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Direito ao esquecimento: fim da linha?

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Atualizado às 09:54

No último dia 28/5/2021, a Embaixada da Alemanha e o Fórum Jurídico Brasil-Alemanha promoveram um seminário internacional sobre direito ao esquecimento com a presença do renomado Prof. Jörg Neuner, catedrático da Universidade de Augsburg e do Min. Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o qual tive a honra de mediar.

O evento teve, dentre outros, o mérito de apresentar ao público um panorama comparado sobre o tema e, principalmente, mostrar como as Cortes constitucionais de ambos países - embora herdeiros de uma tradição jurídico-cultural comum (direito romano-germânico) e dotados de instrumental normativo, teórico e dogmático semelhante - chegam a conclusões diametralmente opostas quando se trata de tutelar efetivamente, fora do plano meramente abstrato do discurso jurídico, a personalidade humana face às chamadas liberdades comunicativas na sociedade da informação.

Em apertada síntese, o direito ao esquecimento impede que informações pretéritas de cunho pessoal do indivíduo - e, portanto, destituídas de relevância histórica ou social - fiquem permanentemente expostas ao acesso de todos na internet, causando situação vexatória que impede a pessoa de tocar sua vida normalmente.

Na verdade, havia uma clara convergência doutrinária e jurisprudencial entre Brasil e Alemanha até bem pouco tempo, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Tema 786 sobre a existência do direito ao esquecimento no caso Aída Curi, no Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ.

Porém, após afetar um caso tido como não representativo do direito ao esquecimento desde a sentença até o recurso especial, a Suprema Corte concluiu pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição, colocando-se na contramão da jurisprudência sedimentada do STJ e da doutrina civilista majoritária, inclusive no continente europeu.

A partir de então, instaurou-se uma situação de flagrante insegurança jurídica em razão do conteúdo da tese fixada que, antes de esclarecer e pacificar a questão, colocou mais lenha na discussão. Diz a tese de repercussão geral:

"É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como um poder de obstar em razão da passagem do tempo a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais.

Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível."

Relembrando o caso Aída Curi

Aída Curi foi uma jovem assassinada em 1958 no Rio de Janeiro, que entrou para a história como vítima de brutal feminicídio. O assassinato fora recontado cinquenta anos depois em detalhado documentário da TV Globo contra expressa manifestação da família da vítima.

Por isso, seus irmãos pediram indenização por danos materiais, morais e à imagem alegando, dentre outros fundamentos, o direito ao esquecimento, violado com o revolver do caso em cadeia nacional.

A ação foi julgada improcedente em todas as instâncias, inclusive no STJ. No REsp. 1.335.153/RJ, apreciado em 28/3/2013 sob a relatoria do e. Min. Luís Felipe Salomão, a Corte negou a aplicação do direito ao esquecimento por se tratar de crime de repercussão nacional que não poderia ser recontado sem referência à figura da vítima. Ademais, o STJ entendeu não ter havido abuso no documentário, afastando o pedido ressarcitório dos familiares.

Por recurso da família, o processo foi parar no STF e, com base nesse julgado, que sequer era caso de direito ao esquecimento, o Tribunal fixou a tese de repercussão geral de que o direito ao esquecimento é incompatível com a Carta Magna sob clara inspiração no direito norte-americano, que - ao contrário do direito continental europeu - privilegia a liberdade, entendida em um viés claramente econômico, em detrimento à proteção do indivíduo e de sua dignidade.

As críticas à decisão do STF

As críticas à decisão do STF não tardaram a surgir na doutrina especializada. Dentre inúmeros aspectos, destacam-se aqui dois. Em primeiro lugar, a ausência de uma nítida resposta jurídica ao caso.

Isso porque a Corte, ao tempo em que fechou a porta da frente, deixou a porta dos fundos aberta para a análise casuística da colisão de direitos fundamentais envolvendo, de um lado, a proteção da "personalidade em geral" (da qual o direito ao esquecimento, enquanto mecanismo de tutela ao livre desenvolvimento da personalidade, é decorrência lógica e necessária) e, de outro, eventuais excessos ou abusos na liberdade de expressão e informação.

Por isso, muitos entendem que o STF, imerso em imprecisões dogmáticas e incoerências axiológicas, longe de banir o direito ao esquecimento do ordenamento jurídico, deixou ao juiz a tarefa de analisar caso a caso o cabimento da figura, como salientou, com perspicácia, o Min. Luís Felipe Salomão durante a live realizada pela Embaixada da Alemanha.

