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Breves considerações sobre as problemáticas da produção legislativa penal brasileira

terça-feira, 18 de outubro de 2022

Atualizado às 09:11

No âmbito da produção legislativa brasileira, nota-se uma falta de coerência e definição a respeito de quais os objetivos que se pretende alcançar por meio das medidas legais. Principalmente no âmbito do Direito Penal Econômico, observa-se a proliferação de atos normativos que parecem trilhar sentidos opostos, sem a definição de prioridades em termos de política criminal e de política legislativa.

De modo geral, falta harmonia entre o que se pretende implementar politicamente em matéria de Segurança Pública, os projetos de lei a serem priorizados sobre o tema e os posicionamentos do Poder Judiciário.1

Alguns fatores podem ser elencados como fonte de tais problemáticas.

Em primeiro lugar, sabe-se que a produção legislativa penal tem sido realizada por meio de impulsos individuais e de grupos de interesse que motivam discursos populistas, eleitoreiros e midiáticos, em dissonância com objetivos comprováveis de redução da criminalidade e suas consequências.2

Também se observa o risco da deslegalização do direito penal, em que ocorre o uso exacerbado da complementação legal de normas penais em branco, por meio de regulamentos e outras espécies normativas de natureza administrativa, o que gera violações a garantias e a princípios estruturantes do direito penal.3

A esses fatores, soma-se o isolamento dos debates acadêmicos já existentes acerca das matérias constantes das novas leis e um afastamento em relação aos dados empíricos e estatísticos sobre criminalidade e encarceramento.

Em relação ao populismo penal legislativo, é importante resgatar como norte a ideia de que o direito penal é uma técnica de definição, comprovação e repressão do desvio. Tal desvio é determinado por meio da atividade legislativa, em que o legislador irá definir os crimes e cominar as penas. Em sua tarefa, o representante político deve observar os princípios constitucionais que regem o direito penal para garantir os direitos do indivíduo em face do poder punitivo do Estado. Portanto, é função dos princípios justamente limitar o poder punitivo estatal e impor uma forma de controle ao próprio legislador.

Os problemas surgem a partir do momento em que os nossos representantes, imbuídos por ideias populistas, ignoram isso. Dentre a principiologia penal, alguns dos princípios implícitos que deveriam exercer esse papel de conter o poder punitivo seriam o da resposta não contingente, o da idoneidade, da proporcionalidade, subsidiariedade e o da implementação administrativa da lei. Tais princípios visam a garantir uma produção legislativa pautada nos seguintes aspectos: o estudo acerca dos efeitos socialmente úteis que se pode esperar da pena; a reflexão se a pena é necessária e proporcional ao bem jurídico tutelado; a análise se é possível resolver o conflito por outro ramo do direito menos gravoso; o cuidado com a inflação legislativa, a fim de evitar a cifra oculta da criminalidade e empurrar o sistema penal para atuar de forma ainda mais seletiva; e a atenção para que o direito penal não opere como mera resposta a fenômenos emergentes.

Em contraposição, no populismo penal, as políticas penais se destinam à obtenção de voto, qualificadas por uma desconsideração acerca da eficácia das medidas resultantes dessas políticas. O que pauta a produção legislativa é um conjunto de práticas e discursos de aumento do poder punitivo pretensamente apoiados pelo público em geral. Nesse âmbito, são formados grupos de pressão que contribuem para influenciar os governantes a adotarem uma postura populista punitiva, forjando uma cultura punitivista.

Para ilustrar a inobservância ao princípio da subsidiariedade, a lei 8.137/90, dos crimes contra a ordem tributária, é um bom exemplo de lei penal cujos bens jurídicos poderiam ser muito bem tutelados por outros ramos do direito, menos gravosos, sem a necessidade de criminalização das condutas nela tipificadas.4

Além disso, assiste-se à ascensão do fenômeno da deslegalização, em que há uma proliferação de normas penais incompletas, as quais demandam o conhecimento de outras leis ou de regras de natureza infralegal para sua compreensão. A doutrina afirma que o uso de tal técnica legislativa de forma desmedida e demasiada pode ensejar a ofensa ao princípio da intervenção penal legalizada (art. 5°, XXIX, CF; art. 1.°, CP).

