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Decisão histórica: o caso do fornecimento de cerveja ao Irã

terça-feira, 8 de março de 2022

Atualizado às 07:50

A coluna German Report chega à sua centésima publicação trazendo uma decisão histórica da Corte infraconstitucional alemã, o Bundesgerichtshof (BGH), envolvendo a quebra da base de contratos de fornecimento de bebidas alcoólicas em decorrência da Revolução Iraniana, ocorrida em 1979, que transformou o país, então uma monarquia autocrática pró-Ocidente, em uma república islâmica teocrática comandada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini.

O momento não poderia ser mais propício, tendo em vista a lamentável guerra iniciada pela Rússia contra a Ucrânia e, em certa medida, contra o Ocidente. Além de retrocesso civilizatório e democrático, o sonho neoimperialista do neoczar Wladimir Putin trás de volta o temor de uma terceira guerra mundial.

É curioso - e, por vezes, assombroso - como a história humana pode ser cíclica. Um lançar de olhos no passado permite estabelecer alguns paralelos entre os tempos atuais e aqueles loucos anos 20 do início de 1900.

No apagar das luzes do século 19 para o 20, a sociedade estava deslumbrada com as inovações tecnológicas da época, como o telefone, telégrafo sem fio, cinema, automóvel e o avião, invenções que provocaram profundas transformações no quotidiano e no modo de vida das pessoas, dando espaço a um novo modo de pensar e ver o mundo.

A Europa vivia uma efervescência cultural: cafés, cabarés, óperas, teatros e o cinema extasiavam uma sociedade sedenta por diversão e cultura. Irromperam novas formas de arte como o Impressionismo e a Art Nouveau e, pela primeira vez na história, a sociedade experimentava a cultura urbana do divertimento, tendo Paris como o centro cultural do mundo. Era a chamada Belle Époque, período compreendido entre 1890 e 1914 que inaugurou uma fase de expansão e progresso científico, econômico, intelectual, cultural e artístico da humanidade.

Mas, infelizmente, em 1914 eclodiu a 1ª. Guerra Mundial (1914-1918), pondo fim à Belle Époque, momento em que o mundo se deu conta de que as notáveis invenções da poderiam ser usadas para fins não tão benéficos, como a militarização das nações, estimulando disputas imperialistas e sentimentos nacionalistas.

Mal a guerra chegara ao fim e surgia a gripe espanhola, uma pandemia resultante da mutação do vírus Influenza (H1N1) que atingiu os quatro continentes entre 1918 e 1919, deixando um saldo de milhões de mortos. O mundo ainda não se recuperara das dramáticas consequências sociais e econômicas do conflito bélico quando veio o crash da bolsa de Nova Iorque e a catástrofe humanitária da 2ª. Guerra Mundial.

A passagem do século 20 para o 21 guarda, lamentavelmente, algumas semelhanças. Vivemos a Belle Époche digital, com a sociedade fascinada e entorpecida pelos desenvolvimentos tecnológicos de nossa era. Internet, smart phones, computadores, robótica, drones, inteligência artificial e aparelhos dotados de infinitas funcionalidades prometem melhorar nossa qualidade de vida e embriagam a todos, nos levando a abrir mão de bens valiosos, como privacidade, intimidade e tempo, em troca de diversão. O objetivo das grandes empresas de tecnologia é criar um mundo cada vez mais virtual, com o metaverso e a reproduzir condições de vida em outros planetas, embora não tenhamos resolvidos problemas básicos no planeta terra, como educação, saúde, respeito e vida digna para todos.

Mas nesse início de século, tal como outrora, a Belle Époche digital tem sido perturbada por acontecimentos extraordinários e inesperados, que nos relembram a fragilidade de nossa natureza humana: a pandemia de Covid-19, provocada pela mutação do coronavírus (SARS-Cov-2) e a Guerra na Ucrânia, que tende a agravar ainda mais o difícil quadro socioeconômico deixado pela pandemia.

