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 02.03.2010, DJe 30.08.2010; REsp 736.627/PR, Terceira Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 11.04.2006, DJ 01.08.2006, p. 436). Como se nota pelas menções aos julgados, os acórdãos superiores mais recentes dispensam a prova do esforço comum, transformando a separação obrigatória de bens em comunhão parcial, uma vez que todos os bens havidos durante o casamento se comunicam.Mas a questão a ser respondida é se a súmula 377 do STF ainda tem, ou não, aplicação, o que repercute diretamente na interpretação do art. 1.647, caput, do CC/02. Duas são as correntes que podem ser apontadas a respeito de tão intrincada questão. Para uma primeira corrente, a súmula está cancelada, pois o CC/02 não repetiu o art. 259 do CC/16, que supostamente lhe dava fundamento: "Art. 259. Embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento". Na doutrina, encabeçam esse entendimento Silvio Rodrigues,2 Francisco Cahali3 e José Fernando Simão.4 Para essa vertente, haveria separação absoluta tanto na separação convencional quanto na separação legal de bens, pois nos dois regimes nada se comunica. Para uma segunda corrente, a súmula não está cancelada, diante da vedação do enriquecimento sem causa retirada dos arts. 884 a 886 do CC. Assim, urge a comunicação de alguns bens havidos para se evitar o locupletamento sem razão. Essa corrente parece ser a prevalente na doutrina nacional, sendo seguida por Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery,5 Zeno Veloso,6 Rodrigo Toscano de Brito,7 Paulo Lôbo,8 Maria Berenice Dias,9 Maria Helena Diniz,10 Sílvio Venosa,11 Eduardo de Oliveira Leite,12 Rolf Madaleno,13 Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald,14 Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho.15 Destaque-se que alguns doutrinadores dispensam até a prova do esforço comum, caso de Paulo Lôbo e Maria Berenice Dias. Nessa mesma linha, somente há separação absoluta na separação convencional; eis que, na separação legal, haverá comunicação dos bens havidos pelo esforço comum, entendimento ao qual se filia o autor deste texto. Apesar da adesão à segunda corrente, que tende a prevalecer também na jurisprudência, cabe reafirmar que esse é um dos temas mais divergentes no Direito de Família contemporâneo nacional. O Novo CPC manteve a controvérsia, pois continua a utilizar a expressão separação absoluta. Se tivesse mencionado apenas a separação convencional nos comandos transcritos, o debate talvez houvesse diminuído ou se encerrado. Perdeu-se, assim, chance de pacificação de grande controvérsia, que parece ainda persistir no Direito Brasileiro. Mas não é só. A menção à união estável no último parágrafo do art. 73 do CPC/15 traz outras repercussões de cunho material ainda mais profundas e controversas, que serão analisadas em texto futuro, neste mesmo canal.____________________1 Essa alteração legislativa já era defendida por: DIDIER JR., Fredie. A participação das pessoas casadas no processo. In: MAZZEI, Rodrigo Reis (coord.). Questões processuais no novo Código Civil. São Paulo: Manole, 2006. p. 460-462.2 RODRIGUES, Silvio. Direito civil. Direito de família. 28. ed. 3. tir. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 6, p. 169-173.3 CAHALI, Francisco José. A súmula 377 e o novo Código Civil e a mutabilidade do regime de bens. Revista do Advogado. Homenagem ao Professor Silvio Rodrigues. São Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo, ano XXIV, n. 76, jun. 2004.4 TARTUCE, Flávio; SIMÃO, José Fernando. Direito civil. Direito de família. 4. ed. São Paulo: Método, 2010. v. 5, p. 169-173.5 NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil anotado. 2. ed. São Paulo: RT, 2003. p. 737.6 VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 55. 7 BRITO, Rodrigo Toscano de. Compromisso de compra e venda e as regras de equilíbrio contratual do CC/2002. In: DINIZ, Maria Helena (coord.). Atualidades jurídicas. São Paulo: Saraiva, n. 5, 2004. 8 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 300. 9 DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 5. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 205. 10 DINIZ, Maria Helena. Código Civil anotado. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1.169. 11 VENOSA, Sílvio de Salvo. Código Civil interpretado. São Paulo: Atlas, 2010. p. 1.511-1.512. 12 LEITE, Eduardo de Oliveira. Direito civil aplicado. Direito de família. São Paulo: RT, 2005. v. 5, p. 300. 13 MADALENO, Rolf. Curso de direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2008. p. 46-47. 14 FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direito das famílias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 221. 15 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2011. v. 6, p. 316.
