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Cirurgia em embrião

domingo, 14 de abril de 2024

Atualizado em 12 de abril de 2024 13:21

Quanto maior o avanço da biotecnologia e a capacitação dos profissionais da área da saúde, maiores serão os benefícios em prol da humanidade. Antes tudo aquilo que poderia ser considerado ficção científica em literatura e filmes, hoje já é uma realidade inconteste e, acima de tudo, ultrapassa os limites do até então alcance do pensamento humano. Basta ver o romance publicado por Aldous Huxley, em 1932, O Admirável Mundo Novo, em que antecipa uma engenharia genética avançada na área reprodutiva em laboratório, e hoje, com a tecnologia de primeira linha da reprodução assistida, a medicina consegue êxitos em várias empreitadas nesta área.

O avanço científico enveredou por um caminho de ritmo acelerado. Tanto é que o objetivo da ciência moderna é desenvolver uma cultura diferenciada com o intuito de proteger o indivíduo no âmbito da sociedade e a preocupação de proporcionar a ele uma vida mais digna, com qualidade e conteúdo, no caminho da realização pessoal, familiar, social e profissional.

No Hospital da Criança e Maternidade de São José do Rio Preto1 foi realizada uma cirurgia intrauterina, no quinto mês de gestação, em um embrião diagnosticado com mielomeningocele (malformação congênita do bebê), utilizando, para tanto, a técnica Safer, que diminui os riscos tanto para a gestante como para o bebê, por ser minimamente invasiva. Todo procedimento foi feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e teve como responsável a equipe do médico cirurgião fetal Gustavo Henrique de Oliveira.

O tema é envolvente por demais, uma vez que técnicas apuradas conseguem resolver o problema da procriação. A cada procedimento inovador e exitoso, a humanidade vai galgando e acumulando conhecimentos mais relevantes. E o interesse maior é que o procedimento invasivo foi realizado no útero que abrigava o embrião.

Por muito tempo prevaleceu o princípio da sacralidade do embrião, no sentido de que nenhuma interferência poderia ocorrer após o início da gestação. É até possível a realização do diagnóstico genético pré-implantacional com embriões fertilizados in vitro, antes, porém, da transferência para o útero, justamente para averiguar se são portadores de virtual doença genética.

O princípio da intocabilidade do embrião, é bom que se diga, já não tem aplicação plena, em razão dos avanços científicos na seleção embrionária. Permanece sim a proibição de selecionar sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, mas não se questiona a realização do exame para diagnóstico pré-implantacional e testes genéticos visando verificar se o embrião é portador de alterações cromossômicas ou genéticas. Se a constatação for positiva, admite-se o procedimento corretivo. Prevalece aqui o princípio da beneficência da Bioética.

O Código de Ética Médica2 veda expressamente ao médico: Intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica, excluindo-se qualquer ação em células germinativas que resulte na modificação genética da descendência.

A esse respeito, comparece a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina e esclarece sobre as intervenções com o genoma humano, em seu artigo 13º, da Comunidade Europeia:

Uma intervenção que tenha por objeto modificar o genoma humano não pode ser levada a efeito senão por razões preventivas, de diagnóstico ou terapêuticas e somente se não tiver por finalidade introduzir uma modificação no genoma da descendência. 

Percebe-se, pelo relato feito no início que o inovador procedimento médico traz incontáveis benefícios para o embrião que, ainda em seu nascedouro, recebe a intervenção necessária visando atingir uma vida normal e sem qualquer sequela com a doença que o ameaçava. Não se trata de um melhoramento genético - isto é, aperfeiçoar e melhorar aquilo que já vem pronto na herança genética - e sim de medida para reparar uma doença de distúrbio genético que futuramente acarretará sérias restrições à pessoa. A diferença, portanto, é abissal.

Imbuído do mais avançado pensamento bioético, Sandel assim advertiu:

As descobertas da genética nos apresentam a um só tempo uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve seremos capazes de ratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O dilema é que nosso recém-descoberto conhecimento genético também pode permitir a manipulação de nossa própria natureza - para melhorar nossos músculos, nossa memória e nosso humor; para escolher o sexo, a altura e outras características genéticas de nossos filhos; para melhorar nossas capacidades física e cognitiva; para nos tornar "melhores do que a encomenda"3

É indiscutível que o conhecimento científico proporcionado pela tecnologia de ponta consiga utilizar as ferramentas disponíveis para ampliar o acesso integral, igualitário e universal à saúde - princípios norteadores do SUS - aos casos mais complexos e que exijam atendimentos especializados. 

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1 Disponível aqui.

2 Resolução nº2.217/2018 CFM, artigo 16.

3 Sandel, Michel J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Tradução Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 19.