Sem dúvida, é hora de olhar o passado para aprender com os erros e acertos a fim de se posicionar quanto ao futuro. No campo jurídico não é diferente. Os recentes e dramáticos acontecimentos servem de lição à onda jurídica neoconservadora que se faz sentir em várias áreas, principalmente no direito privado, que visa não corrigir os excessos, mas podar todo um desenvolvimento anterior experimento desde o final dos anos 80.

Exemplo disso é a onda antirevisionista que, embalada pelo direito anglo-saxão, pretende tolher a intervenção estabilizadora do juiz nos contratos. Essa tendência teve seu ápice com a promulgação da Lei de Liberdade Econômica que, a despeito de outras boas intenções, tentou barrar a revisão contratual, se refletindo na lei 14.010/2020, a lei emergencial de direito privado da pandemia, que em seu art. 7º pretendia impedir a revisão dos contratos desequilibrados pelas consequências econômicas da pandemia.

Mas, numa espécie de revolta dos fatos contra a norma, a realidade pandêmica se impôs de forma implacável levando o Judiciário - e o Legislador - em todo o mundo a intervir nos contratos buscando um reequilíbrio.

Agora, com a Guerra na Ucrânia, presenciamos mais um evento extraordinário, de consequências ainda imprevisíveis, a impactar a economia global e a base estrutural de inúmeros contratos, nos mais diversos segmentos da economia. A guerra, não custa lembrar, é um dos clássicos exemplos autorizadores da revisão judicial dos contratos devido às suas dramáticas consequências socioeconômicas em escala mundial, principalmente forte alta inflacionária e desvalorização monetária.

Historicamente, foram os gravosos efeitos econômicos da 1ª Guerra Mundial que destruíram a estabilidade formal e fictícia dos contratos, levando a França a editar a falada Loi Faillot (1918) para permitiu ao juiz extinguir os contratos comerciais desequilibrados em decorrência do conflito e a jurisprudência alemã a revisar os pactos com base na teoria da quebra da base do negócio, à época ainda embrionária.

O Judiciário brasileiro enfrentou a crise pandêmica sem se intimidar com as correntes conservadoras. Espera-se que a mesma postura seja adotada diante dos impactos da Guerra na Ucrânia, que pode trazer de volta os fantasmas da forte alta inflacionária e da desvalorização monetária, ponto sensível na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que costuma afirmar que tais fenômenos econômicos são comuns entre nós.

O início dos anos 20 da era digital não tem deixado espaço para posturas antirevisionistas. Afinal, dois exemplos (guerra e pandemia) saíram dos manuais para a realidade a fim de mostrar a necessidade de readaptar os contratos desequilibrados por acontecimentos de efeitos extraordinários e imprevisíveis. Esse julgado histórico do BGH dá um bom exemplo disso.

O caso do fornecimento de cerveja para o Irã

Em 1977, uma empresa iraniana importadora de cervejas encomendou doze mil caixas de cerveja na Alemanha para revender no Irã. A mercadoria foi despachada da cidade de Bremen para um porto persa, mas, lá chegando, o importador constatou que parte do produto estava avariado e inutilizável.

Ele comunicou o fato ao exportador, apresentando laudo pericial que comprovava que 40% da mercadoria estava danificada e requerendo o pagamento de cerca de 96 mil marcos alemães (Deutsche Mark - DM) referentes à mercadoria e demais prejuízos incorridos, como perícia e taxas alfandegárias.

Após negociações, as partes celebraram, em novembro de 1978, um acordo extrajudicial (außergeritlicher Ausgleich) de compensação dos danos, segundo o qual o importador seria indenizado com um pagamento em dinheiro de DM 20 mil e o restante do valor seria compensado com descontos no preço das bebidas que seriam adquiridas até a data de 31/5/1980. Além disso, após o primeiro, o vendedor deveria pagar mais DM 20 mil quando recebesse carta de crédito referente à mencionada compra.

A fabricante alemã, porém, só efetuou o primeiro pagamento (DM 20 mil). O restante ficou em aberto, porque o aiatolá Khomeini tomou o poder no Irã em janeiro de 1979 e instaurou uma ditadura islâmica, proibindo a importação e comercialização de bebidas alcoólicas no país.