Conforme desenvolvido em trabalho anterior, um grande equívoco da lei 13.058/14 foi o de confundir a guarda compartilhada com a guarda alternada, trazendo ambas as modalidades no texto do Código Civil de 2002. Neste artigo, gostaríamos de enfatizar um segundo grave problema da novel modificação legal, qual seja, a obrigatoriedade na fixação da guarda compartilhada (ou alternada).Como é notório, o caput do art. 1.584 do CC/2002, sem qualquer alteração legislativa em 2014, preconiza que a guarda unilateral ou compartilhada poderá ser efetivada por dois meios. O primeiro deles diz respeito às hipóteses em que é requerida, por consenso, pelo pai e pela mãe, ou por qualquer deles, em ação autônoma de separação, de divórcio, de dissolução de união estável ou em medida cautelar. Essa primeira opção envolve o pleno acordo dos genitores, devidamente homologado pelo juiz da causa. O segundo caminho para a fixação da guarda é a decretação pelo juiz, em atenção às necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. Estabelecia o § 2º do mesmo art. 1.584 da norma material codificada que, quando não houvesse acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, seria aplicada, sempre que possível, a guarda compartilhada. Constata-se, portanto, que essa categoria passou a ser a prioridade, diante da emergência da lei 11.698/08. A lei 13.058/14 alterou esse comando, dispondo atualmente que, "quando não houver acordo entre a mãe e o pai quanto à guarda do filho, encontrando-se ambos os genitores aptos a exercer o poder familiar, será aplicada a guarda compartilhada, salvo se um dos genitores declarar ao magistrado que não deseja a guarda do menor". Por essa norma é que a guarda compartilhada passa a ser obrigatória ou compulsória, o que justifica a nomenclatura dada por este autor à nova legislação. A obrigatoriedade fica clara pelo fato de que o afastamento da guarda compartilhada - ou alternada - deve ser devidamente motivado pelo genitor, cabendo ao juiz da causa analisar a questão sempre sob a perspectiva do princípio do maior interesse da criança ou do adolescente. Sendo assim, mesmo havendo argumentos do genitor para declinar a suposta guarda compartilhada, o juiz pode entender pela sua implementação compulsória, de acordo com o regramento citado. Apesar da expressa previsão legal anterior de prioridade, dos esforços interdisciplinares suscitados pela doutrina anterior e no entendimento jurisprudencial, sempre se acreditou na existência de certos entraves para a efetivação da guarda compartilhada. Isso porque, para que seja possível a concreção dessa modalidade de guarda, este autor acredita ser necessária certa harmonia entre os cônjuges, uma convivência pacífica mínima. Ressalte-se, nesse contexto, a existência de prejuízos à formação do filho, pelo clima de guerra existente entre os pais. Nessa linha, já entendia o Tribunal de Justiça Gaúcho, antes mesmo da alteração legislativa de 2008, cabendo trazer à colação a seguinte ementa: "Guarda compartilhada. Caso em que há divergência entre as partes quanto à guarda. A guarda compartilhada pressupõe harmonia e convivência pacífica entre os genitores" (TJ/RS, processo 70008775827, 12.08.2004, 8.ª câmara Cível, rel. Juiz Rui Portanova, origem Porto Alegre). Mais recentemente, vejamos dois outros acórdãos estaduais, que trazem a mesma conclusão, pela necessidade de existência de certo grau de pacifismo no relacionamento dos pais: "AÇÃO DE RECONHECIMENTO E DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL, CUMULADA COM PEDIDO DE GUARDA DE MENOR, ALIMENTOS E REGULAMENTAÇÃO DE VISITAS. INSURGÊNCIA DE AMBAS AS PARTES CONTRA SENTENÇA DE PARCIAL PROCEDÊNCIA. REFORMA PARCIAL. 1. Guarda. Pretensão do pai à transferência para si da guarda do filho ou, ao menos, da guarda compartilhada. Impossibilidade. Criança em tenra idade que deve ser mantida sob os cuidados maternos, nos termos de Estudo Social. Pai que já foi acusado de maus-tratos e cuja visitação é, por ora, supervisionada. Guarda compartilhada inadequada no caso, em especial diante da relação conturbada do ex-casal. Recurso do autor não provido. 