De fato, a margem de apreciação garantida ao juiz na segunda parte da tese afasta qualquer dúvida: a decisão não encerrou a questão.

Pelo contrário: como bem observou o Min. Luís Felipe Salomão, deixou de fora o campo mais importante de aplicação do direito ao esquecimento na atualidade, qual seja, o direito ao esquecimento na internet, que vem sendo instrumentalizado por meio da desindexação de conteúdos e/ou apagamento de dados pessoais por operadores de busca como Google ou Yahoo.

Esses casos possuem conjuntura fática e valorativa diversa do caso Aída Curi, um típico caso de direito ao esquecimento em mídia analógica (televisiva), dotado, porém, de características ímpares na medida em que não visava a tutela do pleno desenvolvimento da personalidade da vítima, falecida há meio século.

Lá discutia-se a proteção post mortem da personalidade apenas em via reflexa. Em primeiro plano, a lide girava em torno de pleito indenizatório formulado pelos familiares em razão da exibição do documentário sobre o histórico feminicídio, o qual, contudo, fora retratado em livro e, dessa forma, recolocado no espaço público por quem se dizia atingido pela exposição.

Casos como esse, relacionados a fatos históricos ou de interesse público, como os crimes contra mulheres, não são, de facto, abarcados pelo direito ao esquecimento. Nesse sentido, como bem atentou o Min. Luís Felipe Salomão, o STF não divergiu do entendimento esposado pelo STJ no REsp. 1.335.153/RJ.

E nem da doutrina abalizada, acresça-se, que sempre ressaltou que acontecimentos de relevância histórica ou social podem - rectius: devem - ser sempre rememorados a fim de evitar o cometimento de erros pretéritos. É por isso que não cabe invocar o direito ao esquecimento para impedir a divulgação do impeachment de Fernando Collor ou de Dilma Rousseff, nem dos crimes cometidos durante a ditadura militar ou o lendário escândalo dos precatórios1.

Causa espécie, assim, que a maioria dos ministros da Suprema Corte tenham considerado o direito ao esquecimento como uma ameaça à história e à memória do país, uma ofensa à geração que lutou pela redemocratização, sendo necessário, ao contrário, "abrir as cortinas do passado", principalmente em um país sem memória como o Brasil.

E aqui se põe a segunda crítica feita ao entendimento da Corte: a falta de solidez dogmática à decisão, que se reflete na vacilante tese fixada.

Com efeito, a associação entre direito ao esquecimento e apagamento da história ou da memória social só pode ser entendida como desconhecimento dogmático da figura, pois o direito ao esquecimento nunca pretendeu impedir ou restringir o acesso a informações de caráter histórico ou de interesse público.

O STJ deu excelente exemplo nesse sentido ao negar a aplicação do direito ao esquecimento no REsp.  1.434.498/SP em que se discutia a indenização a vítimas de crimes de tortura cometidos durante a ditadura militar por Carlos Alberto Brilhante Ustra, à época comandante do DOI-CODI.

No julgado, a Corte assinalou que "a recuperação da memória histórica é fundamental para uma nação para evitar que essas graves violações aos direitos fundamentais voltem a ocorrer" e que os gravíssimos crimes praticados por agentes a serviço do Estado brasileiro devem ser devidamente desvelados em suas circunstâncias para que os danos sejam, ao menos moralmente, reparados, apaziguando-se a sensação de impunidade.

Portanto, como bem pontuado pelo Min. Luís Felipe Salomão, trata-se de uma "falsa narrativa" o discurso de que o direito ao esquecimento promove o apagar da história. Ninguém muda o passado. Não se reescreve o passado. O que se busca com o direito ao esquecimento é apenas restaurar, em determinadas situações, a dignidade da pessoa humana violada pela exposição permanente a um fato pretérito, disse.

Da mesma forma, afirmar que o direito ao esquecimento põe em risco a liberdade de expressão e imprensa ou a democracia é ignorar que a figura não abarca fatos de interesse público divulgados na mídia, como escândalos de corrupção envolvendo políticos, empresários ou autoridades públicas, a exemplo da operação Lava Jato, nem notícias sobre tráfico de influência, vendas de sentenças ou abuso de autoridade por magistrados, nem os recentes ataques perpetrados por agentes políticos contra o STF ou a ordem constitucional em nome, pasme-se, da liberdade de expressão.

