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Medidas assecuratórias no processo penal e a impossibilidade de seu uso para assegurar o pagamento de pena de multa

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Atualizado às 08:55

Nas últimas décadas, a pena privativa de liberdade perdeu parte de sua centralidade com o progressivo deslocamento das reações penais para o domínio econômico1. Desde uma influência internacional e estrangeira, fomentada pela deflagração de grandes operações voltadas à apuração da criminalidade econômica no país, molda-se no processo penal brasileiro uma valorização dos aspectos patrimoniais decorrentes do crime2. Em suma, estratégias patrimoniais de combate à criminalidade3 estão na pauta do dia de quem comanda a política criminal no Brasil e, nesse cenário, assistiu-se a um verdadeiro "resgate" das medidas assecuratórias previstas no Capítulo VI do Título VI do CPP.

Ao lado do sequestro de bens (arts. 125 a 132, CPP), o qual recai sobre bens adquiridos com os proventos da infração a fim de assegurar o perdimento declarado em sentença (art. 91, II, CP) - ou, caso não encontrados ou se encontrem no exterior, sobre bens ou valores equivalentes (art. 91, §§ 1.º e 2.º, CP) -, o Código de Processo Penal prevê as medidas cautelares patrimoniais de especialização da hipoteca legal e de arresto4 (arts. 134 a 137, CPP), as quais, diferentemente daquela, recaem sobre bens de origem lícita.

Apesar de a finalidade precípua do arresto e da especialização da hipoteca legal residir em garantir a reparação do dano (art. 91, I, CP), não raro se vê a decretação dessas medidas para assegurar o pagamento da multa a ser fixada em eventual sentença condenatória. Contudo, apesar de ainda aplicadas por Juízes e Tribunais do país - o que se infere da análise da jurisprudência das Cortes superiores5 -- não há como se assegurar o pagamento de pena de multa por medida cautelar patrimonial no processo penal.

Como dito, a especialização de hipoteca legal tem por objetivo assegurar a reparação do dano causado pelo crime. Contudo, dano e sua reparação são matérias afetas ao direito privado, cabendo à legislação penal (art. 91, I, CP) e processual penal (art. 134, CPP) apenas estabelecer mecanismos para a sua incidência no curso do processo penal e com o advento da condenação.

Veja-se que a medida cautelar do art. 134 do CPP não estabelece o direito de hipoteca, em si. Trata-se a hipoteca legal de direito real previsto no Código Civil (art. 1.489, CC), cuja aplicação se dá ope legis. O que a lei processual penal estabelece é a especialização e o registro da hipoteca legal. O arresto, por seu turno, é aplicado "nos termos em que é facultada a hipoteca legal" (art. 137, CPP).    

Quando decretado o Código de Processo Penal ainda se encontrava em vigência o Código Civil de 1916 que, em seu art. 8276, conferia hipoteca legal (i) ao ofendido ou aos seus herdeiros, sobre os imóveis do acusado, para a satisfação do dano causado pelo delito e o pagamento de custas processuais, e (ii) à fazenda pública sobre os imóveis do acusado, para o cumprimento das penas pecuniárias e o pagamento das custas processuais.

O art. 827 do Código Civil ab-rogado corresponde em sua maior parte ao art. 1.489 do Código Civil vigente7. Contudo, ao estabelecer as hipóteses de hipoteca legal, o Código Civil de 2002 apenas reproduziu o direito real de garantia aplicável com o objetivo de garantir a reparação do dano causado pelo crime e o pagamento das custas (art. 1.489, inc. III, CC), sem estabelecer garantia voltada à fazenda pública para assegurar o cumprimento de penas pecuniárias.

Como a medida cautelar prevista no art. 137 do CPP é fundada em direito real de garantia disposto expressamente em lei, a exclusão de uma das hipóteses de hipoteca legal pelo Código Civil de 2002 implica a supressão das medidas cautelares patrimoniais que lhes são instrumentais - i.e. especialização de hipoteca legal e arresto. Isto se dá pois não cabe à lei processual penal criar hipóteses de direito real de garantia.

Não se deve descuidar que o CPP, como dito, foi decretado na vigência do Código Civil de 1916. No que diz respeito às medidas assecuratórias, este Capítulo do CPP resta praticamente inalterado desde sua redação original. Justamente por este motivo, ainda que o art. 140 do CPP inclua as "penas pecuniárias" como um dos objetos das medidas assecuratórias de especialização de hipoteca legal e de arresto, desde o Código Civil de 2002, não existe previsão legal que fundamente a especialização de hipoteca legal destinada a este fim. O entendimento também se aplica às leis especiais8 que preveem a decretação de medidas assecuratórias vinculadas aos crimes por elas normatizados. Tais leis, ao enunciarem a possibilidade de aplicação de "medidas assecuratórias", referem-se às medidas previstas nos arts. 124 a 144 do CPP, ou seja, não criaram cautelares novas e, por essa razão, submetem-se ao regime do CPP.