2. Alimentos. Pretensão da mãe à majoração. Admissibilidade. Binômio necessidade-possibilidade. Criança pequena, cujas despesas são evidentes somada à intolerância à lactose. Possibilidade financeira do pai que se qualifica como comerciante, reside em casa própria com a mãe, de quem conta com ajuda. Majoração determinada. Pedido acolhido. Recurso da ré provido" (TJSP, Apelação n. 0025974-26.2011.8.26.0302, Acórdão n. 8008487, Jaú, Terceira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Carlos Alberto de Salles, julgado em 11/11/2014, DJESP 20/01/2015). "Guarda compartilhada. Adolescente. Situação familiar não propícia ao implemento da medida. Deferimento de guarda única à avó paterna. Direito de visitação da genitora. O melhor interesse da criança ou do adolescente prepondera na decisão sobre a guarda, independentemente, dos eventuais direitos daqueles que requerem a guarda. O implemento da guarda compartilhada requer um ambiente familiar harmonioso e a convivência pacífica entre as partes que pretendem compartilhar a guarda do menor. O conjunto probatório dos autos revela que, lamentavelmente, não há qualquer comunicação, contato e muito menos consenso entre a autora (avó) e a ré (mãe) necessários ao estabelecimento da guarda compartilhada. Assim sendo, há que se instituir no caso concreto a tradicional modalidade da guarda única em favor da autora, legitimando-se a situação de fato. Também merece reparo o regime de visitação imposto na r. sentença, o qual passará a ser em fins de semana alternados e somente aos domingos, de 8 às 20 horas ou em qualquer outro dia da semana e horário que for acordado entre mãe e filho, medida necessária para que o adolescente restabeleça seu vínculo com a mãe até que atinja a maioridade civil. Precedente citado: TJRS, 70001021534/RS, Rel. Des. Maria Berenice Dias, julgado em 02.03.2005" (TJRJ, Acórdão n. 2007.001.35726, Capital, Rel. Des. Roberto de Souza Cortes, j. 27.11.2007, DORJ 14.02.2008, p. 312). De toda sorte e em sentido contrário, cumpre destacar a existência de julgados no STJ, segundo os quais a guarda compartilhada pode ser imposta pelo magistrado, mesmo não havendo o citado consenso entre os genitores. De início, colaciona-se aresto precedente, que deduz: "A guarda compartilhada (art. 1.583, § 1º, do CC/2002) busca a proteção plena do interesse dos filhos, sendo o ideal buscado no exercício do poder familiar entre pais separados, mesmo que demandem deles reestruturações, concessões e adequações diversas, para que seus filhos possam usufruir, durante sua formação, do ideal psicológico do duplo referencial. Mesmo na ausência de consenso do antigo casal, o melhor interesse do menor dita a aplicação da guarda compartilhada. Se assim não fosse, a ausência de consenso, que poderia inviabilizar a guarda compartilhada, faria prevalecer o exercício de uma potestade inexistente por um dos pais. E diz-se inexistente porque contraria a finalidade do poder familiar, que existe para proteção da prole. A drástica fórmula de imposição judicial das atribuições de cada um dos pais e do período de convivência da criança sob a guarda compartilhada, quando não houver consenso, é medida extrema, porém necessária à implementação dessa nova visão, para que não se faça do texto legal letra morta. A custódia física conjunta é o ideal buscado na fixação da guarda compartilhada porque sua implementação quebra a monoparentalidade na criação dos filhos, fato corriqueiro na guarda unilateral, que é substituída pela implementação de condições propícias à continuidade da existência das fontes bifrontais de exercício do poder familiar. A guarda compartilhada com o exercício conjunto da custódia física é processo integrativo, que dá à criança a possibilidade de conviver com ambos os pais, ao mesmo tempo em que preconiza a interação deles no processo de criação" (STJ, REsp 1.251.000/MG, rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 23.08.2011, publicação no seu Informativo n. 481). Como se percebe, o acórdão admite a guarda compartilhada com a alternância de lares e o duplo referencial, o que foi confirmado em outro julgamento mais recente daquela Corte Superior, com mesma relatoria (STJ, REsp 1.428.596, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, j. 03/06/2014). Com o devido respeito, sempre criticamos essa forma de julgar, pois o compartilhamento em situações tais tende a aumentar os conflitos e gerar situações de maiores prejuízos ao filho, inclusive em decorrência de alienações parentais