Esse exemplo mostra que, na verdade, as ameaças à democracia têm partido não do direito ao esquecimento, mas sim de discursos antidemocráticos, de discursos de ódio, fake news e desinformações de toda ordem, problemas intrinsecamente relacionados com a delimitação do conteúdo da liberdade de expressão.

Mas nem por isso, nega-se ou põem-se em dúvida a importância vital da liberdade de expressão no ordenamento jurídico pátrio. Aliás, é uma falácia a oposição entre liberdade de imprensa e direito ao esquecimento, devido ao caráter excepcional desse útlimo.  

Perguntado se o direito ao esquecimento, desde seu reconhecimento inicial em 1973 pelo Tribunal Constitucional no famoso caso Lebach I até o presente, pôs em risco ou causou algum dano à história, à liberdade de expressão ou à democracia alemãs, Jörg Neuner foi categórico em negar qualquer efeito nocivo à figura do direito ao esquecimento na Alemanha.

Aliás, a admitir-se a ideia da ameaça às liberdades e à democracia, sustentada pelos opositores do direito ao esquecimento e ecoada em muitos votos no STF, ter-se-ia que concluir que a democracia europeia estaria ameaçada, pois o direito ao esquecimento é amplamente reconhecido tanto pelo Tribunal de Justiça Europeu, quanto por diversos tribunais nacionais, a exemplo do Bundesverfassungsgericht (equivalente ao STF) e do Bundesgerichtshof (equivalente ao STJ) na Alemanha. E isso seria, evidentemente, um absurdo diante do compromisso dos tratados da União Europeia com a democracia, as liberdades e proteção da pessoa humana.

Portanto, afirmar que o direito ao esquecimento constitui ameaça às liberdades e à democracia é discurso retórico que, ignorando a função da figura, pretende desqualifica-la perante a opinião pública. E a Europa mostra muito bem que o direito ao esquecimento e a tutela da personalidade do indivíduo convivem harmoniosamente com os valores democráticos.

Considerações gerais sobre o direito ao esquecimento

Como bem acentuou Jörg Neuner, o direito ao esquecimento visa impedir a divulgação permanente de informações pretéritas relacionadas à esfera privada (personenbezogene Information) do indivíduo, que perderam relevância social com o decurso do tempo, mas cuja divulgação interfere gravemente na vida e no desenvolvimento da personalidade da pessoa.

Embora divulgadas inicialmente de forma lícita, sua permanente publicação - ou acessibilidade na internet - afeta a pessoa em medida desproporcional, gerando constrangimentos, embaraços aos familiares, dificultando a recolocação profissional, a ressocialização ou um simples recomeço, devendo, por isso, ser retiradas do espaço público.

Isso não significa, por óbvio, o total apagamento da notícia. Na era digital, na qual as pessoas buscam cada vez mais informações na internet, "esquecer" significa tão só desindexar nos resultados de busca o nome da pessoa a notícias relacionadas a fatos vexatórios pretéritos ou implantar filtros que evitem a associação do nome da pessoa à notícia.

Foi o que aconteceu no famoso caso Google Spain versus Mario Costeja Gonzáles no qual o Tribunal de Justiça da União Europeia ordenou ao operador de busca suprimir da lista de resultados as conexões às páginas do jornal La Vanguardia, que noticiava que o imóvel do advogado espanhol fora levado a leilão por causa de dívidas com a seguridade social, fato ocorrido há mais de uma década, mas que ainda causava-lhe constrangimentos.  

Dessa forma, não há apagamento ou exclusão total da notícia da internet. Apenas colocam-se filtros para que a informação desabonadora não seja encontrada por meio de simples busca pelo nome do envolvido a fim de permitir que a pessoa siga sua via com razoável anonimato, não sendo o fato pretérito corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca.

Segundo Jörg Neuner, os tribunais alemães têm permitido ainda a anonimização de dados, desde que sem desnaturação da informação e sem prejuízo da preservação do original da reportagem no site que publicou a notícia. Assim, quem pretende ter acesso às informações poderá consultar as fontes primárias da notícia, que continuarão acessíveis, inclusive com o nome da pessoa prejudicada.

O renomado Professor da Universidade de Augsburg acentuou que o direito ao esquecimento não se confunde com o direito ao apagamento de dados pessoais, conquanto possuam um mesmo fundamento - o direito geral da personalidade - e tenham por fim último assegurar o livre desenvolvimento da personalidade.