Ressalta-se que a lei processual penal - diferentemente da lei processual civil - não confere poder geral de cautela que possibilite ao juízo decretar medidas assecuratórias não previstas em lei, tampouco as aplicar para finalidades diversas daquelas estabelecidas legalmente9. A garantia de legalidade em matéria criminal não se limita ao momento da cominação da pena, mas diz respeito à legalidade da inteira intervenção penal10.

Portanto, sob a vigência do Código Civil de 2002, a única finalidade da especialização de hipoteca legal e do arresto, em sede processual penal, é a satisfação do dano causado pelo delito e o pagamento de despesas judiciais em favor do ofendido. Entendimento em sentido contrário viola o princípio da referibilidade das medidas cautelares. Por referibilidade, entende-se o atributo de toda e qualquer tutela cautelar consistente em vinculá-la a uma determinada situação concreta de direito material em relação a qual o provimento cautelar tem a finalidade de assegurar. Na tutela cautelar, há sempre referibilidade a um direito acautelado11. Nesses termos, sem a previsão legal do direito da fazenda pública à hipoteca sobre imóveis do acusado para garantir o pagamento de penas pecuniárias, inexiste direito material a ser assegurado cautelarmente.

Ao mais, observa-se que os tribunais pátrios não só admitem a concessão da especialização da hipoteca legal para assegurar o pagamento da pena de multa - a despeito da ausência de previsão legal para tanto - como adotam a projeção máxima como critério para a sua quantificação12. Para a fixação da pena de multa, a quantidade de cada dia-multa é estabelecida conforme o critério trifásico, a partir da ponderação das circunstâncias judiciais (art. 59, CP) e legais (arts. 61 a 66, CP), além dos demais aspectos que influenciam na dosimetria da pena privativa de liberdade. O valor unitário é fixado conforme a situação econômica do réu (art. 60, CP).

Naturalmente, todos esses critérios parecem ser de difícil aferição logo no nascedouro da ação penal, quando recém reunidos indícios de autoria para o oferecimento da denúncia. Não obstante, a inexistência nos autos de elementos indicativos das circunstâncias judiciais e legais e da situação econômica do acusado, necessários para a fixação da multa, não pode servir de justificativa para a fixação no máximo legal ou em outra quantia exorbitante desamparada da análise das circunstâncias do caso concreto.

Tratar o acusado como condenado, privando-o desde logo de seus bens, a pretexto de garantir o pagamento da multa calculada no máximo da pena aplicável - além de conflitar diretamente com o estado de inocência que pré-ocupa13 um processo penal democrático -, no mais das vezes, leva à indisponibilidade de todo o seu patrimônio. Há de se indicar elementos que permitam, ainda que sob um juízo de cognição sumária, verificar a razoabilidade do valor estimado.

O cálculo no máximo da pena aplicável, chegando a valores estratosféricos, configura neste caso um abuso14. Não deve o acusado garantir provisoriamente o pagamento de um valor a título de garantia da multa que ele muito provavelmente não terá de pagar mesmo após a condenação. Vale dizer, a concessão de medida cautelar para assegurar o pagamento de multa, se admitida fosse - não é -, não poderia ser mais severa que a própria medida definitiva que irá substitui-la e a que se destina a preservar. À luz da proporcionalidade, o instrumento não pode ultrapassar o fim ao qual ele serve15.

Não obstante o exposto, ainda antes da observância à proporcionalidade, insiste-se na absoluta inviabilidade de se decretar medidas cautelares com finalidades diversas daquelas previstas legalmente. Especificamente quanto ao que foi objeto deste artigo, defende-se a impossibilidade - desde a ab-rogação do Código Civil de 1916 -, de se decretar o arresto e a especialização da hipoteca legal para assegurar o cumprimento da multa no processo penal. No fim, o que defendemos no âmbito das medidas assecuratórias nada mais é do que a estrita observância à legalidade.

O conteúdo desta coluna é produzido pelos membros do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal Econômico da Universidade Federal do Paraná - NUPPE UFPR. 

__________

1 CORREIA, João Conde. Da proibição do confisco penal à perda alargada. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2012. n.p. [prefácio].

2 ESSADO, Tiago Cintra. A perda de bens e o novo paradigma para o processo penal brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) - Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2014. p. 14.

3 CAEIRO, Pedro. Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 100, n. 21, jan./fev. 2013. p. 268-277.

4 O CPP estabelece duas espécies de arresto: (i) o arresto prévio à especialização da hipoteca legal (art. 136, CPP) e (ii) o arresto subsidiário de bens móveis (art. 137, CPP). O arresto prévio visa resguardar o imóvel objeto de hipoteca legal, dado que o procedimento destinado à sua especialização e ao seu registro possui certa complexidade, de sorte que a demora para a sua ultimação pode prejudicar a efetividade da medida. Por sua vez, o arresto subsidiário de bens móveis somente incide quando o acusado não possui bens imóveis ou os possuir em valor insuficiente para a integral reparação do dano causado pela infração penal.