praticadas por ambos os genitores. Infelizmente, a lei 13.058/14 confirma essa última forma de pensar o Direito, impositiva, e acreditamos que trará mais problemas do que soluções, especialmente porque a modalidade que passa a ser obrigatória não é a guarda compartilhada, mas a guarda alternada. Imagine-se, por exemplo, as hipóteses de cônjuges que residam em locais distantes ou em cidades diferentes. Como impor uma alternância de lares em situações tais? Acredita-se que a norma simplesmente não terá aplicação em muitos casos concretos familiares. A propósito, José Fernando Simão pensa que, mesmo com a modificação legislativa, não haverá a citada obrigatoriedade. Para ele e com razão, "no caso da guarda compartilhada, em situações de grande litigiosidade dos pais, assistiremos às seguintes decisões: 'em que pese a determinação do CC de que a guarda deverá ser compartilhada, no caso concreto, a guarda que atende ao melhor interesse da criança é a unilateral e, portanto, fica afastada a regra do CC que cede diante do princípio constitucional'. A lei não é, por si, a solução do problema como parecem preconizar os defensores do PL 117/03. A mudança real é que o Magistrado, a partir da nova redação de lei, precisará invocar o preceito constitucional para não segui-la. Nada mais".1 Para concluir, reafirmamos que interesses pessoais de alguns pais nortearam a modificação legislativa efetivada no final de 2014. Como arremate, pensamos ser possível salvar o texto legislativo, deixando esses interesses de lado. Primeiro, aplicando a verdadeira guarda compartilhada, e não a guarda alternada, que está escondida na norma. Segundo, mitigando a máxima da sua obrigatoriedade, especialmente quando não houver o mínimo consenso entre os genitores. O modo como a jurisprudência se comportará nos próximos anos será fulcral para a correta efetivação da lei, em atendimento ao seu fim social.____________________1 SIMÃO, José Fernando. Guarda compartilhada obrigatória. Mito ou realidade? O que muda com a aprovação do PL 117/2013. Disponível em: . Acesso em: 28 nov. 2014.
Para esta segunda coluna do Migalhas resolvi tratar da nova legislação relativa à guarda compartilhada, promulgada ao final de 2014. Penso ser muito importante, neste momento, aprofundar a abordagem do preceito emergente, o que será feito em dois textos. Conforme tenho destacado em aulas e exposições sobre o assunto, parece-me que o novo diploma tende a intensificar os conflitos familiares nos próximos anos, gerando ainda mais problemas. Como é notório, após cuidar da separação judicial e do divórcio, o Código Civil de 2002 elenca as regras referentes à "Proteção da Pessoa dos Filhos". Sobre esse tema, a codificação material traz disposições importantes, em especial nos seus arts. 1.583 e 1.584. Tais artigos foram profundamente modificados pela lei 11.698, de 13 de junho de 2008. Sucessivamente, houve nova alteração por meio da lei 13.058, de 22 de dezembro de 2014, originária do projeto de lei 117/2013, denominada por alguns como Lei da Guarda Compartilhada Obrigatória. O projeto aprovado modificou outros comandos da codificação privada, mas aqui vamos nos ater aos citados arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil. Voltando a momento anterior ao Código Civil de 2002, a lei 6.515/1977 estabelecia a influência da culpa na fixação da guarda. De início, o art. 9.º da Lei do Divórcio prescrevia que, no caso de dissolução da sociedade conjugal pela separação judicial consensual, seria observado o que os cônjuges acordassem sobre a guarda dos filhos. No caso de separação judicial fundada na culpa, os filhos menores ficariam com o cônjuge que não tivesse dado causa à dissolução, ou seja, com o cônjuge inocente (art. 10, caput). Se pela separação judicial fossem responsáveis ambos os cônjuges, os filhos menores ficariam em poder da mãe, salvo se o juiz verificasse que tal solução pudesse gerar prejuízo de ordem moral aos filhos (art. 10, § 1.º). Sendo verificado pelo juiz que os filhos não deveriam permanecer em poder da mãe nem do pai, seria possível deferir guarda a pessoa notoriamente idônea, da família de qualquer dos cônjuges (art. 10, § 2.