Como o fornecedor alemão se recusou a renegociar os termos do acordo de indenização celebrado, o importador moveu ação de perdas e danos, julgada procedente em primeiro grau pelo Landgericht Hannover. Em grau de recurso, porém, o Tribunal (Oberlandesgericht) de Celle reduziu o valor a ser ressarcido.

A decisão do OLG Celle

O OLG entendeu que a base do acordo extrajudicial de compensação dos danos, celebrado em 1978, fora abalada com a revolução iraniana, pois a prestação acordada (fornecimento de cerveja por preço reduzido durante certo período) pressupunha a possibilidade de comercialização de bebida entre as partes.

Porém, as expectativas - rectius: a representação comum das partes - de continuidade do comércio conjunto não se concretizaram, pois a venda de álcool no Irã fora proibida, impedindo a importação das cervejas fabricadas pela empresa alemã (ré), o que tornava necessária a readaptação do negócio. 

Segundo o OLG, era irrelevante para a solução da lide o fato da autora eventualmente poder distribuir as bebidas fora das fronteiras do território iraniano, pois o acordo extrajudicial de compensação dos danos pressupunha a continuidade da importação de cervejas para o país.

O Tribunal de Celle ressaltou que as falsas representações das partes sobre a possibilidade de seguidas importações não era caso de invalidade do contrato, como o previsto no § 779 BGB. Segundo o dispositivo, um contrato, pelo qual se elimina a disputa ou incerteza das partes sobre uma relação jurídica através de concessões mútuas (acordo), é ineficaz quando os fatos, presumidos como existentes, de acordo com o conteúdo do contrato, não corresponderem à realidade e a disputa ou incerteza não teria surgido se as partes tivessem tido conhecimento da situação fática.

A norma, segundo o OLG Celle, pressupõe um equívoco sobre uma situação fática atual, conduzindo à invalidade do negócio. Porém, no caso concreto, as partes não tinham se equivocado sobre uma situação fática atual, mas sim sobre o desenrolar de acontecimentos futuros, no caso, o desenvolvimento político no Irã e seus efeitos sobre a relação contratual.

O que, de fato, ocorreu foi uma alteração posterior das circunstâncias que provocou a quebra da base do acordo de compensação dos danos. Embora a (re)venda de produtos livres de vícios pertença, em princípio, à esfera de risco do importador, seria extremamente injusto, diante de circunstâncias tão extraordinárias como a revolução politico-religiosa e as inúmeras restrições comerciais impostas, deixar todo o risco da exequibilidade do acordo nas costas do autor, disse a Corte.

Isso, aliás, iria de encontro ao próprio escopo do acordo, que visava justamente ressarcir o autor dos prejuízos sofridos com o fornecimento de cerveja. Portanto, a parte ainda não cumprida do acordo precisava ser readaptada à nova realidade factual de modo a atender ao fim último do negócio (indenizar o importador).

O OLG Celle afirmou que a pretensão ressarcitória do autor deveria levar em conta o valor do proveito que ele obteria com a execução do acordo, ou seja, deveria ser calculada com base no interesse positivo, parâmetro padrão utilizado no cálculo do dano contratual segundo o qual o contratante lesado deve ser colocado na situação que estaria se o contrato tivesse sido regularmente cumprido.

A Corte dividiu meio a meio o risco da execução do negócio, de forma que o autor - além dos DM 20 mil já recebidos - deveria ser recompensado em metade da segunda parcela de DM 20 mil e pela metade dos lucros que provavelmente auferiria com a execução do negócio, a ser arbitrado por estimativa (Schätzung), nos termos do § 287 I do ZPO, o diploma processual civil alemão.

Segundo o OLG Celle, resultava dos termos do acordo que a ré teria fornecido, no mínimo, 60 mil caixas de cervejas. Considerando-se o preço por caixa - abatido do valor de DM 0,90, desconto fixado por estimativa pelo juiz de primeiro grau - o importador obteria um proveito de aproximadamente 54 mil marcos alemães, metade do qual deveria ser pago segundo a fórmula fifty-fifty estabelecida para a revisão contratual. Dessa forma, o autor receberia uma indenização total no valor de 37 mil marcos alemães (DM 27 mil mais DM 10 mil).

