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A intenção do agente no Direito Penal

domingo, 5 de novembro de 2023

Atualizado em 3 de novembro de 2023 12:34

O Código Penal elenca as condutas consideradas criminosas, tipificando-as para que seja feita a operação jurídica da subsunção do fato à norma. Às vezes, um simples tapa ou até mesmo um empurrão, em ambos imbuído o agente do animus exigido para a prática de uma conduta, podem ensejar interpretações diferentes. Daí a necessidade de se pesquisar com profundidade a real intenção que norteou a conduta do agressor.

Em outubro de 2023, repercutiu na mídia o triste episódio envolvendo um homem que, em um ato de descomedimento, empurrou uma senhora de 86 anos que com ele cruzou na calçada em que estavam. A ação resultou em sérias consequências para a idosa: uma fratura no fêmur e ferimentos que necessitaram de intervenção cirúrgica para sutura. Diante da gravidade do acontecimento, o homem foi indiciado pelos crimes de lesão corporal e omissão de socorro.[1]

Para fins de aprofundamento do debate, sem perder de vista o respeito pela vítima e demais envolvidos, propõe-se a imaginação de um resultado hipotético diverso: a morte da idosa, por lesões decorrentes do empurrão sofrido.

Nesse cenário hipotético, a imersão na vontade do agente - e na assunção de riscos objetivamente previsíveis - traz questões desafiadoras. Isso porque o Direito Penal Brasileiro apresenta diversos institutos, cujas nuances e distinções requerem um exame minucioso e detido.

Dentro desse contexto, a morte da vítima resultante de um empurrão do agente provoca a discussão sobre qual o crime perpetrado: Homicídio doloso, por meio do dolo eventual, ou lesão corporal seguida de morte?

Prima facie, tem-se que o crime de homicídio doloso, com dolo eventual, caracteriza-se quando o agente, embora não queira diretamente a morte da vítima, assume o risco de produzi-la (artigo 18, inciso I, parte final, do Código Penal). Em outras palavras: o agente não tem a certeza da ocorrência do resultado, mas aceita a possibilidade de sua ocorrência e prossegue com a conduta (o resultado é objetivamente previsível e o agente comporta-se com indiferença, diante dessa previsibilidade de ocorrência).

Já o delito de lesão corporal seguida de morte configura-se quando o agente, ao buscar causar dano ou ofensa à integridade física ou saúde da vítima, acaba por causar-lhe a morte. Nesse caso, o agente não prevê nem assume o risco da morte, que se apresenta como consequência não-intencional de sua conduta.

Aqui, trata-se do conhecido crime preterdoloso; preterintencional ou da agravação pelo resultado (artigo 19 do Código Penal), isto é, o agente atua com dolo na conduta antecedente (lesão corporal) e culpa no resultado agravador (morte). Outro exemplo é o crime de aborto praticado sem o consentimento da gestante com o resultado morte: a conduta do aborto é dolosa, almejada pelo agente; a morte da gestante é culposa, pois o autor não queria o resultado, embora fosse ele previsível (art. 125 c.c. 127, ambos do Código Penal).

Desta forma, retornando à situação hipotética proposta, reitera-se a pergunta proposta. Por qual crime responderia o agente?

E a resposta, ao que parece, dependerá do caso concreto. Ao empurrar a vítima, próximo à escada, em avenida movimentada ou a precipício, por exemplo, o agente não deseja necessariamente a morte dela, mas tem consciência de que sua conduta pode levar a tal desfecho. Se, mesmo prevendo essa possibilidade, ele decide empurrar, há a configuração do dolo eventual, salvo melhor juízo.

Por outro lado, o agente que empurra a vítima, em um contexto em que não há riscos evidentes para levar à morte (por exemplo, em um ambiente plano) parece conduzir à lesão corporal seguida de morte (artigo 129, § 3º, do código Penal). É que, de forma imprevisível, a vítima acaba por falecer em razão das lesões corporais sofridas. Vale dizer: o resultado morte não era previsível, tampouco foi aceito pelo agente.

A distinção entre estas duas modalidades delitivas é crucial, pois as consequências jurídicas entre elas são absolutamente relevantes. Enquanto no homicídio doloso, ainda que praticado com dolo eventual, possui pena privativa de liberdade de 6 a 20 anos (art. 121 do Código Penal), a lesão corporal seguida de morte, que se configura como um crime preterdoloso, possui pena de reclusão de 4 a 12 anos (art. 129, §3º, do Código Penal).

Em suma, a chave para a correta tipificação reside na análise da intenção do agente e na previsibilidade do resultado. Porém, esta facilidade repousa, apenas e tão somente, no texto jurídico, sendo certo que sua aplicação, no caso concreto, demanda cautela e profundo estudo sobre o tema. Cum grano salis, como diziam os romanos.

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1 Disponível aqui.