º, da Lei do Divórcio). No sistema da redação original do Código Civil de 2002, preceituava o art. 1.583 que, no caso de dissolução da sociedade conjugal, prevaleceria o que os cônjuges acordassem sobre a guarda de filhos, no caso de separação ou divórcio consensual. Na realidade, a regra completava a proteção integral da criança e do adolescente consagrada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/1990). Não havendo acordo entre os cônjuges, nos termos da redação original da codificação material, a guarda seria atribuída a quem revelasse as melhores condições para exercê-la (art. 1.584 do CC/2002). O parágrafo único deste comando legal enunciava que a guarda poderia ser atribuída a terceiro, se o pai ou a mãe não pudesse exercê-la, de preferência respeitada a ordem de parentesco e a relação de afetividade com a criança ou o adolescente. Percebe-se que o Código Civil de 2002, em sua redação original, mudou o sistema anterior de guarda, uma vez que a culpa não mais influencia na determinação do cônjuge que a deterá, ao contrário do que constava do art. 10 da Lei do Divórcio, norma revogada tacitamente pela codificação privada, diante de incompatibilidade de tratamentos. Assim, constata-se que não houve qualquer impacto da Emenda do Divórcio (EC/2010) sobre a guarda, eis que a culpa já não mais gerava qualquer consequência jurídica em relação a tal aspecto. A expressão melhores condições, constante da redação originária do art. 1.584 do CC/2002, sempre foi como uma cláusula geral. E para preenchê-la a doutrina nacional reiteradamente propunha o atendimento do maior interesse da criança e do adolescente. Nesse contexto, Maria Helena Diniz, com base na doutrina francesa, sempre apontou a existência de três critérios, três referenciais de continuidade, que poderiam auxiliar o juiz na determinação da guarda, caso não fosse possível um acordo entre os cônjuges. O primeiro deles seria o continuum de afetividade, pois o filho deve ficar com quem se sente melhor, sendo interessante ouvi-lo, sempre que isso for possível. O segundo é o continuum social, pois a criança ou adolescente deve permanecer onde se sente melhor, levando-se em conta o ambiente social, as pessoas que o cercam. Por fim, cabe destacar o continuum espacial, eis que deve ser preservado o espaço do filho, o "envoltório espacial de sua segurança", conforme ensina a professora Titular da PUC/SP1. Justamente por esses três critérios é que, geralmente, quem já exercia a guarda unilateral sempre teve maiores chances de mantê-la. Até então a guarda unilateral com regulamentação de visitas era a única opção prevista expressamente em lei Reafirme-se que com a edição da lei 11.698, de 13 de junho de 2008, as redações dos arts. 1.583 e 1.584 do CC/2002 sofreram alterações substanciais. De início, o art. 1.583, caput, passou a expressar que a guarda será unilateral ou compartilhada. Assim, seguindo o clamor doutrinário, a lei passou a consagrar, expressamente, a última modalidade de guarda. Nos termos legais, a guarda compartilhada é aquela em que há a responsabilização conjunta e o exercício de direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao poder familiar dos filhos comuns. O § 1.º do art. 1.583 define a guarda unilateral como a atribuída a um só dos genitores ou a alguém que o substitua. Esses diplomas não sofreram qualquer mudança com a lei 13.058/2014. Porém, determinava o § 2.º do art. 1.583 do CC/2002 que a guarda unilateral seria atribuída ao genitor que revelasse as melhores condições para exercê-la, o que era repetição da anterior dicção do art. 1.584 do CC/2002. Todavia, o preceito foi além, ao consagrar alguns critérios objetivos para a fixação dessa modalidade de guarda, a saber: a) afeto nas relações com o genitor e com o grupo familiar; b) saúde e segurança; c) educação. Tais fatores estavam na linha dos parâmetros expostos por Maria Helena Diniz, o que demonstrava que a lei apenas confirmava o que antes era apontado pela doutrina nacional. Com a lei 13.058/2014 o diploma passou a estabelecer que "na guarda compartilhada, o tempo de custódia física dos filhos deve ser dividido de forma equilibrada com a mãe e com o pai, sempre tendo em vista as condições fáticas e os interesses dos filhos". Em suma, nota-se que os critérios antes mencionados foram retirados, com a revogação dos três incisos do art. 1.583, § 2º, da codificação privada; o que não nos parece salutar. Ademais, com o devido respeito ao pensamento contrário, a este colunista a novel legislação traz outros sérios problemas. O principal deles é a menção a uma custódia física dividida, o que parece tratar de guarda alternada e não de guarda compartilhada. Continuamos a seguir a ideia de que a guarda alternada é aquela em que o filho permanece um tempo