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O xenotransplante bem sucedido

domingo, 31 de outubro de 2021

Atualizado em 29 de outubro de 2021 11:24

A humanidade recebeu com júbilo indisfarçável a notícia de que foi realizado com sucesso um transplante de rim entre animais de espécies diferentes, mais precisamente, um xenotransplante, em que uma mulher recebeu o rim de um porco. Xenotransplante, na precisa definição de Marcelo Coelho, é "o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis".1

Não que a notícia cause estranheza - levando-se em consideração a evolução da transplantação que vai ganhando espaços até então desconhecidos - mas sim pela exemplar conduta científica e o resultado atingido.

Para tanto a equipe de transplantes, após anos de pesquisa, usou o rim de um porco devidamente preparado e geneticamente modificado, para afastar uma molécula que provoca rejeição em humanos. Em seguida, fora do corpo da mulher, que já se encontrava com a morte encefálica decretada, o rim suíno foi ligado às veias e artérias e, sem qualquer rejeição, funcionou perfeitamente por 54 horas de observação.

Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilizar a realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano.

Dá-se a impressão que se trata de um relato de ficção científica, principalmente pela utilização de um rim suíno quando a regra aconselha o transplante de órgãos entre humanos e, mesmo assim, como é sabido, com certa frequência, ocorre a rejeição.

No caso específico, realizado por transplantadores de um hospital de Nova York, o estudo científico obedeceu a todas as fases, além de, rigorosamente, atender os princípios norteadores da Bioética para a realização do procedimento invasivo.

A paciente, quando viva e lúcida, havia assinado um documento em que registrou sua vontade de ser doadora de órgãos post mortem. Com a decretação de sua morte encefálica a equipe médica consultou os familiares que endossaram seu consentimento. Prevaleceu, desta forma, a autonomia da vontade da paciente, reforçada ainda pela adesão dos familiares, revelando, de forma inequívoca, a vontade de se oferecer como doadora, mesmo em se tratando de transplante realizado em pessoa já morta, mas suficiente para avaliar o órgão transplantado.

O benefício resultante do estudo é infindável e deixou transparecer que o estudo merece continuidade uma vez que trouxe dividendos favoráveis à saúde humana, apesar do pouco tempo em que o rim permaneceu atrelado ao corpo da doadora, com visível resultado mais do que satisfatório. É evidente que há ainda uma longa trajetória científica a ser percorrida, mas, pelo menos para o momento, reacende a esperança de encontrar mais uma opção, que certamente trará inúmeros benefícios para o homem.

Finalmente, em razão do princípio da justiça distributiva, o feito médico deve ser compartilhado com toda a humanidade. Se um determinado e inédito procedimento médico foi bem sucedido e trouxe benefício comprovado, deve ser utilizado por todas os pacientes que se encontram em situação idêntica. O benefício, desta forma, deve ser distribuído entre aqueles que necessitam de um transplante de rim, com o intuito de atingir uma vida saudável.

É de conhecimento público, pelas informações veiculadas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, que o Brasil goza de destaque mundial na realização de transplantes de órgãos, apesar ainda da baixa taxa de doadores efetivos e da consequente diminuição em razão da pandemia da Covid-19. A escassez de órgãos humanos faz com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante longo período nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível e muitas vezes vão a óbito sem atingir o objetivo almejado. É de se esperar que o estudo anunciado, estribado no melhor embasamento científico e ancorado pelo pensamento bioético, proporcione uma acalentadora esperança para a humanidade.

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1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante - ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56.