O direito ao apagamento imediato de dados pessoais tem lugar nas hipóteses do art. 17 do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), como, por exemplo, quando o titular retira o consentimento para o tratamento dos dados, quando os dados deixam de ser necessários para a finalidade para a qual foram coletados ou quando foram tratados ilicitamente, regra equivalente, em linhas gerais, ao art. 15 da LGPD brasileira.

O direito ao esquecimento possui pressupostos diferentes: notícia pretérita que, embora divulgada inicialmente de forma lícita, perdeu relevância social com o decorrer do tempo, mas cuja propagação causa enormes empecilhos à vida da pessoa, prejudicando seu direito ao pleno desenvolvimento da personalidade.

Atente-se que o direito ao esquecimento não dá ao prejudicado o poder de deletar toda e qualquer informação a seu respeito disponível na imprensa ou na internet e, muito menos, de reescrever sua biografia de forma seletiva, filtrando e apagando, de acordo com suas conveniências, acontecimentos desabonadores do passado. Essa é uma leitura simplista que visa tão só depreciar a figura do direito ao esquecimento.

Na era digital, o que se pretende com o recurso ao direito ao esquecimento é evitar que notícias de cunho privado, destituídas de interesse histórico, público ou social, sejam facilmente disseminadas e facilmente acessadas na internet, prejudicando a vida da pessoa envolvida.

Trata-se, no fundo, como salientado por ambos os palestrantes, de uma colisão de posições jusfundamentais e, portanto, de um problema de ponderação de direitos fundamentais, com o qual as Cortes constitucionais estão - ou devem estar - habituadas. E aqui não há nada de novo, como bem colocou o Min. Luís Felipe Salomão.

Segundo ele, com a sequência de casos que surgirão, o STJ irá fazer os ajustes necessários independente da existência de base legislativa expressa consagrando o direito ao esquecimento, até porque o direito brasileiro tem ferramentas suficientes para restaurar as violações à dignidade e à personalidade da pessoa ofendida.

Além disso, como dito, o STF não tratou da questão da desindexação, que não foi mencionada no julgamento e nem na tese fixada, inviabilizando, portanto, qualquer vinculação. Igualmente, o problema da redução total ou parcial de conteúdo também não foi discutido no julgado. E nem poderia, observou o Min. Luís Felipe Salomão, vez que se trata de interpretação de regra infraconstitucional, sendo muito difícil a questão chegar a ser discutida na Corte Constitucional.

Dessa forma, segundo o Min. Luís Felipe Salomão, ainda há muita margem para a jurisprudência estabelecer as balizas do direito ao esquecimento na análise dos casos concretos.

Na Alemanha, afora a menção no regulamento europeu de proteção de dados em conexão com o direito ao apagamento dos dados pessoais, também não há previsão legal expressa sobre direito ao esquecimento. Apesar disso, e fazendo coro com o Min. Luís Felipe Salomão, Jörg Neuner afirmou que o direito ao esquecimento não é um corpo estranho à ordem jurídica alemã.

Ele deu como exemplo o apagamento dos antecedentes criminais do apenado, que tem um significado tão importante a ponto do condenado poder até omitir essas informações de seu empregador, como já reconheceu o Tribunal Constitucional alemão. 

O direito ao esquecimento, segundo Jörg Neuner, precisa ser concebido em um contexto maior de tutela da esperança do individuo de ter a possibilidade de mudar sua vida. É por isso que na Alemanha, as penas de prisão perpétua devem ser reavaliadas depois de quinze anos para verificar o cabimento de sua substituição por liberdade condicional.

Essa substituição da pena tem status constitucional e se justifica na medida em que o núcleo da dignidade humana acaba indevidamente afetado quando o condenado perde toda a esperança de reconquistar sua liberdade.

O direito ao esquecimento é, nas sábias palavras de Jörg Neuner, expressão de um princípio geral que protege a esperança do indivíduo de que o passado permaneça no passado e o futuro possa descortinar novas perspectivas. A fala do Min. Luís Felipe Salomão mostra que, também aqui, o futuro descortinará novas perspectivas.

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1 Essa coluna é dedicada a Ribamar Oliveira, falecido ontem em decorrência de Covid. Brilhante jornalista econômico, ganhador de diversos prêmios, dentre os quais o Prêmio Esso de Economia por reportagem denunciando o escândalo dos precatórios, fato histórico de corrupção que nunca deve ser esquecido. Da mesma forma, seu autor sempre será lembrando por seus familiares, amigos e leitores.