A decisão do BGB

O BGH julgou improcedente os recursos interpostos pelas partes, mantendo a decisão do OLG Celle em todos os seus fundamentos. Trata-se do processo BGH VIII ZR 254/82, julgado em 8/2/1984.

A Corte, seguindo o entendimento do Tribunal a quo, negou tratar-se de impossibilidade da prestação ao argumento de que a proibição de importar cerveja para o Iran não liberou o devedor (vendedor) do dever de indenizar os prejuízos decorrentes do primeiro contrato de fornecimento.

Aqui vale atentar que o objeto do acordo extrajudicial não era a importação em si, mas o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo importador durante o primeiro fornecimento. A encomenda (pedido de compra) de cerveja e a carta de crédito não constituíam obrigações assumidas pelo comprador, mas tão só pressupostos para os novos fornecimentos que seriam feitos conforme a conveniência do importador.

O Tribunal de Karlsruhe também afirmou que não se tratava de caso de invalidade do negócio, nos termos do § 779 BGB/1900, porque as partes se equivocaram sobre o desenrolar (ocorrência ou inocorrência) de acontecimentos futuros, no caso, o desenvolvimento político no Irã e seus efeitos, e o fato dos acontecimentos terem se desenvolvido de forma contrária às expectativas dos contratantes não conduz à nulidade do acordo extrajudicial.

Para o BGH não pairam dúvidas: a base do acordo extrajudicial de compensação dos danos foi quebrada com a Revolução Iraniana. A base subjetiva do negócio são aquelas representações de ambas ou de uma das partes (nesse caso, perceptíveis e não contestadas pela outra), presentes no momento da conclusão do contrato, acerca da existência ou da ocorrência futura de certas circunstâncias, as quais dão sustentação à vontade negocial, i.e., à decisão de contratar.

De fato, a possibilidade de continuação da relação comercial fez parte da base do negócio de compensação dos danos, pois este pressupunha a continuidade da parceria comercial no fornecimento de bebidas. Só assim faz sentido a concessão de desconto no preço das bebidas em futuras aquisições. Em outras palavras: o escopo econômico visado com o acordo só seria alcançado se o importador pudesse encomendar e revender a mercadoria.

Para a configuração da quebra da base do negócio é necessário ainda que a alteração das circunstâncias produza efeitos gravosos, "inconciliáveis com o direito e a justiça", e, portanto, insuportáveis para a parte prejudicada, como ocorre, por exemplo, quando surge grave desproporção entre prestação e contraprestação.

Um credor que, por meio de acordo, deixa de fazer valer suas pretensões decorrentes do fornecimento defeituoso de mercadorias para receber, como contrapartida, determinada prestação, não precisa se dar por satisfeito com o cumprimento parcial, afirmou o BGH.

Interessante registrar, ainda, que a Corte rejeitou o argumento do fabricante alemão de que o importador não poderia alegar quebra da base do negócio, pois o desenvolvimento politico no Irã era previsível. Segundo o BGH, esses acontecimentos - e, principalmente, seus efeitos - não eram tão certos a ponto da parte prejudicada (importador) tê-los considerado em sua esfera de riscos, o que vedaria o recurso à figura da quebra da base do negócio.

Assim, o BGH chancelou a readaptação contratual feita pelo OLG Celle salientando que a repartição equânime dos riscos é a solução mais adequada sempre quando no caso concreto não houver base para onerar uma parte mais que a outra.

Em suma: esse julgado histórico, frequentemente mencionado na literatura alemã sobre quebra da base do negócio, mostra o rigor científico e a maturidade dogmática do Bundesgerichtshof ao reconhecer a extraordinariedade e imprevisibilidade dos efeitos da Revolução no Irã sobre o contrato de fornecimento de cerveja, a justificar a revisão do acordo extrajudicial de indenização celebrado entre as partes. Como a Guerra da Ucrânia, a Revolução Iraniana talvez fosse na época um evento possível, mas suas consequências eram gravosas e imprevisíveis para o comércio jurídico, autorizando a readaptação dos pactos. Ótimo caso histórico para ser discutido e refletido.