Em vista disso, indica-se a necessidade de uma limitação em termos do que pode ou não ser delegado à norma complementadora, principalmente quando as leis em branco são heterônomas ou próprias, as quais se utilizam de complemento oriundo de outra esfera do Poder que não o Legislativo.

Todavia, na prática, percebe-se que, embora tal técnica legislativa tenha sido inicialmente concebida como medida excepcional, atualmente é constante a utilização da complementação normativa, sobretudo na proteção de alguns bens jurídicos específicos.

Tais fatores devem ser examinados considerando-se também o advento da sociedade de risco, que contribuiu para a expansão das criminalizações na seara do Direito Penal Econômico, o que se convencionou chamar de espiritualização ou desmaterialização do bem jurídico. Os valores coletivos ou transindividuais passaram a ser protegidos pela norma penal, porém, por já se encontrarem regulados administrativamente, acarretaram a necessidade de fazer parte dos tipos penais construídos.

Ademais, a prática legislativa nacional recebe forte influência da política criminal internacional, como a que deu origem à lei9.613/1998, criminalizando a lavagem de dinheiro no Brasil. Nesse ponto, não se observa o desenvolvimento de uma ciência da legislação e de discussão de técnicas legislativas em matéria penal que considere as especificidades de cada país, de modo que a falta de uma regulação completa acaba sendo impulsionada por pressões populares e midiáticas, inclusive estrangeiras.

Em resumo, a produção legislativa brasileira tem desconsiderado uma série de princípios que norteiam o direito penal e a sua natureza de intervenção mínima. Segundo Chiavelli, diversas consequências podem advir desse cenário, dentre elas: o desvio no bem jurídico tutelado pela norma, a violação da legalidade tanto pela mudança na competência legislativa quanto pela vulneração da taxatividade da norma, a ocorrência indiscriminada de erro, a sobreposição de matéria penal e administrativa, e a perda de efetividade da norma como um todo, redundando em direito penal simbólico.5

Assim, apesar da inegável importância de uma produção legislativa refletida no âmbito penal, há diversos fatores no Brasil que impedem que as leis sejam construídas de modo coerente com base em uma política criminal e em estudos acadêmicos e empíricos a respeito das matérias legisladas. Diante disso, aponta-se para a necessidade de que sejam discutidas e sanadas determinadas práticas legislativas, as quais impedem que o direito penal seja construído em conformidade as garantias e princípios que o norteiam.

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1 FALAVIGNO, Chiavelli Facenda. Racionalidade Legislativa Penal: a constribuição da academia e do judiciário. Revista de Estudos Criminais, São Paulo, n. 82,  p. 131-150, 2021.

2 MENDES, André Pacheco Teixeira Por que o legislador quer aumentar penas? Populismo penal legislativo na Câmara dos Deputados - Análise das justificativas das proposições legislativas no período de 2006 a 2014. Tese (Doutorado em Direito Penal) - Faculdade de Direito, PUC, Rio de Janeiro, 2015.

3 FALAVIGNO, Chiavelli Facenda. O risco de deslegalização no direito penal: análise da complementação administrativa do ordenamento punitivo.Tese (Doutorado em Direito Penal) - Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.

4 MENDES, André Pacheco Teixeira Por que o legislador quer aumentar penas? Populismo penal legislativo na Câmara dos Deputados - Análise das justificativas das proposições legislativas no período de 2006 a 2014. Tese (Doutorado em Direito Penal) - Faculdade de Direito, PUC, Rio de Janeiro, 2015.

5 FALAVIGNO, Chiavelli Facenda. A Deslegalização no Direito Penal Brasileiro: discussões dogmáticas. Revista Inclusiones, n. 8, mar. 2021, p. 70-82.