com o pai e um tempo com a mãe, pernoitando certos dias da semana com o pai e outros com a mãe. A título de exemplo, o filho fica sob a custódia do pai de segunda a quarta-feira; e da mãe de quinta-feira a domingo. Essa forma de guarda não é recomendável, eis que pode trazer confusões psicológicas à criança, como bem desenvolve a juspsicanalista Giselle Câmara Groeninga em sua tese de doutorado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Como ela destaca, a guarda alternada acaba por privilegiar mais o que os pais vêem como seus direitos, "sem considerar os seus reais efeitos para o desenvolvimento da criança"2. Dois desses direitos dos pais, notoriamente egoísticos, podemos destacar de imediato. O primeiro é o de reduzir ao máximo os encontros com o antigo consorte, o que é facilitado pela existência de dois lares. O segundo diz respeito aos pleitos de redução ou exoneração de valores alimentícios, o que vem ocorrendo perante o Poder Judiciário sob a vigência da nova lei. Em verdade, a nova norma até pode parecer bem intencionada, sob o argumento de trazer a ideia de igualdade parental, superando o modelo monista da guarda unilateral. Porém, ela verdadeiramente esconde em seu conteúdo uma armadilha jurídica, como um Cavalo de Tróia Legislativo. A propósito, conforme destacado por Waldyr Grisard Filho na última Revista Informativa do IBDFAM, ainda em comentários ao projeto que gerou a lei, "a norma projetada não só mantém vivos alguns dos velhos equívocos à sua atribuição como ressuscita outros, de nefasta memória, como a guarda alternada, nunca disciplinada em nosso ordenamento jurídico. Assim, a guarda compartilhada permanece na berlinda"3. Pertinente lembrar que a guarda alternada é também chamada de guarda do mochileiro, pois o filho sempre deve arrumar a sua mala ou mochila para ir à outra casa. Não se trata de um mito, mas de uma realidade que deve ser mais profundamente debatida. Se existem estudos de psicanalistas e juristas que apontam não existir problema na alternância de lares; também existem outros relevantes trabalhos que afirmam o contrário, como o da professora Giselle Groeninga, aqui exposto. Se há séria divergência, especialmente em aspectos meta-jurídicos, melhor seria não mudar a lei, ou pelo menos debater a então proposta legislativa mais profundamente, o que não ocorreu. Efetivou-se uma tentativa de solucionar o problema da prevalência da guarda unilateral com a instituição generalizada da guarda alternada, o que é lamentável. Continuamos a afirmar que a alternância de guarda e de lares é altamente inconveniente, pois a criança perde seu referencial, recebendo tratamentos diferentes quando na casa paterna e na materna. O problema não diz respeito a gênero, mas a espaço e a convivência social. Qual será a turma de amigos do filho? Onde ele irá desempenhar as atividades complementares, esportivas e intelectuais, para a sua formação? Estudará na escola próxima a qual dos lares? Conviverá mais com os filhos dos amigos do pai ou da mãe? Como irá trabalhar psicologicamente as informações recebidas nos dois ambientes? Em grandes cidades e em situações concretas de pais que moram em municípios distintos a nova lei é praticamente inaplicável. Acrescente-se que o equívoco foi percebido pelo Professor José Fernando Simão, que participou da audiência pública no Senado Federal de debate do então projeto de lei n, 117/2013. Conforme artigo publicado ao final de 2014, pontua o jurista: "Este dispositivo é absolutamente nefasto ao menor e ao adolescente. Preconiza ele a dupla residência do menor em contrariedade às orientações de todos os especialistas da área da psicanálise. Convívio com ambos os pais, algo saudável e necessário ao menor, não significa, como faz crer o dispositivo, que o menor passa a ter duas casas, dormindo às segundas e quartas na casa do pai e terças e quintas na casa da mãe. Essa orientação é de guarda alternada e não compartilhada. A criança sofre, nessa hipótese, o drama do duplo referencial criando desordem em sua vida. Não se pode imaginar que compartilhar a guarda significa que nas duas primeiras semanas do mês a criança dorme na casa paterna e nas duas últimas dorme na casa materna. Compartilhar a guarda significa exclusivamente que a criança terá convívio mais intenso com seu pai (que normalmente fica sem a guarda unilateral) e não apenas nas visitas ocorridas a cada 15 dias nos finais de semana. Assim, o pai deverá levar seu filho à escola durante a