5 No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cita-se: STJ, 5.ª T., AgRg no REsp 1931372/MG, rel. ministro Reynaldo Soares da Fonseca, j. 22 jun. 2021; STJ, CE, AgRg na CauInomCrim 6/DF, rel. ministro Paulo de Tarso Sanseverino, j. 4 dez. 2019; e STJ, 6.ª T., REsp 1319345/PR, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, j. 18 ago. 2015. No âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), cita-se: STF, 2.ª T., AgR no AC 3957, rel. ministro Teori Zavascki j. 21 jun. 2016; e STF, 1.ª T., AgR na Pet 7069, rel. ministro Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão ministro Roberto Barroso, j. 12 mar. 2019.

6 Art. 827. A lei confere hipoteca: I. À mulher casada, sobre os imóveis do marido para garantia do dote e dos outros bens particulares dela, sujeitos à administração marital. II. Aos descendentes, sobre os imóveis do ascendente, que lhes administra os bens. III. Aos filhos, sobre os imóveis do pai, ou da mãe, que passar a outras núpcias, antes de fazer inventário do casal anterior (art. 183, n. XIII). IV. As pessoas que não tenham a administração de seus bens, sobre os immoveis de seus tutores ou curadores V. À Fazenda Pública Federal, Estadual ou Municipal, sobre os imóveis dos tesoureiros, coletores, administradores, exatores, prepostos, rendeiros e contratadores de rendas e fiadores. VI. Ao ofendido, ou aos seus herdeiros, sobre os imóveis do delinquente, para satisfação do dano causado pelo delito e pagamento das custas (art. 842, n. I). VII. À Fazenda Pública Federal, Estadual ou Municipal, sobre os imóveis do delinquente, para o cumprimento das penas pecuniárias e o pagamento das custas (art. 842, n. II). VIII. Ao co-herdeiro para garantia do seu quinhão ou torna da partilha, sobre o imóvel adjudicado ao herdeiro reponente.

7 Art. 1.489. A lei confere hipoteca: I - às pessoas de direito público interno (art. 41) sobre os imóveis pertencentes aos encarregados da cobrança, guarda ou administração dos respectivos fundos e rendas; II - aos filhos, sobre os imóveis do pai ou da mãe que passar a outras núpcias, antes de fazer o inventário do casal anterior; III - ao ofendido, ou aos seus herdeiros, sobre os imóveis do delinqüente, para satisfação do dano causado pelo delito e pagamento das despesas judiciais; IV - ao co-herdeiro, para garantia do seu quinhão ou torna da partilha, sobre o imóvel adjudicado ao herdeiro reponente; V - ao credor sobre o imóvel arrematado, para garantia do pagamento do restante do preço da arrematação.

8 A título exemplificativo, cita-se a Lei Antidrogas (lei 11.343/2006), que em seu art. 63-B dispõe "O juiz determinará a liberação total ou parcial dos bens, direitos e objeto de medidas assecuratórias quando comprovada a licitude de sua origem, mantendo-se a constrição dos bens, direitos e valores necessários e suficientes à reparação dos danos e ao pagamento de prestações pecuniárias, multas e custas decorrentes da infração penal"; e a Lei de Lavagem (lei 9.613/1998), que em seu art. 4.º, §4.º dispõe: "Poderão ser decretadas medidas assecuratórias sobre bens, direitos ou valores para reparação do dano decorrente da infração penal antecedente ou da prevista nesta Lei ou para pagamento de prestação pecuniária, multa e custas".

9 SAAD GIMENES, Marta Cristina Cury. As medidas assecuratórias do Código de Processo Penal como forma de tutela cautelar destinada à reparação do dano causado pelo delito. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2007. p. 37.

10 GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Presunção de inocência e prisão cautelar. São Paulo: Saraiva, 1991. p. 57.

11 MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela cautelar e tutela antecipatória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994. p. 79.

12 Nesse sentido, a título de amostra, cita-se: TRF-4, 7.ª T., Apelação Criminal 5042620-75.2019.4.04.7000, relator des. fed. Guilherme Beltrami, j. 3 mar. 2021 e TRF-4, 7.ª T., Apelação Criminal 5042620-75.2019.4.04.7000, relatora des.ª fed. Salise Monteiro Sanchotene, j. 10 dez. 2019.

13 A expressão "pré-ocupação de inocência" é de Augusto Jobim do Amaral (A Pré-Ocupação de Inocência no Processo Penal. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 62, p. 85-115, jan./jun. 2013).

14 DOMENICO, Carla. O sequestro e arresto de bens como medidas assecuratórias nos crimes. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 75, p. 130-147, nov./dez. 2008. p. 138.

15 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8. ed. São Paulo: RT, 2020. p. 1136.