semana, poderá com ele almoçar ou jantar em dias específicos, poderá estar com ele em certas manhãs ou tardes para acompanhar seus deveres escolares. Note-se que há por traz da norma projetada uma grande confusão. Não é pelo fato de a guarda ser unilateral que as decisões referentes aos filhos passam a ser exclusivas daquele que detém a guarda. Decisão sobre escola em que estuda o filho, religião, tratamento médico entre outras já é sempre foi decisão conjunta, de ambos os pais, pois decorre do poder familiar. Não é a guarda compartilhada que resolve essa questão que, aliás, nenhuma relação tem com a posse física e companhia dos filhos"4. Sabe-se que o desenvolvimento do ser humano desde os anos iniciais de vida demanda muito tempo e muita dedicação. Empenho, disciplina e esforço são palavras de ordem para os pais, havendo exigências sobre as figuras paternas e maternas que não eram realidade no passado. Já é difícil a construção de laços afetivos sociais, internos e externos, em um lar apenas. Imaginem em dois. A sociedade contemporânea exige papéis dos pais como se fossem Super-homens e Mulheres-Maravilhas, quando a realidade nos coloca muito distantes das fantasias de super-heróis. Repise-se que a guarda compartilhada ou guarda conjunta representa a hipótese em que pai e mãe dividem as atribuições relacionadas ao filho, que irá conviver com ambos, sendo essa sua grande vantagem. Esse é o conceito que permanece no art. 1.583, 1º, do Código Civil, como antes exposto. Todavia, há uma total contradição da norma ao estabelecer, no § 3º do mesmo diploma, a ideia de divisão de moradias, comum na alternância da guarda. O paradoxo também pode ser retirado do inciso II do art. 1.584 da própria codificação, ora modificada, ao enunciar que a guarda compartilhada poderá ser decretada pelo juiz, em atenção a necessidades específicas do filho, ou em razão da distribuição de tempo necessário ao convívio deste com o pai e com a mãe. Distribuir o tempo de convívio igualmente é comum na guarda alternada. Para sanar o conflito existente na própria lei, talvez a solução futura seja fixar a verdadeira guarda compartilhada, sem considerar a alternância de lares que o comando introduziu. Expostas essas ideias e conceitos, fica a reflexão final deste texto: a lei 13.508/2014 é uma norma sobre guarda compartilhada obrigatória ou uma lei sobre guarda alternada obrigatória? Tenho respondido pelo segundo enquadramento. Por isso o título desta coluna, a demonstrar um dos dois principais problemas do preceito emergente. O segundo problema, a obrigatoriedade propriamente dita, será abordado no nosso próximo artigo. __________ 1DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Volume 5. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 28ª edição, 2010, p. 347-348. 2GRONENIGA, Giselle Câmara. Direito à convivência entre pais e filhos: análise interdisciplinar com vistas à eficácia e sensibilização de suas relações no Poder Judiciário. Tese de doutorado. Acesso em 11 de fevereiro de 2015. 3GRISSARD FILHO, Waldyr. A guarda compartilhada na berlinda. Revista do IBDFAM n. 18. Belo Horizonte: IBDFAM, Janeiro de 2015, p. 12. 4SIMÃO, José Fernando. Guarda compartilhada obrigatória. Mito ou realidade? O que muda com a aprovação do PL 117/2013. Acesso em 28 de novembro de 2014.
Foi com muita honra que recebi e aceitei o convite formulado pelo editor do Migalhas, Miguel Matos, para, a partir deste ano de 2015, escrever colunas mensais neste informativo, tratando dos principais desafios do Direito de Família e das Sucessões no Brasil. São várias as razões da minha felicidade. Primeiro, porque o Migalhas tornou-se a principal ferramenta de informação jurídica pela internet do país. Sou seu leitor assíduo, seu fã incondicional. Para mim tornou-se um verdadeiro dever a sua leitura diária, para atualização do conhecimento e para a informação sobre os principais fatos que envolvem a atuação jurídica no país. Tenho utilizado o Migalhas com grande frequência, para alimentar os meus blogs, site e os meus escritos em geral. Segundo, eu e Miguel somos da mesma região do país. Ele de Patrocínio Paulista; eu de Passos, Minas Gerais. Vivemos em cidades próximas quando da infância e da adolescência e pudemos desfrutar, desde jovens, dos encantos dessa parte do interior do Brasil. Fomos forjados pela mesma terra, roxa e produtiva. A terceira razão é que o Direito de Família e o das Sucessões têm oferecido muitos desafios para os aplicadores de Direito em geral, alcançando uma abrangência teórica e prática que não existia até um passado próximo. Tenho o costume de dizer que essas searas são as mais problemáticas do Direito Privado nacional. Os problemas e os constantes conflitos existem em todas as esferas: nas contendas entre os seus personagens principais, nas disputas ideológicas entre os estudiosos e doutrinadores, nos conflitos entre decisões díspares em praticamente todos os Tribunais, inclusive no Superior Tribunal de Justiça. Quanto ao último, vale citar o debate que se trava quanto à concorrência sucessória ou não do cônjuge sobrevivente no regime da separação convencional de bens, por interpretação do art. 1.829, inciso I, do Código Civil. Foi a codificação privada de 2002 que acentuou esses embates, notadamente por ter sido elaborada em um outro momento histórico, com valores sociais bem distantes do que se percebe neste início de século XXI. Porém, a Lei Geral Privada vigente também trouxe uma possibilidade de abertura, pela adoção de um modelo baseado em cláusulas gerais, princípios e conceitos legais indeterminados. Isso ocasionou, por exemplo, o reconhecimento da afetividade como valor jurídico, com natureza de verdadeiro princípio do Direito de Família contemporâneo. Sua densidade principiológica é facilmente percebida por aqueles que conciliam a teoria com a prática familiarista, como bem observou Ricardo Calderon em sua dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal do Paraná, obra publicada pela Editora Renovar. Em um campo de profundos choques ideológicos, movido por paixões - inclusive dos juristas, que muitas vezes com furor querem fazer prosperar suas teses -, temos muitas questões a esclarecer nos próximos anos. Gostaria de destacar algumas, nesta coluna inaugural. De início, será que a Nova Lei da Guarda Compartilhada, lei 13.058/2014, conseguirá amenizar ou resolver as disputas relacionas aos filhos menores, após o fim do casamento ou da união estável? Acredito que não. Tenho sustentado, na linha de José Fernando Simão, Rolf Madaleno e Giselle Groeninga, que a norma não trata de guarda compartilhada, mas de guarda alternada. Essa pode ser boa para os pais, que queiram contatos mínimos entre si; mas também pode ser péssima à criança, que deixa de ter um referencial único, como a terra roxa e produtiva que aqui antes mencionei. Ademais, o diploma emergente parece ter dado um tom de obrigatoriedade à guarda compartilhada (na verdade, alternada, reafirme-se), o que para muitos parece não ser a melhor alternativa, pois somente geradora de mais conflito. Teremos um ano de grandes discussões sobre o Novo CPC, aguardando sanção da presidência da República. E o novo Estatuto Processual é farto na regulamentação de questões relativas ao Direito de Família e das Sucessões. Ele aperfeiçoa as regras do inventário e da partilha, trata do companheiro sempre ao lado do cônjuge, regulamenta a mediação e a conciliação, traz um capítulo próprio para as ações de família, trata da desconsideração inversa da personalidade jurídica e, infelizmente (muito infelizmente) mantém a separação judicial e a extrajudicial. Nesse último aspecto, com o devido respeito a quem pensa de forma contrária, o Novo CPC representa um profundo retrocesso. Teremos uma lei instrumental que tenta reduzir o conflito e a burocracia, agilizando procedimentos em muitos de seus trechos; mas que mantém um instituto anacrônico, conflitivo e superado pela Emenda Constitucional 66/2010, em outro. Além dessas questões, temos outros problemas represados a resolver, que merecem ser analisados mais atentamente. A culpa ainda pode ser debatida em sede de ações de dissolução de casamento e união estável?Qual a extensão e quais são os limites dos alimentos entre cônjuges e companheiros? A responsabilidade civil deve ser amplamente aplicada ao Direito de Família?Há uma tendência de contratualização desse ramo jurídico? Deve ser reconhecida a igualdade plena entre casamento e união estável, inclusive para fins sucessórios? O art. 1.790 do Código Civil, que trata da sucessão do companheiro, é inconstitucional? A legítima sucessória deveria ser revista ou extinta? O testamento vital é um testamento?As manifestações de atos de última vontade deveriam ser facilitadas?Quais os limites para o chamado planejamento sucessório? Dentro das minhas possibilidades, procurarei responder a essas indagações nas próximas colunas deste importante informativo jurídico brasileiro.